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2006: o batismo na Alemanha

Leandro Batista Cordeiro 30 de dezembro de 2019

O meu pai era um sujeito apaixonado pelo futebol e especialmente pelo Vasco da Gama. Nascido no pequeno município de Mirabela, capital mundial da carne de sol, desde pequeno ele escutava as rádios Tupi e Globo, para acompanhar os jogos do gigante da colina. Por aqui, nas Gerais, seu coração batia mais forte pelo Cruzeiro Esporte Clube. Sempre gostava de lembrar os momentos que viveu no Mineirão em 1962 e em 1976, quando presenciou os feitos celestes sobre o imbatível Santos de Pelé e cia e sobre timaço do Internacional de Manga, Figueroa e Falcão. Em nossas conversas esses dois jogos sempre borbulhavam…

Bem, certamente por isso o futebol se entranhou no meu ser e, após o falecimento do meu velho, em junho de 2003, fiz uma promessa futebolística: iria a todas as copas do mundo após sua morte. Era um dos seus grandes desejos estar presente na Copa da Alemanha em 2006. Fiz por mim e também por ele!

E para atravessar o Atlântico foi preciso vender um fusca 1962. Todo o dinheiro, aproximadamente R$ 3.200, seria usado para comprar as passagens de ida e vinda do velho continente. Foi o meu primeiro e único fusca, um automóvel tão emblemático e que para mim representava a possibilidade de ver Ronaldo e Zidane jogarem ao vivo. Então foi isso, o fusca foi minha ponte entre o Brasil e a Europa; sem ele o atlântico não seria visto de cima pela primeira vez!

Ao chegar ao aeroporto de Genebra, Suíça, encontrei a minha irmã, que ali morava há alguns anos, convivendo com um fanático por futebol, o meu cunhado portista, que também tinha o desejo de ir a um mundial de seleções. Então, após alguns dias na Suíça, organizamos a bagagem, colocamos tudo o que precisávamos no carro (não era muita coisa além de sonhos) e pegamos estrada, em direção a Frankfurt, nosso primeiro destino.

Ao chegarmos a Frankfurt procuramos hospedagem através do sistema Host a Fan, algo criado para que os torcedores pudessem se hospedar em casas de alemães durante a Copa do Mundo. Decidimos ficar em Darmstadt, uma cidade localizada nos arredores de Frankfurt. Foi bem bacana e a um custo bem interessante. Além do mais nos permitiu o contato direto com um morador local, que nos deu algumas dicas de transporte e alimentação. Como marinheiros de primeira viagem, toda e qualquer ajuda era bem vinda!

De Darmstadt para Frankfurt pegamos um trem, algo de certa forma comum em vários países da Europa, que interligam suas cidades através de infindáveis trilhos. Daí, em nossas conversas, sempre vinha à tona: porque são praticamente inexistentes as linhas de trem para transporte de passageiros no Brasil? Até nas Minas Gerais, onde a palavra trem possui tanta representatividade no seio da cultura, os trilhos têm transportado quase que exclusivamente minério e não mineiros. 

Em Frankfurt assisti ao meu primeiro jogo em uma Copa do Mundo de futebol, o encontro entre Portugal e Irã. A cidade foi tomada por portugueses e iranianos, muitos deles imigrantes que viviam na Alemanha. Foi uma experiência única e inesquecível, pois ali eu estava realizando um antigo desejo futebolístico: estar in loco em um jogo do mundial de seleções. Neste momento não importava quais equipes iriam se enfrentar, mas certamente foi especial ver Luis Figo jogar ao vivo, assim como foi especial estar entre portugueses e iranianos na arquibancada. Nunca esquecerei esse jogo e também nunca se perderão os momentos pós-jogo, quando me diverti muito, junto aos milhares de portugueses pelas ruas da cidade, uma em especial, tomada por barraquinhas, onde foi possível comer muitas sardinhas e tomar algumas cervejas lusitanas.

Então foi assim o meu batismo em Copas do Mundo e tenho a sensação que foi ontem que vi o Ronaldo português marcar um gol de pênalti sobre os iranianos! Bem, após o primeiro jogo e as primeiras cervejas, eu tive uma certeza: valeu muito a pena a venda do meu fusca 1962.

A partir do jogo entre Portugal e Irã assistimos outros jogos em outras cidades alemãs: Colônia, Gelsenkirchen, Munique e Dortmund. Foi inesquecível percorrer algumas estradas do país, com destaque para as autobahnen, sem limite de velocidade para os carros. Foi a primeira vez que presenciei um automóvel a mais de 250 km/h passando ao meu lado.

Em Munique dormimos em um camping, uma experiência especial, pois tivemos contato com torcedores de vários países. Ao lado do nosso camping encontramos um grupo organizado de torcedores australianos, The Fanatics, com suas barracas personalizadas e com o sonho de ver sua seleção vencer o selecionado brasileiro. Mas não foi dessa vez! Munique foi tomada de ponta a cabeça pelo verde e amarelo, seja dos brasileiros, seja dos incontáveis australianos, embebecidos pelas cervejas únicas e exclusivas que só a Baviera produz.

Camping em Munique. Foto: Leandro Batista Cordeiro.

De Munique fomos para Colônia e Gelsenkirchen. Nestas cidades não conseguimos ingressos para assistir jogos no interior dos estádios. Assim, a alternativa eram os festivos bares ou as Fan Fests, eventos organizados pela FIFA.  

Em Colônia algo nos chamou a atenção logo na chegada à cidade: inúmeras bandeiras inglesas espalhadas pelos mais diversos lugares. Não havia uma ponte sequer sem a bandeira do english team. Esta foi, indubitavelmente, uma das cenas mais impactantes que já presenciei em Copas do Mundo. A Inglaterra acabava de enfrentar a Suécia e as ruas de Colônia estavam em festa, uma festa regada com muita cerveja e camisas brancas e amarelas.  

Já em Gelsenkirchen assistimos ao jogo entre Portugal e México na Fan Fest, pois não tínhamos ingressos e muito menos condições financeiras para comprá-los, pois com os cambistas o valor ficava entre 300 e 400 euros, e aí nossa cerveja, nossa comida e estadia ficariam prejudicadas. Bem, decidimos comer, beber e dormir! Após o jogo na Fan Fest, que, aliás, era gratuita, as ruas da cidade do Schalke 04 ficaram abarrotadas de portugueses, mas especialmente de mexicanos, com seus chapéus, máscaras e instrumentos musicais festivos.

Fan Fest em Gelsenkirchen. Foto: Daniel Ullrich.

Em Gelsenkirchen procuramos também o sistema Host a Fan de estadia e encontramos um quarto disponível em uma casa. Fizemos a reserva pela internet e para lá nos dirigimos. Ao chegarmos nos deparamos com um alemão alto, de cara fechada, mas que nos recebeu bem. Tomamos um café e ele nos levou para o quarto. Aí veio certo temor, ou horror: o nosso quarto ficava em um porão; para acessá-lo havia uma pequena portinhola que por sua vez dava acesso a uma escada, uma escada escura e muito estreita e com cabeças entalhadas de alguns animais: definitivamente parecia uma cena de filme de terror. Ao chegar ao quarto, mais cabeças de animais e o coração parecia querer sair pela boca. Despedimo-nos do nosso anfitrião, demos boa noite uns aos outros (com um ar de despedida) e fomos dormir, sem a certeza que iríamos acordar vivos no outro dia. Mas acordamos ao raiar do sol, demos uma risada marota uns para os outros e celebramos o fato de estarmos respirando… ufa, podemos ir para Dortmund.

Dortmund, o nosso último destino na Copa do Mundo em 2006. Foi na cidade do poderoso Borussia que pude realizar algo inesquecível: ver Ronaldo, o fenômeno, jogar ao vivo. Ronaldo é a síntese do atacante genial; por isso, presenciar seu gol no Signal Iduna Park foi arrebatador, mesmo contra a inexpressiva seleção japonesa, mas isso era o que menos importava naquele dia. Ao final do jogo saímos para festejar nas ruas da cidade, junto com brasileiros, alemães e japoneses, pois, mesmo derrotados, os orientais pareciam ter motivos para tomar as ótimas cervejas germânicas.

Nós e os torcedores do Japão. Foto: Leandro Batista Cordeiro.

Esse brasileiro com os braços abertos sou eu, um norte-mineiro apaixonado pelo futebol e pelas coordenadas geográficas mundo afora. Quando essas duas paixões se juntam é a oportunidade de desancorar e navegar para outros lugares, para encontrar pessoas, cidades, estradas, comidas e cervejas para, quem sabe um dia, poder contar boas histórias para os netos!

Uma delas será a próxima história, da Copa do Mundo da África do Sul, em 2010, quando não precisei vender um fusca para ver a Espanha de Iniesta, Xavi e David Villa no estádio Ellis Park, assim como para conhecer Johanesburgo, o simbólico bairro de Soweto, o impactante museu do Apartheid e, especialmente, o oceano índico.

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Leandro Batista Cordeiro

Foi jogador de futebol amador, varzeano e rural e integrou equipes infantis, juvenis e juniores do América Futebol Clube, Associação Esportiva Santa Tereza, Associação Atlética Cassimiro de Abreu e Associação Desportiva Ateneu. Apreciador de uma boa prosa futebolística, acompanhada de boas cervejas e de bons companheiros! Atualmente é professor do Curso de Educação Física da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM- Diamantina-MG). Doutor em Estudos do Lazer - UFMG. Membro do GEFuT e, antes de tudo, de alma futeboleira e coração azul celeste!  

Como citar

CORDEIRO, Leandro Batista. 2006: o batismo na Alemanha. Ludopédio, São Paulo, v. 126, n. 34, 2019.
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