Sarrià
Foto: Wikipédia

Em setembro de 1997, Juca Kfouri celebrava em sua coluna na Folha de São Paulo o desaparecimento do Estádio Sarrià, antiga casa do Espanyol, de Barcelona, que o vendera para saldar o respeitável volume de dívidas que detinha. A alegria do jornalista nada tinha a ver com o debacle do pequeno clube catalão, mas com o fato de aquele ter sido o palco do que se considera ter sido uma das maiores tristezas da história do futebol brasileiro: a derrota da seleção nacional frente à italiana, em julho de 1982, na Copa do Mundo jogada na Espanha. Neste ano que se inicia, o acontecimento completa sua quarta década.

A história é conhecida. Brasileiros e italianos decidiam quem iria para as semifinais do Mundial. Cada equipe havia vencido o time da Argentina, que defendia o título conquistado em casa, quatro anos antes. Como o Brasil construíra um placar contra os hermanos melhor do que a Itália havia feito, bastava um empate contra a Azzurra para que o time dirigido por Telê Santana se classificasse. Como sabemos, o desfecho não foi favorável para os verde-amarelos.

A seleção que representou o futebol brasileiro na Copa de 1982 compõe a memória afetiva de muitos de nós, tanto porque teve relativo sucesso (excursão exitosa pela Europa e domínio nas eliminatórias para o Mundial, no ano anterior, vitória acachapante contra a rival Argentina, que já tinha Maradona, no Mundial), mas também porque promovia um futebol ofensivo e tinha craques que atuavam ou tinham atuado em clubes muito populares no Brasil (Zico no Flamengo, Sócrates no Corinthians, Toninho Cerezzo no Atlético Mineiro, Falcão no Internacional). Todos orbitavam do meio-campo para frente e isso era, de certa forma, um problema, já que o ataque ficava desequilibrado – jogava-se com pontas abertos e um centroavante – e a marcação deficiente, uma vez que desamar e encurtar espaços não era o forte de nenhum deles.

De certa forma, o quadrado do meio foi formado não apenas para acomodar os excepcionais jogadores que eram Zico, Sócrates, Falcão e Cerezzo, mas para resolver o problema da ausência de um ponta-direita de ofício. O espaço deveria ser ocupado por um dos quatro, em rodízio, o que dificilmente acontecia, sobrecarregando, ademais, a marcação por esse flanco, exercida pelo excelente, mas algo solitário, lateral Leandro. Bem que Telê tentou improvisar alguém por ali. Tita, meio-campista do Flamengo – que viria a ser um dos primeiros brasileiros a jogar na Bundesliga – atuou pelo selecionado com frequência na posição, mas em certo momento recusou-se a seguir; Paulo Isidoro, então no Grêmio, também meia-atacante, foi ponteiro durante boa parte das eliminatórias, mas na Copa ficou na suplência. João Saldanha, escrevendo para o Jornal do Brasil, foi uma das vozes de protesto contra a mudança promovida pelo treinador. A questão era tão controversa que virou até tema de programa humorístico. No Viva o Gordo, que enchia a tela da televisão nas noites de segunda-feira, Jô Soares encarnava o Zé da Galera que, de um telefone público, “conversava” com o comandante da seleção sem deixar de bradar: “Bota ponta, Telê”!

Antes da derrota frente aos italianos, as vitórias nos fascinavam, mas é certo que o time brasileiro, apesar dos gols muito bonitos, fizera apenas um grande jogo até então, a vitória contra os argentinos. Frente à seleção da Itália novamente jogou muito bem, mas não o suficiente para superar o ótimo time que aliás, seria campeão daquele Mundial.

Zico
Zico em ação na Copa de 1982. Foto: Divulgação.

Há muita força, no entanto, no efeito memorialístico que aquela Copa cristalizou: o último suspiro do futebol-arte, da pretensão ofensiva que traduziria o verdadeiro futebol brasileiro. Isso ainda hoje reverbera, mesmo que as questões táticas e da preparação física não tenham sido negligenciadas naquela campanha, assim como tampouco haviam sido na Copa de 1970[1], a que mostrou, para muitos, o futebol mais bem jogado por uma seleção, em todos dos tempos. Em 1982, o preparador era Gilberto Tim, de sucessivas campanhas de sucesso em times brasileiros, o que inclui o tricampeonato nacional com Internacional (1975, 1976, 1979), clube no qual criou uma sala de musculação para os futebolistas. A seleção de Telê tinha, ademais, desenho tático bem construído e no gol decisivo de Paolo Rossi (o terceiro de seu time e dele mesmo) naquele 5 de julho, praticamente todos os jogadores brasileiros se encontravam defendendo o próprio gol.

Naquele time, faltaram Leão, muito melhor goleiro do que Valdir Peres, e Reinaldo, jogador com carreira abreviada pelas lesões e cujas posições político-sociais não agradavam a Telê Santana. Faltou também Careca, que se lesionou em um treinamento, já na Espanha. Luizinho, o quarto-zagueiro, era técnico, mas lento, Serginho não foi o brigador que costumava ser na área adversária. Afora isso, mais proteção à zaga? Talvez. Batista ficou de fora, inclusive do banco, na peleja contra a seleção da Itália porque se machucara ao ser agredido por Diego Maradona, no final da partida contra os argentinos.

Mas, persiste o mito. Em 2004, Mozart Maragno (talvez a pessoa que mais saiba sobre futebol, entre as que conheço) e eu escrevemos um artigo[2] que mostra, entre outros pontos, que a evocação nostálgica pela imprensa persistiu na cobertura das Copas seguintes à de 1982, refluindo apenas depois que a seleção brasileira venceu a edição de 1994. Durante o Mundial disputado nos Estados Unidos, aliás, os então membros dos Titãs, Nando Reis e Marcelo Fromer (morto em 2001), assinaram uma coluna na Folha de São Paulo em que desancavam diuturnamente o treinador de então. Em cada edição, calculavam os dias faltantes para a partida final e diziam quanto tempo faltava para que os brasileiros vencessem o Mundial, apesar do Teimoso, que é como se referiam a Carlos Alberto Parreira. A recordação do time de Telê não deixava os artífices de 1994 em paz.

Naquele julho de 1982 eu tinha preocupações adolescentes que não passavam exatamente pela Copa, cuja fatídica partida contra a Itália assisti ao lado de minha avó, no apartamento em que ela morava. A escola e o esporte que eu praticava em regime profissional monopolizavam minha atenção. Era dia semana, o evento foi no começo da tarde brasileira e não houve a posterior festança pelas ruas que vinha acontecendo até então. A narração de Luciano do Valle terminou triste, depois da esperança dos dois momentos em que os brasileiros empataram a partida: um a um (Sócrates), dois a dois (Falcão). Faltou a vitória, sobrou nostalgia, ficou a história. Tudo bem.

São Paulo, janeiro de 2022.

Notas

[1] Sobre o tema, vale ler o livro de Marcos Antonio Santoro Salvador e Antonio Jorge Gonçalves Soares, A memória da Copa de 70 (Autores Associados, 2009).

[2] Maragno, Mozart; Vaz, Alexandre Fernandez. O Desastre do Sarriá: futebol e identidade nacional na experiência da derrota. Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 11, n.1, p. 9-27, 2004

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. 40 anos do desastre do Sarriá. Ludopédio, São Paulo, v. 151, n. 1, 2022.
Leia também:
  • 174.7

    A Seleção Brasileira de Fernando Diniz: cultural ou contracultural?

    Gabriel Orenga Sandoval
  • 172.9

    Além do país do futebol

    José Paulo Florenzano
  • 171.28

    Primeiras impressões sobre o Dinizismo em verde e amarelo

    Daniel Amado Morales