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16 de julho: Brasil x Uruguai em 1950 e em 1989

Fabio Perina 16 de julho de 2020

Ao iniciar essa memória logo me lembrei de meu primeiro texto aqui nesse veículo chamado “A expedição” quando comparei as Copas de 1950 e 2014 tendo exatamente 1982 no meio do caminho. Desde então percebi que de tantos números no futebol os realmente essenciais são os que trazem algum sentido transcendental como grandes coincidências e retornos. Outro breve lampejo filosófico: grandes antíteses costumam ocultar uma terceira via:

-“Pelé ou Maradona?” -“Mas e Garrincha?”
-“Brasil ou Argentina?” -“Mas e o Uruguai?”

Brasil x Uruguai é certamente o clássico sul-americano que mais confronta diretamente a representação de duas místicas de jogo e identidade nacional: ‘futebol arte’(ou moleque) x ‘garra charrúa’. E aqui a intenção dessa crônica é uma livre associação entre grandes confrontos e contextos justamente entre 50 e 89. Sem se alongar pela anatomia de uma derrota ou de uma redenção. Inclusive vale acrescentar que nesse período vários craques uruguaios se consagraram no futebol brasileiro: como Pedro Rocha, Pablo Furlán, Rodolfo Rodriguez, Dario Pereyra, Hugo de León e outros.

Sobre o Maracanazo de 16 de julho de 50, diante de farto material disponível irei apenas mencionar o elemento da questão racial mencionado sobre essa partida no clássico “O negro no futebol brasileiro”. Mesmo que o Brasil não jogou bem como admitiu o craque Zizinho e mesmo com a soberba de dirigentes e políticos com o clima de “já ganhou”, o bode expiatório para a derrota foi a negritude de Barbosa, Juvenal e Bigode. Porém um discurso muito injusto e seletivo, pois o capitão uruguaio Obdulio Varela também era negro. Mesmo com os gols todos no segundo tempo, o fato capital que fez os 11 guerreiros uruguaios começarem a derrotar a multidão brasileira foi no primeiro tempo uma bofetada do ‘Negro Jefe’ em um brasileiro. “Bigode, que era uma fera, ficou quieto, sem uma reação.(…) Se Bigode reagisse seria expulso, o Brasil ficaria com dez. E os uruguaios não cruzariam os braços se Mr. Reader mandasse Obdúlio Varela para fora de campo: sairiam todos atrás do capitão, mostrando os punhos para os duzentos e vinte mil brasileiros que se apertavam no Maracanã” (p. 287). O desfecho dessa partida todos conhecem.

Mas Mario Filho também permite resgatar uma pérola que um primeiro ensaio de revanche logo reapareceu no Campeonato Sul-Americano (antigo nome da Copa América) em 1953: “E o Brasil ganhou em tudo: no futebol, no pontapé, no safanão, no bofete. Baixara sobre Ely do Amparo o espírito do Grande Capitão. Era um preto que fazia questão de mostrar que preto não fugia da raia. Exagerando um pouco para vingar Barbosa e Bigode” (p. 302).

Depois veio o duro confronto na Copa de 1970, também amplamente recordado nos últimos dias em comemoração aos 50 anos do Tri, com a grande virada do Brasil superando com talento e improviso a dura marcação uruguaia. Lances memoráveis: a suposta falha de Felix no chute-cruzamento de Cubillas, Tostão se desloca para a esquerda e dá um passe milimétrico para Clodoaldo vir de trás e ocupar a área deixada vazia empatando no fim do primeiro tempo, o quase gol com o drible desconcertante de Pelé em Mazurkiewicz (ex-Atlético-MG), Tostão sai da área de novo para servir Jairzinho e virar o placar, a patada atômica de Rivelino para garantir a vitória e a vaga na final. Aliás, o que nem todos sabem que Pelé correu risco de não jogar a final contra os italianos por agredir com uma cotovelada um uruguaio na lateral de campo, mas ocorreu em um ponto cego que nenhum dos membros do trio de arbitragem pôde enxergar! Fato de grande reclamação dos uruguaios assim como a suposta manobra de bastidores de Havelange de transferir essa semifinal do estádio Azteca na capital para o Jalisco de Guadalajara onde o Brasil fez dele sua casa.

Brasil x Uruguai – Copa do Mundo 1970. Fonte: CBF

Depois mais confrontos quentes: em 76 no Maracanã houve o triangular da Copa do Atlântico. Após muito tempo o Brasil voltou a ter um goleiro negro (Jairo) e precisou de ainda mais garra para virar uma partida, com outro gol do craque Rivelino em sua especialidade, tensa o tempo todo ainda mais depois do apito final com uma pancadaria generalizada. A crônica da confusão anunciada: agora eles que buscavam uma vingança por uma partida anterior. Mas tiveram que esperar mais um pouco, pois em 79 em amistoso no mesmo Maracanã o Brasil aplicou uma das poucas goleadas em uma rivalidade tão parelha: 5 a 1. Já sem Rivelino, outros pilares iam se consolidando como Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. Depois desse, outro torneio alternativo foi o Mundialito do Uruguai de 1981 reunindo os 6 campeões do mundo até aquele momento (exceto a Holanda convidada após recusa da Inglaterra). Entre os treinadores, o Brasil tinha Telê Santana enquanto o Uruguai tinha Máspoli, goleiro de 1950. Final Brasil x Uruguai com grande vitoria do futebol uruguaio e da democracia uruguaia quando pela primeira vez a arquibancada vaiou a ditadura! E pouco depois em 83 teve novo titulo uruguaio primeiro com vitória no Centenário por 2 a 0 (gols de Francescoli e Diogo, ex-Palmeiras) e depois empate em 1 a 1 na Fonte Nova— última das poucas edições de Copa América nesse sistema mata-mata. Para chegar à final o Brasil venceu o atual campeão Paraguai apenas no sorteio após dois empates nas semifinais.

Chegamos finalmente à Copa América de 1989. Dessa vez com sede fixa, o Brasil jogava em casa, mas com muita pressão por estar desde 1949 sem ser campeão continental e desde 1970 sem ser campeão mundial. Os discursos dominantes iam todos na direção da ‘modernização’ com os novos nomes: Lazaroni no banco da seleção, Ricardo Teixeira na CBF e Fernando Collor na presidência eleito em novembro com o retorno de eleições diretas. Assim como dentro de campo começou o que ficou conhecido como “era Dunga”. O tema de abertura da novela “Vale Tudo” não podia ser mais apropriado: “Brasil, mostra tua cara!”. Por outro lado, a recente conquista da Copa do Mundo pela Argentina em 1986 ofuscava que o futebol uruguaio dominou a década no continente por clubes (Libertadores de 1980/82/87/88) e seleção (Copa America de 1983 e 1987).

O Brasil jogando a primeira fase em Salvador teve que lidar com um problema extra-campo que foram as vaias da torcida baiana pelo corte do centro-avante Charles, recém campeão brasileiro pelo Bahia. Vaias que se iniciaram em uma vitória sem sustos contra a Venezuela por 3 a 1. E pelo visto a equipe sentiu a ansiedade em empates sem gols com Peru e Colômbia. E na última rodada reencontrou o caminho das vitórias contra o Paraguai por 2 a 0 em Recife. Enquanto o Uruguai jogando em Goiânia teve mais dificuldades: perdeu para Equador e Argentina por 1×0 e só garantiu a classificação pelo saldo de gols com as vitorias de 3 a 0 sobre Bolívia e Chile.

No quadrangular final jogariam no Maracanã as quatro equipes platinas tradicionais. Se Brasil e Uruguai avançaram com dificuldades em seus grupos, dessa vez venceram com placares idênticos a Argentina por 2 a 0 e o Paraguai por 3 a 0. Quis algum gênio da raça que elaborou o calendário daquela Copa América que assim como em 1950 a decisão do quadrangular valendo o titulo fosse justamente em um dia 16 de julho. (Já que coincidência pouca é bobagem, ai vai uma autêntica ‘jabuticaba’ brasileira, somente em 1950 uma Copa do Mundo foi decidida por quadrangular final ao invés de final por um capricho da CBD! Assim como nos últimos 40 anos de Copa América a única decidida da mesma forma foi essa de 1989 com sede brasileira).

BRASIL 1 x 0 Uruguai: CAMPEÃO DA COPA AMÉRICA, em 16 de julho de 1989. Fonte: Twitter/CBF

De um lado, Lazaroni escalava no 3-5-2 meio time que evoluiria 5 anos depois para a formar a base do tetra em 94. Nomes de peso como Taffarel, Aldair, Mazinho, Dunga, Branco, Bebeto e Romário. Já do outro lado, Oscar Tabarez, treinador de grande sucesso em sua seleção na década de 2010, escalava como destaques o zagueiro Hugo De León (capitão e campeão da Libertadores com o Grêmio em 1983) e uma linha de meio e ataque habilidosa com Paz, Sosa, Alzamendi e principalmente o ‘príncipe’ Enzo Francescoli—quem foi homenageado por Zidane batizando seu filho com esse nome. Como era de se esperar um jogo equilibrado e decidido em tabela pela direita entre Bebeto e Mazinho que termina no cruzamento para Romário se antecipar de cabeça e vencer o goleiro Zeoli.

E depois? No caminho para o tetra em 1994 novamente essa mesma pedra pelo caminho. A surpreendente campanha da Bolívia colocou a segunda vaga em disputa direta entre Brasil e Uruguai no Maracanã. E novamente Romário foi a salvação com dois gols, após grande apelo popular de cobrança ao treinador Parreira que se negava a convocá-lo. Ambos rivais ainda fariam mais duas finais de Copa América, em 1995 e 1999, com uma conquista para cada lado.

Seleção Brasileira nas eliminatórias para a Copa de 1994. Fonte: CBF

 

16 de julho de 1950 Brasil 1 x 2 Uruguai Maracanã, no Rio de Janeiro

Público: 173.830
Árbitro: George Reader (ING)
BRASIL: Barbosa, Augusto e Juvenal; Bauer, Danilo Alvim e Bigode; Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico. Técnico: Flávio Costa
URUGUAI: Máspoli, Matias Gonzáles e Tejera; Gambetta, Obdulio Varela e Rodríguez Andrade; Alcides Gigghia, Julio Perez, Miguez, Schiaffino e Morán. Técnico: Juan López
Gols: Friaça, aos 2 min, Schiaffino, aos 21 min, e Ghiggia, aos 34 min do segundo tempo

16 de Julho de 1989 – Brasil 1 x 0 Uruguai – Maracanã (Rio de Janeiro)

Público: 132.743 pagantes.
Árbitro: Hernán Silva (Chile).
Brasil: Taffarel; Mauro Galvão, Aldair e Ricardo Gomes; Mazinho, Dunga, Silas (Alemão), Valdo (Josimar) e Branco; Bebeto e Romário. Técnico: Sebastião Lazaroni.
Uruguai: Zeoli; Herrera, Gutiérrez, De León e Domínguez; Ostolaza (Correa), Perdomo, Rubén Paz (Da Silva) e Francescoli; Alzamendi e Rubén Sosa. Técnico: Oscar Tabárez.
Gol: Romário, aos 4′ do 2º tempo.

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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. 16 de julho: Brasil x Uruguai em 1950 e em 1989. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 39, 2020.
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