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Vandalismo e Terrorismo em 2013/2023: o que torcedores tem a ver com isso?

Fabio Perina 13 de abril de 2023

Introdução

Esse novo texto emerge como a articulação de dois elementos muito polêmicos e que chegam a ser pouco recorrentes no tema da política “regular”, porém restrito a momentos de grandes mobilizações populares. E menos recorrentes ainda seus vínculos com o tema do futebol. Afinal, a abordagem midiática já tem imensa distância de lidar com torcedores em suas práticas “regulares”, imaginem então nesses momentos excepcionais (conforme desenvolverei melhor na segunda parte). Evidente que ao se completar uma década das Manifestações de junho de 2013 vários elementos daquela intensa conjuntura são agora revisitados, seja para interesse da intelectualidade, da militância ou simplesmente como material informativo. Os dois elementos que destaco foram ainda mais intensamente discutidos desde a sociedade civil, meios de comunicação e agenda oficial de governos diante da invasão de 8 de janeiro contra a Praça dos Três Poderes. Passarei do tema da política ao futebol da primeira para a segunda parte e com um certo “espelhamento” das reflexões cruciais de um para o outro.

Invasão 8 de janeiro
Danos ao patrimônio resultantes das invasões na Praça dos Três Poderes em 2023. Fonte: Wikipédia

Primeira Parte

Certamente o 8 de janeiro foi uma insurreição bolsonarista que fomenta pelo menos mais duas controvérsias de partida para analisa-la: 1a-) tendo como respaldo a apologia do bolsonarismo à ditadura militar, se foi uma tentativa de golpe clássico (tipo “assalto ao aparelho de Estado”). Ou 1b-) “mero” desgaste do governo recém empossado visando demonstração e até acúmulo de forças para futuras insurreições. 2-) se além do bolsonarismo também deve ser caracterizado como fascismo, golpismo, vandalismo e/ou terrorismo. Penso que todos os quatro elementos são cabíveis e indispensáveis para a análise e ação política.

Sobre os dois primeiros (fascismo e golpismo), esses são mais “fáceis” de serem imputados à direita ao invés da esquerda pelo simples reconhecimento de condições objetivas da realidade. Como premissa, não há e não houve em nenhum momento luta por um golpe através de uma suposta extrema esquerda e sequer uma esquerda marxista ou anarquista que fosse majoritária no campo das esquerdas. Por outro lado, não resta dúvidas que nessa cerca de uma década o bolsonarismo se tornou o centro da extrema direita. E até mesmo da centro-direita como sua força auxiliar passando de ocasional a cada vez mais regular. (ressalva: A própria construção do meu texto é paradoxal pela banalização pelos discursos midiáticos do termo polarização. Sendo evidente que houve, e ainda há, polarização eleitoral. Contudo, rigorosamente não há polarização política: simplesmente por haver uma extrema direita, mas não uma extrema esquerda. Para isso darei mais destaque à chave de leitura de seletividade para mostrar que não há dois pólos radicais como o termo induziria!). Essa é por si só a primeira distinção mais óbvia que deve ser feita limpando o terreno da discussão. Assim como outras premissas cruciais que não se pode caracterizar os bolsonaristas como “loucos” (o que acarretaria sua des-responsabilização penal), nem seus discursos como “liberdade de expressão” (o que acarretaria na permissividade de ousarem discursos e até métodos cada vez mais radicais enquanto não encontram resistência).

A seguir, a partir de onde meu texto mais se desenvolve, já sobre os dois últimos (vandalismo e terrorismo) tratarei de duas amostras de textos de apoio que convergem a partir de um posicionamento de esquerda marxista nos portais virtuais “Esquerda Online” e “Blog da Boitempo”. Sendo seus nomes muito sugestivos das reflexões que fomentam:

O primeiro texto de apoio, “Cinco diferenças entre ocupação e invasão”, possui caráter mais prático e de marcar posição no discurso político que é preciso tratar ocupação da esquerda e invasão da direita como distinção ao invés de paralelismo através de 5 pontos a seguir. (Ainda sobre a ressalva: paralelismo que é fruto da cobertura midiática descuidada ou proposital para induzir a opinião pública a “demonizar” ambos tipos de manifestação). Primeiro, o respaldo constitucional, pois há o direito à manifestação através da ocupação de áreas públicas e áreas privadas improdutivas. Segundo, a demanda, pois na ocupação se reivindica cidadania e direitos sociais em contraste à invasão que impôs privilégios. Terceiro, nos métodos, pois na ocupação a violência é circunstancial como efeito colateral da infiltração paramilitar e até mesmo da “aberta” repressão policial-militar. Quarto, o perfil de negociação, pois a ocupação visa institucionalizar uma demanda e um canal de diálogo ao invés da “aberta” ameaça. Quinto, por fim, a base social dos ativistas e por consequência os métodos de organização interna, com a tendência de ocupação ser de classes populares e a invasão em questão de classe alta. (Obs: e aqui acrescento que o terceiro e o quinto argumentos se somam como os mais polêmicos, pois a seletividade penal ordinária dos aparelhos repressivo e judiciário também se reproduz nos casos extraordinários de manifestações políticas).

Enquanto o segundo texto de apoio, “Do terrorismo, do crime de terrorismo e de seu uso político”, é um pouco mais acadêmico do que militante. Trata do deslocamento do termo na dinâmica histórica dos últimos 10 anos e seu processo de “evolução” de estigmatização verbal a tipificação penal na conhecida Lei Anti-Terrorismo. Menção às conjunturas de crise política que é preciso comparar, pois as manifestações de 2013 colocam condições paradoxais. Nas quais um governo eleitoralmente de esquerda em fase defensiva (com evidente apoio da direita parlamentar) buscou legitimar um dispositivo que criminalizava a militância de esquerda nas ruas. Porém a ação da esquerda parlamentar conseguiu barrar um complexo artigo sobre motivação político-ideológica que abriria imensa seletividade penal para a direita usá-lo contra a esquerda, e assim restringiu a definição de terrorismo a motivação étnico-racial. Indo para as manifestações de 2023, ironias do destino ser essa cautela institucional da esquerda naquele momento que agora dificulta que a extrema-direita seja tipificada como terrorismo.

Invasão 8 de janeiro
Danos ao patrimônio resultantes das invasões na Praça dos Três Poderes em 2023. Fonte: Wikipédia

Segunda Parte

Após essas considerações do tema da política e indo para seu impacto no tema do futebol, apesar de imensos retrocessos nos 10 anos de 2013 a 2023 na política em geral (seja nas instituições ou nas ruas) e até mesmo no direito a torcer (principalmente contra as torcidas organizadas), cabe mencionar algum alento que esses 10 anos são do desenvolvimento e acúmulo de forças das torcidas antifascistas (além da consolidação da ANATORG como representação das torcidas organizadas, porém não será aqui analisado). Diante de uma muito breve revisão bibliográfica para o assunto, vários artigos fizeram um uso lateral de um episódio sintomático, cujo uso central dele desenvolvido por Lopes e Marcello (2021) será agora retomado. O episódio foi entre maio e junho de 2020 com a escalada polarizada de manifestações fascistas e antifascistas, sobretudo em São Paulo. O estudo de alguns veículos da grande mídia mostrou um surpreendente deslocamento dos sentidos sobre manifestações torcedoras: indo do vandalismo antes a defesa da democracia agora. Havendo uma convergência pontual: muito provisoriamente a grande mídia deixou de lado as divergências habituais de estigmatização contra as torcidas (sejam antifascistas e sobretudo as organizadas) diante de uma demanda imediata em comum contra o governo Bolsonaro. Embora a reconstituição do artigo não deixe de apontar paradoxos: como que a grande mídia seguiu buscando associar as torcidas com violência e vandalismo e como que as manifestações não tiveram adesão consensual e homogênea de torcidas organizadas e torcidas antifascistas devido a suas mútuas divergências.

Como artigo complementar, Caldas et al (2022) problematizam o que posso chamar de um duplo estranhamento simultâneo para mídia e para governo: o primeiro sem conhecer as nuanças entre organizadas e antifascistas tentou enquadrar tudo como “organizadas”; enquanto o segundo sem conhecer os antifascistas tentou enquadrar tudo como “terroristas” levantando essa acusação política (e deixando uma margem a uma possível tipificação penal). Para além do óbvio sensacionalismo que a comunicação instantânea está sujeita, acrescento que são visões binárias diante do desconhecido para tentar obter uma certa segurança cognitiva e um certo viés de confirmação (o fato é novo, mas o “diagnóstico” é previsível: aconteça o que acontecer, se tem “organizadas” a culpa sempre será delas). Acrescento também que essa acusação é totalmente oposta a outra com certa recorrência de acusar as torcidas organizadas de serem supostamente fascistas pela mera definição simplista de “intolerância com o outro”. Ora, não parece suspeito esse “diagnóstico” midiático que define taxativamente as torcidas organizadas como fascistas nos seus conflitos entre si porém as define como antifascistas em seus protestos?! Portanto, é sintomático que há um dispositivo midiático-governamental pronto a agarrar termos paradoxais (ou “significantes vazios”) e atrelá-los a torcidas conforme maior repúdio ele despertar na opinião pública. Como tentativa de esvaziar em poucos dias manifestações adquirindo acúmulo de forças (tal qual nas Manifestações de Junho houve um rápido deslocamento em poucos dias através do “sem violência” com a grande mídia aplicando a sua seletividade ao que é um “bom” protesto e um “mau” protesto).

Desfecho

“A Galoucura, a Gaviões da Fiel e a Império Alviverde cruzaram Estados removendo os bloqueios bolsonaristas, fazendo o que PRF deveria ter feito desde começo. É bem verdade que as torcidas organizadas que desfizeram os bloqueios, fizeram pelo futebol, pelo direito de torcer, mas não podemos desconsiderar que também fizeram pela democracia, direta ou indiretamente, pois estavam desmobilizando os atos antidemocráticos – golpistas – da extrema-direita.”

“Em resumo, eu fico fortemente impactado quando vejo a mesma Polícia Militar que reprime violentamente uma expressão festiva de uma torcida periférica permanecer impassível e inerte diante de crimes cometidos por uma elite branca, rica, fascista. E, por mais que minha formação humanística e defensora dos direitos humanos defenda na verdade que a Polícia Militar seja mais respeitosa com a periferia, tem dias que, por breves segundos, eu torço mesmo é que essa mesma Polícia Militar haja com golpistas com o mesmo ímpeto inexplicável que ela costumar agir com os torcedores organizados. Afinal, se defendem mesmo intervenção militar, ao menos que eles sintam o gosto amargo da opressão que nós torcedores somos tão acostumados a sentir há tanto tempo.”

Por fim, conforme os fragmentos acima, menciono a contribuição de dois importantes textos divulgados aqui no Portal Ludopédio, sobre o episódio no início de novembro de 2022 das caravanas de torcidas organizadas agindo no “fura-bloqueio” contra golpistas. Um momento de imensa repercussão midiática pelo agudo encontro do tema futebol com o tema política estar tão concentrado como raramente se vê em um único dia. Levando à suprema ironia que os grupos que sempre foram estigmatizados com o vandalismo foram os que cumpriram o que deveria ser o dever das autoridades policiais e restituíram a normalidade. Em um, Victor Figols traça um mapeamento das ações e declarações das organizadas Galoucura, Gaviões e Império e retoma um balanço de cerca de uma década diante das convergências de ultras no Egito e na Turquia nas intensas insurreições populares e do acúmulo de forças das torcidas antifascistas brasileiras. Já em outro, já antecipado em parágrafos anteriores, Phelipe Caldas problematiza a seletividade inerente ao aparelho repressivo com a distinção de tratamentos para um mesmo tipo de ocorrência de ação direta conforme diferentes grupos a expressam. Não sendo novidade a permanente criminalização contra torcidas organizadas e torcidas antifascistas no dia a dia dos estádios e em seu trajeto até eles assim como em dias excepcionais de manifestações políticas. Como última reflexão, cabe explicitar uma distinção que se nos discursos da grande mídia a ascensão do autoritarismo social e institucional é um tema recente, para o dia-a-dia de torcidas isso é uma condição “regular” faz tempo. Portanto, há um imenso potencial ainda sub-aproveitado de formação crítica e intervenção política através de uma maior convergência entre torcidas organizadas e torcidas antifascistas.

Bibliografia de Apoio

LOPES, Felipe Tavares Paes; MARCELLO, Murilo Aranha Guimarães. Comunicação, futebol e antifascismo: a cobertura jornalística das manifestações políticas de rua de torcedores organizados em 2020. Logos: Comunicação e Universidade. Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 60-75, 2021.

CALDAS, Phelipe; ANDRADE, Marianna C. Barcelos de; SOUZA JUNIOR, Roberto. Entre Torcidas Organizadas e Torcidas Antifascistas: considerações sobre as políticas do torcer e suas resistências. FuLiA / UFMG. Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 52-81, 2022

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Vandalismo e Terrorismo em 2013/2023: o que torcedores tem a ver com isso?. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 13, 2023.
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