150.13

3 anos do histórico River-Boca (muito além da final em Madri)

Fabio Perina 9 de dezembro de 2021

“No hay público visitante, no hay equipo visitante, no hay juego, no hay derrota. Nuestro fútbol ha dejado de existir. Se ha transformado en una interminable historia que sucede en fiscalías y decenas de estudios de televisión”.

Nas campanhas dos dois clubes no mata-mata rumo à final da Libertadores de 2018 o Boca passou pelo Libertad-PAR e pelos brasileiros Cruzeiro e Palmeiras. Já o River teve confrontos ainda mais duros contra os rivais domésticos Racing e Independiente e depois uma épica “remontada” de 0-1 na primeira partida para 1-2 de virada nos minutos finais contra o Grêmio fora de casa.

Boca River 2018
Fonte: Reprodução / Conmebol

Definido o pareamento da final entre Boca e River, foi celebrada pela mídia esportiva, provavelmente com a europeia incluída, como a maior final de todos os tempos já que Real Madri x Barcelona não chegaram a decidir uma Champions League e Brasil x Argentina não chegaram a decidir uma Copa do Mundo. Na minha modesta percepção não é exagero tratar essa grande final como o fim de uma era de um futebol popular como o conhecíamos, mas também marca um estado de excitação que dificilmente alguma partida posterior pudesse alcançar. O único partidazo sem revanche. Uma ruptura maior até do que a pandemia. E que ainda por cima foi o ponto de não retorno que virou a página de tudo que se passara antes que havia de inédito para tudo depois ser apenas simulacros.

“Fueron 40 días en los que los hinchas de River y los de Boca pasaron por todas las emociones posibles hasta la última, la desconocida: la felicidad y la tristeza de ganar y de perder la final más importante de todos los tiempos contra tu clásico rival. Antes hubo días de ilusión, días de nervios, de miedos, de desilusión, de bronca, de impotencia, de incertidumbre, de ilusión otra vez. (…) el fútbol, tal como lo conocíamos, se acabó y empezó uno nuevo, uno que nunca alcanzará, que en todo caso será una sucesión de proyecciones de partidos que ya se jugaron, de sensaciones ya conocidas, de victorias y derrotas y empates y finales y campeonatos y hasta descensos. Todo es poco al lado de este partido que, digan lo que digan, ya no tendrá revancha. Que se jugó con desventaja deportiva, de visitante y en campo neutral, que tuvo absolutamente todo lo que un partido podría tener y más también. El mundo ya no fue ni será el mismo.”

O desfecho dessa finalíssima dentro de campo foi com uma vitória por 3 a 1 de virada, com os gols históricos sendo marcados por Pratto, Quintero e Pity Martinez. Decidido apenas no último minuto da prorrogação. Porém jogada em Madri. Reconstituir uma série de abusos e negligências fora de campo que levaram a essa situação excepcional será o objetivo a seguir nas próximas linhas do motivo que o 9/12 se torna inesquecível, vide a primeira citação de como o futebol virou refém de tantos interesses políticos e jurídicos. Embora felizmente também com um impacto clubístico “inimitável”. Uma finalíssima que alçou o treinador Marcelo Gallardo (quem simplesmente disse “no hay nada más que esto”) como o maior vencedor na história do clube e figura sempre lembrada pela imprensa brasileira em especulações de uma contratação milionária. Mas há muito mais desse contexto de tanta imersão para se recordar…

Boca River 2018
Fonte: Reprodução / Conmebol

Na Bombonera, um eletrizante 2 a 2, com gols de Ábila e Benedetto para o Boca e de Pratto e Isquierdoz (contra) para o River. Ironicamente essa primeira partida estava marcada para um sábado, dia 10 de novembro, porém adiada por fortes chuvas para o dia seguinte. Tudo se decidiria no Monumental, em um sábado dia 24 de novembro, porém a partida esteve incerta quanto ao seu início por incidentes com o ônibus visitante e finalmente adiada. Daí se seguiu uma patética sequência de anúncios de adiamentos paliativos pela Conmebol: em 2 horas para evitar a dispersão de torcedores de um estádio lotado, para o dia seguinte e finalmente para uma data incerta mediante maior negociação. Sendo que no final do sábado houve um acordo verbal entre os presidentes dos dois clubes, Rodolfo D’Onofrio e Daniel Angelici, com o aval da Conmebol de jogarem no dia seguinte. Porém no domingo o dirigente do Boca traiu o acordo e estava decidido a se negar a jogar a espera de uma decisão judicial diante do precedente de 2015 (que veremos nas últimas linhas).

O incidente (ou “bochorno”) nos arredores do Monumental na chegada do ônibus com os jogadores do Boca foi apedrejado por conta de uma escolta policial incompetente que fez o veículo desviar a rota de praxe e atravessar uma multidão adversária repleta de torcedores do River. E aqui lido com o termo “incidente” por ser o que menos criminaliza os torcedores, ou seja, que menos isola a questão como violência direta, mas também faz enxergar a violência estrutural prévia que a tornou possível e veio à tona como mais visível. Algo que já aprofundei um esboço teórico em outra ocasião. Parte do lado tragicômico da sequência de mudanças de datas coube ao presidente Maurício Macri, quando solicitou que a segunda partida fosse antecipada do dia 31 para 24 de novembro alegando que no final do mês com a reunião mundial do G20 na cidade (e, portanto, com importantes chefes de Estado) não haveria efetivo policial de segurança suficiente para dois eventos de grande porte. De imediato a cobrança recaiu intensamente sobre Macri, pois sequer garantiu a segurança da partida da Libertadores mesmo em dia isolado ao outro evento.

Daí é preciso explicitar os vínculos entre economia e segurança e a tendência de intensa publicidade política em cima de instrumentos de segurança. Nunca esquecer que a trajetória política de Macri como grande empresário teve antes de entrar na política uma escala como presidente do Boca para buscar popularidade nos anos 90. Mesma época em que sozinho liderou uma primeira tentativa de transformar os tradicionais clubes associativos da Argentina em clubes-empresas. Por coincidência ao contexto de 2018 que reconstituímos, novamente naquele final de ano, já na presidência nacional, tentou sua última cartada desse projeto pessoal, porém felizmente derrotado outra vez tanto por dirigentes e sócios de diversos clubes quanto por parlamentares. A imagem pública de Macri se aproxima muito de Infantino de intensa “des-politização” do futebol e de diversas questões. Vide naquela conjuntura o presidente da FIFA ser um dos convidados “aleatórios” na reunião do G20.

Ampliando essa questão do estudo de caso para uma análise mais ampla, esse incidente fomentou fortes rumores de interferência política mais ampla através de policiais da província supostamente querendo prejudicar o governo federal com essa alteração de rota da escolta que levou a uma situação aparentemente sem controle. Afinal como premissa geral não interessa ao policiamento acabar com os conflitos entre torcedores e o consequente apelo midiático de combate à violência, pois perderia financiamento dos clubes pelos gastos com efetivos e deixaria de ter esse espaço oculto para castigar os próprios policiais por mau comportamento. O futebol de massas já naturalizou efetivos policiais que se multiplicaram com centenas ou até milhares de soldados dentro de um estádio (que paradoxalmente encolhe cada vez mais quanto a lotação de torcedores) e em seu entorno. E com instrumentos de repressão cada vez mais contundentes que aumentam em proporção à redução dos direitos dos torcedores. No entanto, sem que isso tivesse ao menos uma contrapartida da redução de incidentes.

Evidente que após o incidente a mídia brasileira e principalmente argentina se apoiaram em narrativas catastróficas de sempre (ou “profecias auto-realizáveis”) com uma maldita generalização misturada a colonialismo como se “nós, sul-americanos, não merecêssemos organizar uma partida tão importante”. (Obs: embora nos últimos dias uma autoridade responsável admitiu que o motivo do apedrejamento foi muito mais uma reação instintiva de momento e não um planejamento criminoso como a mídia sempre buscar tentar forjar na narrativa) Pouco se falou como atenuante que, em contraste aos poucos torcedores em poucas dezenas no incidente, todos os demais torcedores em dezenas milhares dentro do estádio aguardaram pacientemente por horas até o anuncio da suspensão da partida e sem promoverem novo tumulto na saída do estádio. Mas no final acabaram sendo os mais prejudicados. O que se completou tanto com a desproporcionalidade quando prejudicou todos os torcedores do River ao perderem o mando de campo quanto com a aleatoriedade de uma final em estádio meio a meio transferida para longe da Argentina. Quando nos dias seguintes se cogitou jogá-la em Dubai, Miami ou outro lugar sem tradição futebolística e com isso apelando apenas ao motivo turístico. (Obs: é o momento que a maior parte da narrativa midiática evidenciou a culpa do oportunismo da Conmebol e com isso ofuscou a culpa de policiais e políticos). Porém o desfecho foi a escolha de Madri. Além do infame fato que junto das delegações dos clubes e das caravanas dos torcedores também cruzaram o Atlântico uma outra delegação com os funcionários e dispositivos de segurança (que tragicômico ainda serem chamados de “efetivos”…) que recém fracassaram nas ruas do entorno do Monumental.

O “legado” para a cultura torcedora após essa final de Madri foi devastador. Apenas no âmbito argentino já vinha de antecedentes péssimos com a medida de torcida única em vigor desde 2007 na segunda divisão e desde 2013 na primeira. Sendo que ironicamente ela fora testada em 2004 em outro confronto River-Boca pela Libertadores. Voltando a 2018, são fortes os indícios que o incidente no entorno do Monumental foram “a brecha que o sistema queria”. Pois é o momento em que a “Nueva Conmebol”, com Alejandro Dominguez no lugar de Nicolas Leoz, tomou variadas medidas no sentido de elitização do futebol sul-americano, principalmente tendo como “cereja do bolo” a final única em campo neutro para criar um “megaevento” de dia único que privilegia turistas-torcedores ao invés dos torcedores do dia-a-dia que sustentaram um clube em sua campanha rumo à final. Fica a sensação que a Conmebol simplesmente anuncia grandes ‘oportunidades’ de negócios, mas sequer as demonstra com números convincentes com base na realidade macroeconômica continental. Em suma, a adaptação forçada do futebol do dia a dia para se igualar ao megaevento com sua “experiência excepcional” não tem viabilidade econômica em um continente com carências de estrutura urbana, de transportes a longa distância e sequer de um mercado consumidor tão populoso assim de turistas capaz de uma oferta que criasse uma demanda do dia pra noite. Em suma também, em termos culturais, até mesmo a grande mídia foi um pouco mais crítica que de costume ao notar o paradoxo de um torneio chamado “Libertadores” ter sido um dia jogado justamente na capital do colonialismo espanhol!

Por fim, voltando às questões de dentro de campo, o legado para a rivalidade River-Boca dessa final de Madri foi de atingir o seu ponto mais intenso. Naquele momento o retrospecto de conquistas na Libertadores dava ampla vantagem “xeneize” com 6 taças (e podendo igualar o mítico Independiente se a conquistasse em 2018) contra 3 do eterno rival “millonario”. Além de ampla vantagem no retrospecto em confrontos “copeiros” quando eliminou o rival em 2000 e 2004. Porém ao longo da década de 2010 como toda grande rivalidade houve uma mudança de rumos, com o River eliminando o Boca primeiro na Sul-Americana de 2014 e depois na tão polêmica Libertadores de 2015 com o caso do gás de pimenta (inclusive com fortes rumores de interferência política por ter sido poucos meses antes da eleição na Argentina). A comparação do incidente de 2015 com o de 2018 fez os dirigentes do Boca tentarem “ganar en escritorio” apelando para o TAS da FIFA ao alegar uma busca por paridade nos dois casos: pois em 2015 por incidente dentro da Bombonera foi suspensa a partida, enquanto em 2018 por incidente no entorno do Monumental ela foi remarcada (embora em outras condições). Justamente, a argumentação do River foi de não poder se responsabilizar pelo que torcedores fazem no entorno do estádio (o que passa a ser estritamente um problema de segurança pública), mas apenas em seu interior.

A década de 2010 também foi crucial para o River enquanto reconstrução do clube após ter sido rebaixado em 2011. O que evidentemente marcou a rivalidade do Superclássico por toda a década até os dias de hoje. Pois a hinchada do River alega que seus rivais do Boca passaram a viver mais de comemorar uma derrota do rival do que uma vitória própria. Desde então a argumentação “millonaria” é que o 9/12 superou por completo o 26/6 (a data do rebaixamento). Já a argumentação “xeneize” é que algo como o 9/12 pode ainda um dia se repetir, porém de único mesmo apenas o 26/6. Como dizem os argentinos, “que la cuenten como quieran”!
O balanço de ambos os clubes nesse final de 2021 é de títulos importantes recentes aos dois lados: a Superliga Argentina para o River e a Copa Argentina para o Boca. Dentro de campo, o River além do título ganho com ampla antecipação de rodadas vem comemorando também a renovação de contrato por mais um ano com o lendário treinador Marcelo Gallardo. Novamente muito exitoso em uma rápida remontagem de elenco repondo as perdas em transferências com jovens talentos e mantendo um estilo de jogo ofensivo e de qualidade como é tradicional do clube. Já o Boca encarna atualmente um estereótipo oposto de “resultadismo” com seu treinador Sebastian Battaglia (por coincidência o maior vencedor de títulos no clube como jogador) ao ser praticamente imbatível na maioria das decisões por pênaltis.
Mesmo no pós-2018 os novos confrontos eliminatórios no Superclássico tiveram bastante agitação “xeneize” para buscar uma narrativa de revanche: logo na semifinal de Libertadores do ano seguinte de 2019 (deu River) e duas vezes nesse ano de 2021 pela Copa da Liga e pela Copa Argentina (deu Boca nos pênaltis em ambas). Porém, como sabemos, o 9/11 é insuperável.

RIVER PLATE: Armani; Montiel (Mayada), Maidana, Pinola e Casco; Ponzio (Quintero) e Pérez; Fernández (Zuculini), Palacios (Alvarez) e Pity Martínez; Lucas Pratto. Técnico: Matías Biscay (auxiliar de Marcelo Gallardo)

BOCA JUNIORS: Andrada; Buffarini (Tevez), Magallán, Izquierdoz e Olaza; Nández, Barrios e Pablo Pérez (Gago); Villa (Jara), Benedetto (Ábila) e Pavón. Técnico: Guilermo Barros Schelotto


Referências

A dos años del partido que cambió la historia del fútbol

A casi tres años del River vs. Boca, uno de los responsables del fallido operativo rompió el silencio

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. 3 anos do histórico River-Boca (muito além da final em Madri). Ludopédio, São Paulo, v. 150, n. 13, 2021.
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