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5 toques e muitos gols: conhecimento esportivo e novas abordagens sobre o futebol moderno, por Kike Toledo

Em novembro, apresentamos as dicas de Luiz Henrique de Toledo, professor titular no Departamento de Ciências Sociais na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É coordenador do LELuS (Laboratório de estudos das práticas lúdicas e sociabilidade UFSCar-CNPq). Com graduação em Ciências Sociais, mestrado e doutorado em Antropologia Social, sempre pela Universidade de São Paulo (USP), Kike Toledo trata-se de um pesquisador seminal do futebol no Brasil, com sua dissertação premiada pelo Prêmio FORD/ANPOCS, em 1996.

Kike Toledo é autor de incontáveis artigos referenciais dos estudos do esportivo, dentre os quais se destacam dois balanços bibliográficos fundamentais: “Futebol e teoria social: aspectos da produção científica brasileira (1982-2002)” (2001) e “Balanços bibliográficos e ciclos randômicos: o caso dos futebóis na antropologia brasileira” (2020). Uma de suas principais obras é “Lógicas no Futebol” relançado pela Editora Ludopédio, em 2021.

No Ludopédio, Kike Toledo é responsável, em parceria com Eduardo Camargo, pela coluna Ideacanção que dá visibilidade ao projeto de mesmo nome que concentra pesquisas estéticas narrativas nos campos da canção e da crítica cultural. Em setembro de 2021, por meio do Ludopédio Educa, ele ministrou o curso “Clássicos vs Clássicos: revisitando estudos sobre esportes” que se propôs a revisitar autores clássicos que contribuíram para a formulação das noções de jogo e esporte.

Kike propõe uma lista que reúne produções recentes que ampliam conhecimentos sobre o esporte, com abordagens inovadoras. Vejamos os 5 toques de nosso convidado:

1º toque: “A dança das cadeiras: a eleição de João Havelange à presidência da Fifa (1950-1974)”, de Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto Rocha, 2020.

A dança das cadeiras - HavelangeA figura e presença holográfica de João Havelange no campo esportivo – parte que se reivindica como todo –, espécie de inventor de si mesmo, ou ainda um agente que reorientou e precipitou novas imagens ao campo esportivo, não somente para o futebolístico, toma corpo no denso trabalho de Luiz Burlamaqui, autor que tece uma trama entre dados empíricos à profusão e esforço analítico incomuns. Esse big men do futebol mundial, que foi João Havelange, ilumina e transversaliza processos em várias camadas contínuas e descontínuas, da cultura e do futebol brasileiro, em nível local, às demandas intercontinentais de uma geografia esportiva escavada, ou esculpida, pelo próprio dirigente. Recentralizando o futebol europeu, sem antes rasurá-lo ou inscrevê-lo em conjunturas específicas, Havelange inventa uma ordem acrônica para o futebol, em que pesem os marcos temporais que divisam as assimetrias da cultura mundial de seu tempo, caracterizada pelas dinâmicas da Guerra Fria, que dispôs a dança macabra de regimes políticos, pelas lutas por direitos universais, pelos processos problemáticos de descolonização, pela sanha do neoliberalismo, que passou a espreitar uma nova ordem consumerista da qual o futebol-entidade (a FIFA) se nutriu em escala exponencial a partir do evento-Havelange. A pesquisa de Burlamaqui atinge um Havelange que abandona a imagem sólida de um personagem histórico para se tornar uma singularidade infinitesimal, na medida em que encarna feixes de complexos processos culturais, políticos e econômicos. Havelange, por conta do investimento que o autor dedica à interdisciplinaridade, torna-se exemplo inconteste de um método.

2º toque: “Clube empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol”, organizado por Irlan Simões da Cruz Santos, 2020.

Aqui temos uma coletânea que alia múltiplas experiências de pesquisadores e pesquisadoras voltados para os processos de transformação (econômica, política, comportamental, comunicativa) da ordem mundial do futebol de espetáculo. Além do apuro analítico dos dados coligidos, autores e autoras não se furtam em assumir posicionamentos políticos diante daquilo que se convencionou chamar de futebol moderno, aqui melhor tipificado nos modelos gerenciais e nas estruturas de participação e gestão pública de clubes de futebol. Destaca-se a perspectiva comparativa entre modelos e experiências de gestão clubística, mas também entre experiências de lutas políticas, assumidas, praticamente por todo o livro, por pontos de vista presentes em muitas ações torcedoras, consideradas o elo mais sensível de uma cadeia de interesses em torno dessas mudanças. Afinal, um clube de futebol e seus torcedores compõe uma associação que pode ser tipificada como um patrimônio tangível ou intangível? Futebol seria mais um negócio instrumentalizável pelo capital ou se mantém como manifestação cultural e de sociabilidade? São essas apenas algumas questões que podem ser revisitadas à luz desse novo reenquadramento empírico e conceitual dentro de uma obra que se torna referência contemporânea para os estudos sobre futebol e esportes.

3º toque: Documentário “Doutor Castor”, dirigido por Marco Antonio Araujo, 2021.

Doutor Castor

O documentário retrata momentos icônicos da biografia de um bicheiro, dirigente esportivo, carnavalesco e festejado coronel urbano, Castor de Andrade. A opção do diretor foi centralizar a personagem central do ponto de vista de muitos interlocutores próximos do círculo de influência de Castor ou detratores de seu modus operandi. Castor pode ser tomado como um conceito ou uma espécie de operador narrativo de um período em transição, ou ainda, uma síntese, espécie de símbolo flutuante de uma cultura torcedora disposta em várias camadas, que se retroalimentava e se projetava da cultura urbana do subúrbio carioca para a cultura da cidade do Rio de Janeiro e, de maneira ainda mais essencializada, para a cultura dita “brasileira”. Todas essas camadas de cultura são transversalizadas por uma ideia que, penso, pode ser a chave no entendimento de uma atmosfera cultural em declínio, de uma sociabilidade lúdica e hedonista, que escamoteava seus níveis de violência (institucional e popular) em nome de experiências essencializadoras, que persistiram até meados dos anos 1990. O documentário mostra algumas das continuidades estéticas (futebol e carnaval) que fizeram o Brasil, como diz o antropólogo Roberto Da Matta, o Brasil, sobretudo entre os anos 30 até os 80. A película auxilia a perceber como esse projeto culturalista de país, pela via popular, mas patrocinado por um clientelismo político estrutural, se transformou radicalmente, sobretudo a partir dos anos 90, reposicionando suas permanentes formas de sociabilidade, desigualdade e violência. Agora, sob a intervenção de outros personagens e agentes, saem os bicheiros locais e se promovem os traficantes internacionais; retiram-se os leões de chácara e ingressam os grupos milicianos; recuam os sambistas e entram no palco os foliões de Deus; extinguem-se jogadores incautos e ascendem profissionais galáticos. Castor, nesse sentido, aparece como espécie de epígono desse processo ou mundo em dissolução.

4º toque: “Entre Jogos e Copas: reflexões de uma década esportiva”, organizado por Enrico Spaggiari, Giancarlo Marques Carraro Machado e Sérgio Settani Giglio, 2016.

Temos aqui outra importante coletânea de estudos sobre a noção de megaevento assinada por um conjunto de pesquisadores e pesquisadoras de várias gerações. A obra integraliza uma multiplicidade de perspectivas metodológicas e conceituais em torno dessa noção, empiricamente circunscrita no exame mais detido de algumas modalidades esportivas, das mudanças estruturais, que incidiram nas formas de jogar e torcer, das paisagens etnológicas, das relações e epistemologia de gênero, das relações institucionais de poder e práticas políticas, finalizando com um crítico balanço bibliográfico. Megaeventos, tomados como rituais esportivos modernos, respondem por uma multiplicidade de experiências urbanas conexas, locais e globais, daí essa obra interessar de perto também aqueles que militam ou que são leitores de uma sociologia, geografia e antropologia urbanas.

 

5º toque: História do esporte: diálogos disciplinares comemoração dos 15 anos do Laboratório Sport”, organizado por Victor Andrade de Melo, Rafael Fortes, Fabio Peres, André Alexandre Guimarães Couto, 2020.

A produção mais ampliada dos estudos sobre futebol e esportes só pode se consolidar no âmbito acadêmico em função dos esforços coletivos de grupos de pesquisa. Essa obra publicada pelo Laboratório de História do Esporte e do Lazer da UFRJ é uma referência nesse sentido, pois traz em cada um de seus capítulos as contribuições críticas e dialógicas entre áreas acadêmicas contíguas. Interessa tanto aos pesquisadores iniciantes, pois mapeia um campo diverso de temas, abordagens, métodos e ferramentas analíticas, quanto inspira aqueles estudiosos mais experientes a retomarem criticamente o lugar de seus pontos de vista a partir dessas relações disciplinares voltadas para os fenômenos esportivos. O livro apresenta um panorama de discussões metodológicas, trazendo reflexões sobre métodos qualitativos e quantitativos, históricos e antropológicos, mas também revela  novas temáticas comparativas, mobilizando temas como gênero, processos comunicativos, estéticos, pedagógicos, patrimoniais, reposicionando o tema esportes, futebol incluso, para além das costumeiras abordagens, que aproximam perspectivas históricas, sociológicas e antropológicas.

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Kike Toledo

Kike Toledo é sambista, torcedor e antropólogo.

Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Como citar

TOLEDO, Luiz Henrique de; RIBEIRO, Raphael Rajão. 5 toques e muitos gols: conhecimento esportivo e novas abordagens sobre o futebol moderno, por Kike Toledo. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 2, 2021.
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