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A bissexualidade de Richarlyson e o mundo do futebol

Wagner Xavier de Camargo 17 de julho de 2022

Na semana do Orgulho LGBTQIA+, em fins de junho passado, foi lançado o primeiro podcast da série “Nos Armários dos Vestiários”, uma iniciativa do Globo Esporte (GE) em coprodução com a Feel The Match. O programa foi elaborado e gravado por uma equipe, mas capitaneado pela jornalista Joanna de Assis e pelo produtor de conteúdo William de Lucca.

A proposta é que haja 10 programas ao longo dos próximos meses, com temáticas que dizem respeito a questões discriminatórias, discutindo tabus vividos por atores sociais no campo esportivo. O objetivo, por certo, é levar informação e desmistificar preconceitos.

O primeiro episódio se propôs a tratar da homofobia no esporte, um assunto do momento e que tem povoado ações violentas na sociedade brasileira, mas também (e, particularmente) no futebol. Além disso, o programa anunciou uma entrevista com Richarlyson Barbosa Felisbino, ex-jogador e atual comentarista esportivo da Rede Globo.

Richarlyson
Fonte: reprodução

Em que pese Richarlyson apenas ter entrado no papo lá pelo vigésimo minuto e ter falado sobre muitas coisas de sua vida de ex-atleta, a autodeclaração sobre sua bissexualidade acabou causando furor nas mídias digitais pós-entrevista, gerando ondas de deboche, piadas e opiniões preconceituosas.

Bem, a partir daqui não quero me deter no que foi conversado no podcast, pois considero que ele vale a pena e deve ser ouvido por todas as pessoas. Gostaria, portanto, de desenrolar o ponto relativo à bissexualidade.

Ora, a orientação sexual de uma pessoa é um dado de cunho privado, relativo à sua intimidade e que só interessa para alguém que tenha vínculos afetivo-sexuais com ela.

Assim como a heterossexualidade, que prega ser o desejo orientado “ao sexo oposto”, temos a homossexualidade, a qual orienta o desejo pelo “mesmo sexo” e, igualmente, a bissexualidade, que, por sua vez, engloba a atração por mais de um sexo (ou por mais de um gênero).

Bissexuais não são pessoas indecisas, desregradas e sem limites ou promíscuas, qualificativos que sempre aparecem no senso comum. Elas sofrem muitas violências estruturais de uma sociedade majoritariamente heteronormativa. Há desqualificações constantes de seus desejos e insinuações ofensivas, tanto no terreno da masculinidade, quando no da feminilidade.

Richarlyson disse que ele, desde que se reconhece como um sujeito desejante, desenvolveu atração por mulheres e também por homens. Isso não significa que ele seja um “homossexual mal resolvido” ou um “heterossexual confuso”, conclusões superficiais que apareceram pós-entrevista. Ele apenas se situa no campo de uma estética sexual diferente da heterossexualidade e que deve ser respeitada.

Segundo pesquisa recente realizada pelo IBGE no Brasil, um montante de 2,9 milhões de pessoas em todo o território nacional se reconhece como gays, lésbicas e/ou bissexuais. No caso de bissexuais, o índice corresponde ao percentual de 0,7% do total, ou cerca de 1,1 milhão de indivíduos.

Alguns comentaristas esportivos e mesmo pessoas comuns zombaram de Richarlyson, dizendo que “já sabiam” desse dado pessoal – uma referência clara à suposta homossexualidade do ex-jogador, que nunca foi assumida por ele. Mas o que tais pessoas não conseguem compreender é que a bissexualidade é a forma de expressão sexual e o modo como Richarlyson se subjetiva (ou seja, se pensa e se considera em termos sexuais).

Levar em consideração a subjetivação de atletas (homens ou mulheres) no esporte e para fins de treinamento esportivo seria algo realmente revolucionário. Além de evitar preconceitos por parte de dirigentes e mesmo companheiros(as) de time, serviria também para enxergar o outro a partir de seu desejo, potencializando-o para fins de desempenho e performance.

Por isso, uma educação sexual não deveria ser trabalhada apenas na escola, mas igualmente dentro dos clubes de futebol, junto a outras atividades, e desde a base. Falar de gênero e sexualidade não deveria ser tabu quando o que está em jogo é o respeito ao outro em sua integralidade enquanto ser humano. Arrisco dizer que se tal educação sexual fosse efetivada, muitos melhores resultados teríamos em campos, pistas, piscinas, tatames e quadras.

Respeito à orientação sexual diferente daquela que é majoritária na sociedade é o primeiro passo para se ter uma sexualidade livre, tanto do eu, quanto do outro.

Embora Richarlyson tenha dito que nunca esteve preocupado com as opiniões de outras pessoas acerca de sua sexualidade, ele foi atingido inúmeras vezes por preconceitos infundados. Como no caso de sua transferência para o Palmeiras, nos idos de 2012.

Porém, mesmo em situações anteriores, durante a carreira bem exitosa enquanto jogador do São Paulo, Richarlyson sofreu efeitos explícitos da homofobia, sem sequer ter mencionado qualquer orientação sexual destoante.

Richarlyson
Fonte: Wikipédia

No final da entrevista para o podcast ele vai reconhecer que nunca gostou de ser “pautado” pela sexualidade, pois havia outras qualidades que apresentava como futebolista e que nem sempre eram comentadas. Disse também que sua bissexualidade é “algo menor” e que isso “não vai ajudar” outras pessoas, pois defende que alguém mais importante o faça. Além disso, se reconheceu “pessimista” em relação ao tema e ainda acrescentou que não vai “levantar bandeira” alguma.

Tanto Joanna quanto William destacaram que atitudes como as dele são o primeiro passo para que outras pessoas, também acuadas e com medo de virarem bodes expiatórios em seus esportes, consigam assumir suas orientações sexuais e deixar fruir seus desejos. E com a dupla concordo: se sujeitos LGBTQIA+ nos esportes não se pronunciarem presentes, estarão condenados até o fim de suas carreiras a permanecerem nas sombras da masculinidade/feminilidade tóxicas e da homofobia/lesbofobia/bifobia descaradas.

Se tudo continuar como está, de um lado sempre teremos montes de “Richarlysons” com suas bissexualidades (dentro ou fora do armário) e, de outro, o mundo do futebol, intacto, incólume e composto por machos heterossexuais, supostamente convictos de seu gênero e sexo.

Por isso, um “puxão-de-orelha” em Richarlyson: você sempre foi gigante como jogador, um verdadeiro mestre da bola, e isso não é pouco. Ser bissexual não é demérito e a letra “B” está na sigla LGBTQIA+. Portanto, está mais do que na hora de orgulhar-se e levantar a bandeira, não àquela de todas as cores (caso você tenha preconceito dela), mas a da igualdade e do respeito de condições dentro das quadro linhas.

Isso é sexualizar o corpo, politizar o espaço, generificar o esporte. Não esperamos menos do que isso de grandes esportistas como você!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. A bissexualidade de Richarlyson e o mundo do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 157, n. 18, 2022.
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