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2014: porque nenhum evento é sempre passado, presente ou futuro

Leandro Batista Cordeiro 27 de abril de 2020

O segundo gol do Uruguai contra o Brasil, na final da Copa do Mundo de 1950, marcado por Ghiggia aos 32 minutos do segundo tempo, em pleno Maracanã, foi como a picada de uma cobra venenosa, que nos anestesiou por um tempo e nos levou à morte, logo depois. Aliás, uma morte sem direito à ressurreição!

Bem, eu não estava no Maracanã, muito menos no útero da minha amada mãe em 1950. Nasci em 1974, ano em que os alemães ganharam o título em seu próprio quintal, enfrentando na final uma laranja nada mecânica, a Holanda, dos geniais atacantes Rensenbrink, Cruyff e Rep. Mas, como dizem os europeus, se você está com algum problema, chame os alemães que eles resolvem… E foi isso que Franz Beckenbauer, Gerd Müller e cia. o fizeram, vencendo os holandeses por 2 a 1.

Passados 64 anos da nossa sofrida derrota no Maracanã, o Brasil seria novamente sede de um mundial de seleções e poderia lavar a alma para, futuramente, podermos contar outra história (mais feliz) para os netos. Mas, novamente os alemães, organizados, impiedosos, com um meio de campo impressionante e com outro Müller no comando do ataque, nos mandaram para as capas dos jornais dos quatro cantos do mundo. Enfim, o resultado todos nós sabemos, e os alemães, talvez com a energia dos próprios orixás baianos, pois treinaram nas redondezas de Porto Seguro durante o mundial, deixaram marcas indeléveis no gramado e nas arquibancadas do Mineirão.

Vale aqui um parêntese para lembrar que a Copa de 2014 teve preliminares conflituosas e intensas, especialmente se voltarmos nosso olhar para a esfera política, social e econômica do país, inclusive com a erupção de um movimento contrário à realização do evento em solo nacional, que se deu na academia, na mídia em geral, na internet mas, especialmente, nas ruas.

De toda maneira, a Copa de 2014 seria a minha terceira vez in loco em um mundial de seleções. Porém, como não estava muito empolgado com o evento, muito menos com a seleção brasileira, não fiz muito esforço para estar presente em vários jogos e com isso consegui ingressos somente para duas partidas, uma na capital federal e outra na capital dos mineiros.

De Diamantina até Brasília, são aproximadamente 720 km de distância. Esse percurso foi percorrido junto com a minha mãe, meu primogênito e um sobrinho. Assim, mais uma vez não estava sozinho em uma Copa do Mundo e a companhia de três pessoas muito queridas foi algo especial, principalmente porque seria a primeira vez que eles estariam dentro de um estádio em um mundial de seleções, ou melhor, dentro de um mar de colombianos, que viajaram de tudo quanto é jeito do seu país para o Brasil; algo definitivamente contagiante e inesquecível, pois parecia que o Mané Garrincha tinha se transformado no Estádio Metropolitano de Barranquilla.

O jogo, como já esperado, reuniu força, velocidade e muita dedicação dos jogadores de ambas as equipes, com alguns destaques individuais como James Rodrigues, Juan Quintero, Téo Gutierrez, Carlos Sanchez e Juan Quadrado pelo selecionado colombiano e Gervinho, Yayá Touré e Didier Drogba (este começou no banco) pelos elefantes africanos. No final, 2 a 1 para os sul-americanos e uma festa regada a muitos cânticos, dança e muita cerveja no planalto central; nesse dia, o eixo monumental da capital federal foi embebecido pela alegria colombiana. Era como se nossos hermanos latino-americanos desejassem gritar: nós estamos aqui e encontraremos vocês pela frente! Realmente nos encontraram, e perderam por 2 a 1, em um jogo quente e polêmico nas quartas de final.

Estádio Nacional Mané Garrincha
Minha mãe, filho e sobrinho no Estádio Nacional Mané Garrincha. Foto: Acervo pessoal.

Enfim, fica a lembrança da festa colombiana em Brasília, mas também do golaço de Gervinho pela Costa do Marfim, quando driblou três colombianos, deixando Carlos Sanches no chão, e bateu no canto direito do ótimo goleiro Ospina. Um gol como esse, visto ao vivo, é uma experiência estética muito bacana, que alguns seres humanos têm a capacidade técnica, física e cognitiva de nos oferecer de vez em quando! Um brinde a tais humanos…

Após a festa colombiana em Brasília, nosso destino agora seria Belo Horizonte, onde a Costa Rica enfrentaria a Inglaterra, no Mineirão, o templo futebolístico das gerais. No meu caso, quando adquiri os ingressos para essa partida, foi uma grande felicidade, porque sempre tive o interesse de estar junto a torcedores ingleses na arquibancada e, além disso, esse jogo marcaria a despedida de um meio-campista genial do english team: Steven Gerrard, um jogador híbrido (assim como Iniesta, Modric e De Bruyne), que compreende o que é atacar, defender, contra-atacar e ser contra-atacado para, a partir disso, executar muito bem o jogo de futebol, seja do meio de campo para trás ou para frente. Enfim, jogadores com esse adjetivo (híbrido) são raros e, quando surgem, deixam suas marcas pelos gramados mundo afora.

E por que Gerrard se despedia nesse jogo? Bem, porque a partida não valia nada para a seleção da rainha, pois a Inglaterra já não tinha qualquer chance de classificação para as oitavas de final da Copa. Isso mesmo, uma seleção com Gerrard, Lampard e Rooney já estava com o seu destino traçado: alçar voo sobre o Atlântico e retornar para casa. E isso ocorreu porque, ao longo dos jogos do grupo D, as coisas não saíram bem para os ingleses e, ao contrário, caminharam surpreendentemente bem para os costa-riquenhos.

E assim, Los Ticos, como eram chamados os jogadores da Costa Rica, aprontaram grandes façanhas na primeira fase, vencendo o Uruguai por 3 a 1, a Itália por 1 a 0 e empataram o jogo com a poderosa Inglaterra por 0 a 0, ou seja, enfrentaram três seleções campeãs do mundo e, a despeito de todo e qualquer prognóstico, Keylor Navas, Bryan Ruiz, Christian Bolaños e, especialmente, Joel Campbell, mudaram o curso da história do grupo D na Copa de 2014, coisas que o futebol nos oferece de quando em quando, e que o tornam tão especial.

Um fato que gosto de lembrar do jogo entre Inglaterra e Costa Rica é o momento em que os ingleses cantaram God Save The Queen. No Mineirão não havia muitos ingleses, talvez em razão da desclassificação antecipada da seleção. Mas, os que ali estavam, cantaram em alto e bom tom o hino de seu país; bem, como ficamos muito próximos do local onde os britânicos estavam aglomerados, posso afirmar que foi uma boa experiência, não como escutar os Beatles, os Rolling Stones, o Queen, o Pink Floyd ou o Led Zeppelin, bandas inglesas que muito aprecio, mas os caras na arquibancada também são bons e you never walk alone, cantada pelos torcedores do Liverpool em Anfield, especialmente pelos que habitam The Kop, é um exemplo concreto de como a música ganha contornos únicos e especiais em um estádio de futebol. 

E para não levar uma na canela da minha companheira, e ela sabe muito bem como usar chuteira de trava alta e chegar junto (tipo Gennaro Gattuzo), não posso deixar de dizer que o jogo entre Inglaterra e Costa Rica foi a primeira partida em uma Copa do Mundo que tive a sua especial companhia, pois tanto na Alemanha em 2006, quanto na África do Sul em 2010, a minha esposa Cláudia foi muito generosa comigo, ao ficar no Brasil e cuidar dos meus dois filhos (em 2006, o João Gabriel tinha apenas 4 anos e, em 2010, a Helena tinha 1 ano de vida). Cá entre nós, alguns amigos me dizem que sempre tenho filhos em períodos estratégicos (quase como uma periodização tática bem feita); ora, como um bom boleiro, eu lhes digo que é uma mera coincidência, coisa do futebol, sem nenhum tipo de segundas intenções. E vida que segue…

 jogo entre Inglaterra e Costa Rica
Esposa, filho e sobrinho no Mineirão: jogo entre Inglaterra e Costa Rica. Foto: Acervo pessoal.

Após o jogo no Mineirão voltamos para Diamantina. A partir daí acompanhei as partidas da Copa do Mundo pela televisão e sobre dois jogos escrevo os próximos parágrafos.

Os 7 a 1 que o Brasil sofreu na semifinal, contra a poderosa equipe alemã, foi um resultado evidentemente inusitado no contexto do futebol de seleções, especialmente em uma Copa do Mundo, dentro do nosso próprio terreiro. Mas, nenhuma macumba ou mandiga foi suficiente nesse dia. Que não tínhamos uma seleção equilibrada e muito qualificada ao nível técnico-tático, todos nós sabíamos, e também sentíamos a falta de um grande líder em campo, capaz de chamar na chincha os demais jogadores; além disso, quando nosso treinador, Felipão, resolveu armar nossa equipe com Bernard e Hulk abertos nas pontas, aí a vaca foi pro brejo, afinal os alemães jogavam por dentro, com uma meia cancha fortíssima, de uma geração de jogadores que se entregaram na busca pelo título. Não deu outra, foi algo avassalador, mas não nos esqueçamos de José Saramago: a derrota tem algo positivo: nunca é definitiva. Em contrapartida, a vitória tem algo negativo: nunca é definitiva. Quem sabe aprendemos algo com o mestre português!

Costa do Marfim
Gervinho, na partida Costa do Marfim e Colômbia, em 19 de junho de 2014, na Copa do Mundo sediada no Brasil. Foto: Wikipedia.

O outro jogo trata-se da final da Copa de 2014, entre Alemanha e Argentina, que colocava frente a frente duas seleções que já haviam se enfrentado duas vezes consecutivas em uma final de Copa do Mundo, em 1986, no México, e em 1990, na Itália. No estádio Azteca, deu Argentina, em uma campanha marcada pela genialidade e astúcia de Maradona. Já no Estádio Olímpico de Roma, os germânicos venceram por 1 a 0, com a tropa sendo comandada por Lothar Matthäus.

Já em 2014, seria o embate entre a genialidade de Messi, e da boa equipe argentina, e a potente e intensa seleção alemã, com um seleto grupo de jogadores: Neuer, Hummels, Schweinsteiger, Müller, Kroos, Ozil, Klose e Gotze, sendo este o jovem de apenas 22 anos a marcar o gol do título na prorrogação, depois de muita batalha em campo.

É verdade que a Alemanha teve dificuldades durante a Copa e os jogos contra Gana e Argélia demonstram isso. Mas em um mundial tal situação não é incomum, ou seja, os campeões também sofrem. E foi assim também na final em 2014, após um jogo duríssimo contra os argentinos, e de um gol perdido por Higuain ainda no primeiro tempo (nunca mais a ser esquecido do lado de lá do Rio da Prata), que os alemães tornaram-se tetracampeões do mundo.

Pois bem, da minha parte torci muito para os argentinos e para Messi, mas o Maracanã não foi palco para a vitória latino-americana, não sendo dessa vez que o genial canhoto da camisa 10 se tornaria campeão do mundo de futebol pela sua seleção nacional. Fazer o quê? Seguir em frente, afinal o tempo e o futebol nos ensinam, dia após dia, que nenhum evento é sempre passado, presente ou futuro!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Batista Cordeiro

Foi jogador de futebol amador, varzeano e rural e integrou equipes infantis, juvenis e juniores do América Futebol Clube, Associação Esportiva Santa Tereza, Associação Atlética Cassimiro de Abreu e Associação Desportiva Ateneu. Apreciador de uma boa prosa futebolística, acompanhada de boas cervejas e de bons companheiros! Atualmente é professor do Curso de Educação Física da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM- Diamantina-MG). Doutor em Estudos do Lazer - UFMG. Membro do GEFuT e, antes de tudo, de alma futeboleira e coração azul celeste!  

Como citar

CORDEIRO, Leandro Batista. 2014: porque nenhum evento é sempre passado, presente ou futuro. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 39, 2020.
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