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A agonia de Hillsborough

A semifinal da Copa da Inglaterra de 1989 culminou numa tragédia que tirou a vida de 96 torcedores e dividiu a história do futebol inglês entre antes e depois do desastre de Hillsborough.

Era um sábado, 15 de abril de 1989. A movimentação em frente ao Estádio Hillsborough, na cidade de Sheffield, era acima do comum desde as primeiras horas do dia e a empolgação entre os torcedores era contagiante. Porém, quando a bola rolou, a festa acabou e quando o dia terminou, a única contagem possível, lamentavelmente, foi a de mortos e feridos.

Marcada às 15h, a partida entre Liverpool e Nottingham Forest, era válida pela semifinal da Copa da Inglaterra da temporada 1988/89.

As duas equipes protagonizaram o futebol inglês na década de 1980. Enquanto, o Liverpool retomou seu lugar de destaque no cenário europeu com suas conquistas de Champions League, o Nottingham Forest colhia os frutos dos tempos vitoriosos de Brian Clough.

Assim, a órbita dos dois gigantes ingleses entrou em rota de colisão na Copa da Inglaterra daquela temporada. Um deles ficaria na semifinal e o vencedor disputaria a final.

Os anos 1980 não apenas foram terreno fértil para o crescimento do movimento dos Hooligans, como foi o período de consolidação e até de superioridade dos torcedores violentos sobre as autoridades inglesas.

Eventos como invasões de campo, brigas generalizadas e tumultos como o que ocasionou o Desastre de Heysel — quando 39 torcedores morreram esmagados contra o muro do estádio de Heysel, na Bélgica, durante a final da Liga dos Campeões de 1985, entre Liverpool e Juventus —, eram a prova que o hooliganismo estava vencendo o jogo ao espalhar violência, morte e deixar um rastro de sangue no futebol inglês.

Em razão do que aconteceu na Bélgica, em 1985, a Uefa baniu times ingleses das competições continentais durante cinco anos.

Neste contexto, a FA (Football Association) escolheu um estádio neutro para o confronto de duas equipes que tinham torcidas com histórico violento. O Estádio Hillsborough parecia perfeito, pois era considerado um dos mais seguros do país além de ter sido uma das sedes da Copa do Mundo de 1966.

Inaugurado em 1899, Hillsborough foi remodelado várias vezes para atender às necessidades do crescente público e, nos anos 1980, era uma escolha comum para receber jogos decisivos. Apenas naquela década, nada menos do que cinco semifinais da Copa da Inglaterra foram disputadas no estádio.

Mesmo assim, alguns incidentes apontavam que o estádio não deveria receber um número de torcedores acima de sua carga de lugares — parece óbvio, mas nos anos 1980, não era não era incomum jogos com mais torcedores do que a capacidade dos estádios.

Contudo, a causa da tragédia de Hillsborough nada tem a ver com o hooliganismo, mas é sim o resultado de uma era de escolhas desastrosas na gestão do futebol inglês somada a uma sucessão de erros dos organizadores naquela tarde de abril em Sheffield.

A organização alocou a torcida do Nottingham Forest na Spion Kop End, arquibancada com cerca de 21 mil lugares. Enquanto isso, a torcida do Liverpool ficou na Leppings Lane Terrace, uma espécie de geral à esquerda do lance central de cadeiras e com apenas 14.600 assentos.

Além de menor em capacidade, o setor dos Reds tinha apenas seis entradas com sete catracas, um número 10 vezes menor do que havia na Spion Kop End. Com menos entradas e menos lugares, os torcedores do Liverpool tiveram dificuldades para passar pelas catracas e imensas filas foram formadas.

O horário do jogo se aproximava e os jogadores já estavam em campo enquanto a quantidade de torcedores do lado de fora era enorme. As filas se transformaram em aglomerações e um início de empurra-empurra foi contido pela polícia que já havia perdido o controle da situação.

Ao invés de paralisar a entrada de pessoas, a decisão das autoridades foi a de liberar um grande portão de saída, porém, para a entrada dos torcedores. Foi como apertar o botão iniciar de um rolo compressor humano, uma moenda de gente, uma catástrofe.

Naquela época, os estádios ingleses ainda tinham alambrados para evitar justamente as invasões de campo. Conforme a entrada descontrolada de pessoas pressionava quem estava na frente contra o alambrado, as pessoas tentavam pular as grades.

Quando o árbitro apitou o início da partida, a tragédia já estava em curso, mas os embates entre torcedores e policiais eram comuns e ninguém percebeu a gravidade do que acontecia.

Nesse momento, os policiais dentro do estádio, treinados para evitar a qualquer custo invasões, não entenderam que quem pulava o gradil, na verdade queria salva a própria vida e reprimiram fortemente o tumulto.

Enquanto a polícia empurrava a massa de volta para a arquibancada, os torcedores que entravam aos montes empurravam a massa contra a grade. Mais numerosa, a força vinda da arquibancada pressionou e esmagou dezenas de pessoas contra o alambrado.

Quando percebeu o que acontecia, a polícia abriu as grades e as pessoas caíram no gramado. Apenas aos 6 minutos de bola rolando, a organização percebeu que estava acontecendo um desastre e informou ao árbitro, que encerrou a partida.

Quem não morreu esmagado na grade, acabou asfixiado ou pisoteado em meio à multidão.

Uma sufocante, dolorosa e agônica tragédia.

Foram contabilizadas 95 mortes e 766 feridos, mas o número de mortos chegou 96, pois um ano após o desastre mais um torcedor morreu em decorrência dos ferimentos. Os feridos eram transportados nas placas publicitárias improvisadas no desespero como macas.

Faixa lembra o 20º aniversário da tragédia. Foto: Linksfuss.

Os mortos eram todos torcedores do Liverpool com idades entre 10 e 67 anos. Há relatos de que mais de 40 pessoas poderiam ter sido salvas se recebessem o devido atendimento médico, que também falhou no dia do desastre.

Os desdobramentos da tragédia

Inevitavelmente, o número de mortos causou comoção popular. Pessoas jovens, idosos e crianças morreram apenas por irem assistir uma partida de futebol. Não era como nas distantes brigas dos hooligans, em que carecas fortões que iam aos estádios dar vazão ao ódio. Havia chegado perto demais do cidadão comum.

Um inquérito foi aberto para apurar os motivos que levaram a tantas mortes. Foi conduzido por Lorde Taylor de Gosforth e ficou conhecido como “Relatório Taylor”. Publicado em janeiro de 1990, o Relatório Taylor definiu categoricamente que as principais responsabilidades para que ocorresse a tragédia foram “a falha do controle policial sobre a multidão e a inadequação das instalações do estádio”.

Essas conclusões foram responsáveis por redesenhar a estrutura do futebol inglês e impôr duras sanções aos torcedores violentos. Por outro lado, Taylor também atribuiu culpa ao comportamento violento dos Hooligans, que de acordo com o relatório, era motivado pelo excesso no consumo de álcool.

Baseadas no relatório, leis foram criadas e extinguiram as gerais — passou a ser proibido assistir às partidas em pé e obrigatório para jogos das primeira e segunda divisões, a existência de assentos para todos no estádio — , os alambrados foram eliminados dos estádios ingleses, que tiveram suas capacidades recalculadas e instaladas catracas de acordo com o número de assentos.

Posteriormente, medidas como identificação prévia de quem adentra aos estádios, cadastramento e punição dos envolvidos em grupos violentos também aconteceram.

Não é difícil concluir que esse foi o embrião da modernização do futebol inglês e, consequentemente, da Premiere League, case de sucesso e pioneira do esporte como modelo de negócio.

As mudanças foram imediatas, mas a briga judicial se arrastou como nunca antes no Reino Unido. A tragédia de Hillsborough deu início a mais longa disputa jurídica da história britânica e se aproveitando da distância temporal dos fatos, a culpa foi empurrada para o comportamento violento dos torcedores.

O tablóide The Sun ajudou nesse processo de execração dos torcedores. Dias após a tragédia, a capa publicada continha em caixa alta a frase “A verdade”, e contava a versão de “uma fonte policial” sobre como a torcida do Liverpool urinou nos socorristas e agrediu a polícia que tentava salvar vidas.

A torcida dos Reds sempre refutou essa versão e há na região de Liverpool um boicote até hoje contra o The Sun, que passou a vender menos de 10% do que costumava antes do ocorrido e de sua cobertura duvidosa.

Um grupo independente passou a investigar o caso e formulou um novo relatório publicado em 2012, que após colher mais 160 depoimentos, considerou culpadas as autoridades e organizadores.

Com a publicação, o Supremo Tribunal londrino anulou os vereditos de morte acidental expedidos 21 anos antes e as autoridades, desde a Football Association até o Primeiro Ministro David Cameron, se desculparam publicamente com as famílias das vítimas.

Em 2016, depois de 27 anos, o júri concluiu que os mortos “foram vítimas de homicídio, resultado da deficiente atuação policial, antes e durante a partida”. Outra conclusão foi que “o comportamento dos torcedores do Liverpool não causou nem contribuiu para a tragédia”.

Ainda assim, ninguém foi efetivamente punido. O júri não chegou a uma conclusão sobre a pena de David Duckenfeld, chefe da força policial no dia da tragédia, e um novo julgamento deve ser marcado para decidir a situação do acusado.

Homenagens

Todos os anos, o Liverpool lembra a tragédia e faz da data um dia sagrado para o clube. Em 2009, a diretoria dos Reds chegou a pedir a antecipação de um jogo de Champions League contra o Chelsea, para não jogar no 15 de abril.

Há um memorial em Anfield, dedicado às vítimas. Uma placa com os nomes dos 96 mortos que mantem uma chama sempre acesa e é religiosamente visitada por torcedores de todas as partes do mundo.

Nem mesmo a pandemia do novo coronavírus foi capaz de impedir que o clube se manifestasse em recordação aos seus mortos. O treinador Jürgen Klopp e Jordan Henderson, capitão da equipe, gravaram vídeos em homenagem à data. Além disso, clube postou uma breve saudação no Twitter:

O jogo que (não) terminou

Quando o caos foi percebido naquela tarde de abril de 1989, o inferno já havia aberto suas portas no Estádio Hillsborough. O jogo paralisado aos 6 minutos, depois de pouco futebol apresentado no gramado, precisava ser retomado para definir o finalista da Copa da Inglaterra.

Como o show tem de continuar, a partida foi remarcada para o dia 7 de maio, na cidade de Manchester, no Old Trafford. Sem clima para festa, mas com vontade para honrar seus mortos, o Liverpool fez o placar mínimo e saiu com a vaga na decisão. Na finalíssima, num Merseyside Derby, venceu o arquirrival Everton, na prorrogação por 3 a 2 e lavou a alma de milhares de torcedores aqui e especialmente de 96 que foram para o outro lado da vida, mas nunca deixam o Liverpool caminhar sozinho.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Pedro Henrique Brandão

Comentarista e repórter do Universidade do Esporte. Desde sempre apaixonado por esportes. Gosto da forma como o futebol se conecta com a sociedade de diversas maneiras e como ele é uma expressão popular, uma metáfora da vida. Não sou especialista em nada, mas escrevo daquilo que é especial pra mim.

Como citar

BRANDãO, Pedro Henrique. A agonia de Hillsborough. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 36, 2020.
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