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A camisa amarela da seleção

Plínio Labriola Negreiros 15 de novembro de 2022

Eu nunca usei uma camisa da seleção brasileira de futebol: de qual cor fosse. Nem no tempo da antiga CBD. Em toda a minha já longa caminhada de torcedor, vi apenas uma partida da seleção de futebol no campo. Acho que contra a Bolívia, pelas eliminatórias da Copa da Espanha. Fui com amigos corinthianos e, depois de muitas dificuldades com ingresso e acesso, conseguimos assistir a partida da geral do Morumbi. Ou seja, não vimos nada. Quando se estava atrás de um dos gols, não se sabia o que ocorria do outro lado da partida. Era preciso que os torcedores que estivessem nos outros setores do estádio se manifestassem para que os da geral pudessem saber o que tinha ocorrido. Éramos os últimos a gritar gol. E pior: gol que muitas vezes nem víamos.

Não usar a camisa da seleção de futebol tinha certa relação com uma questão central: minha paixão era pelo Corinthians. Eu estava amarrado ao clube do Parque São Jorge. Até o título de 1977, com a quebra de um tabu de quase 23 anos sem um título importante, para mim o ato de torcer estava caracterizado pela ideia de proteção e cuidado. Como torcedor, cabia a cada corinthiano fazer tudo o possível para contribuir com o time. A seleção, desde que eu ganhei consciência do seu significado, não prescindia de nenhum proteção. Ao contrário, era a única equipe tricampeão do mundo. A que havia conquistado, em definitivo, a Taça Jules Rimet.

No mesmo 1977, aos 15 anos, comparecia a quase todos os jogos do Corinthians. E, em sala de aula, fui provocado por um professor de Matemática, palmeirense, indignado porque eu deixaria de fazer uma prova dessa disciplina para chegar mais cedo a uma partida no finado Pacaembu. O professor Fabiano perguntou na lata: “você gosta mais do Corinthians ou do Brasil?” Ele não estava se referindo à seleção, mas à nação. Não respondi nada. Mas, ainda nesse dia, uma colega, corinthiana, foi taxativa: “gosto mais do Corinthians, porque eu o escolhi; já nascer no Brasil foi um acidente.” Esse argumento, para mim, foi definitivo.

Portanto, as cores da seleção nunca me atraíram, ainda que tenham produzido alguns incômodos. Desde sempre, entendia que a camisa amarela da seleção nunca havia mudado. A minha referência era a equipe de 1970, que jogou todas as 6 partidas de amarelo. Mais tarde, talvez na Copa de 1974, tenha me assustado com o uso da camisa azul. A seleção canarinho jogando de azul? Foi, talvez, o mesmo impacto de ver o Corinthians, pela primeira vez, atuando com calções brancos e camisa branca. Parecia o Santos. E lembrar que outra cor usada pela seleção me incomodava: o verde. Esta cor simbolizada o maior dos adversários. Era bom ganhar os jogos, era bom ganhar do Santos e do São Paulo, mas ganhar do Palmeiras era muito melhor.

Seleção de 1970 – Escalação da seleção brasileira na partida contra a Inglaterra. Wikipédia

Na realidade, a minha grande questão acerca do selecionado nacional de futebol não era exatamente as cores. Vivi intensamente as Copas de 70, 74 e, em parte, a de 78. Vale lembrar que há outra Copa importante para mim: a de 1938, já que foi um objeto de uma construção histórica. Sei sobre essa Copa mais do que sobre qualquer outra. Já escrevi sobre a minha relação sobre 1970 (ver: A minha primeira Copa). Aos meus 8 anos, fiz parte “daquela corrente prá frente”. Era a primeira transmissão ao vivo. Ver a conquista da seleção – a melhor do mundo – foi emocionante. Mais emocionante ainda: ver a participação dos atletas corinthianos, especialmente o Roberto Rivellino. Na partida final, apenas uma tristeza: não houve gol do Rivellino.

Eu havia aprendido, com o tricampeonato, que ninguém jogava futebol como nós. Mas no lapso entre as Copas de 70 e 74, alguns problemas. O primeiro, refere-se à despedida de Pelé da seleção, em 1971. A equipe nacional, que tinha Pelé desde a Copa de 1958, acharia um substituto? O que seria do escrete brasileiro sem o melhor jogador da história do futebol? Por que Pelé não queria mais jogar pela seleção? Será que o Pelé não desistiria da decisão e voltaria para a seleção canarinho? Lembro de uma grande movimentação nesse sentido. Inclusive, alguns meses da convocação final do time que jogaria na Alemanha Ocidental, houve uma manifestação de centenas crianças, que foram à casa de Pelé, em Santos, com o pedido que ele reconsiderasse a aposentaria. A resposta continuou sendo não. Com isso, inclusive, não eram poucos aqueles que condenavam Pelé. Lembro de um desses críticos ficar indignado com o fato do rei Pelé não ter se sensibilidade com centenas de crianças.

Mas, entre 70 e 74, outras dificuldades. Uma boa parte da equipe de 70 havia envelhecido e não jogaria em 1974. Era muito novo e não tinha clareza disso. Guardava, para essa questão, uma solução simples: Rivellino seria o substituto de Pelé. Ele passaria a jogar com a camisa 10 e tudo se resolveria. E para as minhas impressões de torcedor, uma partida da seleção foi um grande choque de realidade: um amistoso, em Roma, contra a Itália. Perdemos por 2 a 0. Vale ressaltar que o segundo gol não deveria ter sido validado: a bola bateu na mão do goleiro Leão, que havia falhado no primeiro gol italiano, bateu no travessão e tocou fora do gol, aliás, bem fora. Esse gol no qual a bola não entrou foi dado pelo bandeirinha.

Mesmo com essa atenuante, foi a primeira derrota da seleção brasileira de futebol que eu tinha conhecimento, que eu tinha visto. Eu acreditava, até essa partida, que éramos invencíveis. Mas, mantinha uma certeza: continuávamos os melhores do mundo e venceríamos a Copa de 1974. Repetiríamos 1970. Ao menos, o ufanismo era próximo ao de 1970, talvez menor porque causa dos efeitos da crise do petróleo, do ano anterior.

As memórias de 1974 não são boas. As duas primeiras partidas com o mesmo resultado: 0 a 0. A seleção que havia ganhado todos os jogos da Copa anterior, ficou mais de 120 minutos sem fazer um único gol. A classificação para a fase seguinte veio com uma vitória contra a fragilíssima seleção do Zaire, pelo placar que era necessário: 3 a 0. No Brasil, era o início de uma tarde de sábado. Não existia mais tanta certeza quando ao sucesso da seleção. Vieram mais duas boas vitórias: contra a Alemanha Oriental e contra a Argentina. Para chegar à final, faltava mais uma partida: contra a Holanda, que era a sensação da Copa. Entendia que o Brasil venceria e pronto. O Brasil, de camisa azul, era derrotado pelos holandeses, pelo carrossel holandês. Não me lembro de o Brasil jogar mal. Sei que perdeu muitas chances. Foi uma forte decepção, maior que eu já tive com a seleção. Talvez tenha sido a última Copa que eu tenha efetivamente torcido para a seleção brasileira de futebol. Na disputa pelo terceiro lugar, nova derrota: para a seleção polonesa. Se não éramos mais os melhores do mundo, o que éramos?

Ainda nesse ano, um evento corinthiano, abalou a minha relação com o selecionado de futebol. Após a derrota, para o arquirrival, na final do campeonato Paulista de 1974, Rivellino, por caminhos tortos, foi injustamente responsabilizado pela derrota. A perda do título não me deixou tão triste quanto à saída dele do Corinthians. No ano anterior, ganhei a minha primeira camisa do clube e eu escolhi a branca do Rivellino. Enfim, por que torcer pela seleção depois dessa tragédia? Sim, muitos outros jogadores corinthianos eram integrantes do selecionado. Isso era importante. Mas, sem o Rivellino. E o pior: perdíamos nosso grande atleta e ídolo, que passou a jogar contra nós.

A seleção virou um tema sem maior importância. As energias precisavam se voltar para o Timão. Ainda que um debate era recorrente entre os amigos: quem merecia jogar na seleção? Fazíamos muitas comparações entre os jogadores das nossas equipes. Aliás, quase não existia a figura do jogador brasileiro jogando no exterior, mesmo porque, até 1975, o mercado da Europa estava fechado. Assim, a seleção era formada por quem jogava no Brasil. No fim de semana, íamos ao campo ver uma partida do nosso time e, no meio da semana, podia ocorrer uma partida do selecionado. Ao analisar a partida, era comum comparar os jogadores do nosso clube com o dos outros times. Para mim, não poderia haver uma seleção do Brasil sem que as laterais fossem ocupadas por Zé Maria e Wladimir.

Em 1977, além da conquista corinthiana e da teorização que eu gostava mais do Corinthians do que do Brasil, teve outra novidade. Tinha um amigo na escola, Daniel que, por questões familiares, sabia da ditadura no Brasil. E algumas vezes, ao longo desse ano, fomos juntos ao centro de São Paulo, em fins de tarde, ver manifestações dos estudantes contra o regime autoritário. Lembro de ler duas imensas faixas de papel, em frente ao largo do São Francisco: Pelas liberdades democráticas e Abaixo a ditadura. Recordo-me de perguntar ao Daniel: que ditadura? Pareceu-lhe uma pergunta tão idiota que ele não respondeu. Assim, ir ao centro nos dias de manifestação, era ver os estudantes fugindo da polícia. De imediato, como frequentar dos estádios paulistanos, nos quais a polícia era muito violenta, a minha simpatia recaiu sobre os estudantes. Aliás, eu achava que essas duas forças, estudantes e torcedores corinthianos, eram capazes de derrubar o pouco amável coronel Erasmo Dias, secretário da Segurança Pública. Como se sabe, esse mesmo servidor da ordem comandou uma das piores ações da ditadura cívico-militar ao invadir a PUC-SP, em setembro de 1977.

Em 1978, finalmente, descobri que vivíamos em meio a um regime autoritária. Em uma conversa com um tio muito querido, ele me alertou a escrever trivialidades nas minhas correspondências com o exterior. E depois de alguns rodeios, ele foi taxativo: estamos em uma ditadura. Confesso que sai assustado da conversa. Fui para casa preocupado: como eu iria sobreviver em meio ao autoritarismo. Fui levar essa novidade para os meus amigos. E não foram poucos os que discordaram dessa leitura, porque entendiam que ditadura tinha ocorrido durante a ordem nazista na Alemanha e que um regime desse matava as pessoas na rua, de forma indiscriminada. Esses argumentos não demoveram a minha mais recente descoberta: o Brasil era uma ditadura militar, além de trazer uma questão: por que a escola nunca me contou isso? E a minha família?

E a seleção com isso? Torcer para uma equipe que, com sua vitória em campo, ajudará um regime autoritário? O amigo Daniel, que nas eleições de novembro de 1978 fez boca de urna para um candidato do MDB autêntico, volta à cena e me ensina: se pode/deve torcer contra a seleção de futebol. Era a primeira vez que escutava alguém dizer que torceria contra a seleção. Foi uma descoberta fantástica. Eu me libertei de ter que torcer pela seleção. E tem sido assim desde 1978. Assisto aos jogos, às vezes torço, às vezes não. A minha torcida tem recaído por seleções diversas. Em alguns contextos, torço por algum jogador.

Nenhuma outra Copa me trouxe as emoções de 1970 e 1974. Acompanho pelo evento em si, pelas inúmeras articulações que existem entre o futebol e as outras dimensões e problemas humanos, e, algumas vezes, para ver uma boa partida de futebol. E sempre muitas simpatias pelas equipes “terceiro-mundistas”: as da América Latina e da África.

Mas, e a seleção brasileira hoje? O mercado comanda de tal forma as coisas do futebol que a sintonia entre os jogadores de seleção e os torcedores está cada vez menor. São jogadores que vivem fora do país, vivem realidades bem distantes das contradições brasileiras. Não me lembro de ver em campo algum dos jogadores que foram convocados para a Copa do Catar. Há atletas que eu não conheço a origem. Não sei de qual regiões são ou onde começaram a jogar profissionalmente. Talvez porque eu não acompanhe o futebol europeu, como muitos fazem no Brasil.

Não podemos esquecer que os jogadores um pouco mais famosos, diante da radical mercantilização do futebol, tornaram-se inacessíveis para o torcedor simples. Não é mais possível encontrar um jogador ao final de um treino, para conversar com ele, para pedir um autógrafo. Ainda mais: em geral, esses jogadores, estão cada vez mais conservadores, negadores das suas origens populares e sem qualquer atenção maior às tragédias nacionais.

Ao mesmo tempo, a camisa amarela da CBF, ampliou relações com um torcedor atípico, principalmente a partir da Copa realizada no Brasil. Essas camisas povoaram os estádios brasileiros e com gritos de torcida de pouquíssima emoção (“eu sou brasileiro, com muito orgulho…”), sem qualquer referência aos torcedores reais. Essa postura da elitizada torcida nos jogos da Copa foi prenúncio das manifestações com o intuito de golpear a presidenta Dilma Rousseff. Nessas manifestações, a camisa amarela da CBF amalgamou-se ao golpismo. Essa liga ficou tão sólida que, mesmo com algumas denúncias de corrupção envolvendo a CBF, fez com que o amarelo não perdesse a condição de uniforme número 1 dos golpistas. E lembrar, com ironia, que boa parte dessas camisas eram piratas e não renderam dividendos à entidade máxima do futebol brasileiro.

De fato, as manifestações golpistas de 2016 sequestraram a camisa amarela da CBF. Ela passou a representar o que havia de mais atrasado na sociedade brasileira. E fez, parte dos brasileiros, talvez os mais progressistas, novamente, reavaliar o lugar, o significado da seleção nacional de futebol. Para a surpresa de muitos, no contexto da CPI da Nike, na Câmara dos Deputados, no fim do século passado, descobriu-se que a CBF não era entidade pública, que a maior parte das suas decisões não dependiam do poder público. Ou seja, a seleção de futebol é um patrimônio cultural dos brasileiros, mas quem decide sobre os seus caminhos – ou descaminhos –, não são representantes da sociedade, mas um grupo muito pequeno.

Bolsonaristas fazem manifestação antidemocráticas – 02/11/2022 – Fotos Públicas

O que significa, então, a seleção hoje? Certamente, tem menos importância do que já teve. Mesmo porque o futebol também perdeu prestígio entre os brasileiros. Vale lembrar que os estádios viraram arenas e os seus frequentadores já não pertencem, em grande parte, aos setores populares. Assim, há uma diminuição no número de torcedores que acompanham uma partida de futebol no próprio campo; são torcedores de televisão, meio incapaz de mostrar o que é efetivamente uma partida de futebol, com todos os seus entornos e emoções.

Não é pouco importante que a seleção seja formada por “estrangeiros”, que atuam, principalmente, em clubes europeus. Não são jogadores que fazem parte do contexto do futebol e da sociedade no Brasil. Entre esses jogadores, há os que nem chegaram a jogar por uma equipe de ponta no país. O torcedor, em geral, mal conhece a trajetória profissional desses atletas. A identificação com a equipe canarinho, dessa forma, tende a diminuir.

Por fim, vale lembrar que essa Copa será no Catar. No deserto, com todos os estádios na mesma região urbana e com as partidas jogadas entre novembro e dezembro. São novidades importantes. Mas, assim como ocorreu no Brasil e na Rússia, entre outras nações que sediaram o torneio de futebol mais extraordinário que existe, novamente se apresentam as condições de um megaevento. Gastos astronômicos em meio a condições trabalhistas precárias. São altos investimentos e com retorno que chega para uma minoria.

Para mim, será uma Copa com menos emoção do que em outros momentos. E confesso que nos dias em que ocorrem partidas da seleção brasileira, gosto de perceber como a cidade se move. São interessantes partidas no meio da tarde, porque há trabalho na parte da manhã e muitas pessoas vão, no início da tarde, para suas casas ver o jogo. A cidade amanhece eufórica e, gradualmente, vai silenciando. A maior parte dos carros deixa de circular. Os sons da cidade transformam-se.

E eu não usarei a camisa amarela da seleção da CBF. Primeiro, porque a seleção, já há muitas Copas, não me entusiasma. Como torcer para jogadores que não conheço? Segundo, porque essa camisa está sequestrada pela extrema-direita. E ela se amalgamou-se de tal forma com o que há de pior entre os brasileiros, que não existe salvação ou alguma forma de resgate. Talvez seja necessário que a CBF pense em outro uniforme, como a volta da camisa branca.

Enquanto isso, minha atenção recairá sobre as boas seleções e na busca por boas partidas. E torcer para que o futebol se reinvente com urgência, com a volta das classes populares às arquibancadas para torcer pelos seus times e não apenas assistir a jogo sentado em uma cadeira plástica.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Plinio Labriola Negreiros

Professor de HistóriaEstudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. A camisa amarela da seleção. Ludopédio, São Paulo, v. 161, n. 15, 2022.
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