A cena do boxe: a nobre arte e o futebol-arte (parte IV)
Da medalha de ouro nas Olimpíadas de Roma, em 1960, à conquista do cinturão dos pesos pesados, em 1964, Muhammad Ali empreendera o percurso de uma transformação radical cujo significado ecoava por toda a esfera do Atlântico Negro. No Brasil, o caráter perturbador de que se revestia tal mudança não passava despercebida, sendo, aliás, devidamente captada e transmitida aos admiradores da nobre arte pela reportagem de A Gazeta Esportiva Ilustrada:
Diríamos que Cassius Clay, agora “Muhammad Ali”, pela religião muçulmana que professa, é mesmo antipático aos próprios norte-americanos.[1]
O renascimento simbólico do novo campeão dos pesos pesados suscitava apreensões, provocava desconcerto, impondo aos formadores de opinião a árdua tarefa de traduzir o acontecimento histórico representado pelo advento de Muhammad Ali, esvaziando-o, tanto quanto possível, dos significados ameaçadores que lhe estavam associados. A Tribuna, de Santos, por exemplo, continuava a se referir ao lutador como “Cassius Clay”, taxando-o em suas páginas como um “empedernido fanfarrão”.[2] Ao mesmo tempo, porém, a figura do “crioulo campeão” despertava admiração em virtude de uma forma de atuar no ringue que evocava a dimensão estética presente no gramado de jogo.[3] Nada mais emblemático nesse sentido do que o exercício comparativo traçado nas páginas de A Gazeta Esportiva Ilustrada entre a estilística de luta do boxeador estadunidense e o modo de atuar do jogador brasileiro. De fato, enquanto Muhammad Ali definia a si próprio como “um mestre da dança” [4]; Servílio, atacante do Corinthians nos anos 1930, era cognominada de “bailarino”. A comparação estabelecida pela revista nos anos 1960 explicitava os jogos de identificação tecidos no contexto mais amplo do Atlântico Negro:
O homem dava espetáculos. Se fosse nos dias de hoje, alguém daria logo ao baiano o “nome” de Cassius Clay. E não estaria exagerando de maneira alguma. Os Sonny Liston das defensivas contrárias jamais conseguiram “parar” aquele demônio.[5]
O paralelo entre o lutador e o jogador aproximava a nobre arte do futebol-arte, encontrava-lhes um ponto de intersecção onde o culto da virilidade, exigido em graus variados em ambas as esferas, via-se nuançada pelo recurso a novas técnicas corporais, comumente situadas no universo feminino. Nesse sentido, enquanto o primeiro dançava igual uma borboleta e picava feito uma abelha; o segundo driblava os adversários como quem os convidava para dar alguns passos de valsa, de samba, ou de gafieira. Lá e cá, no entanto, o efeito era o mesmo: enredar o oponente na armadilha da batalha lúdica e solapar o esquema perceptivo do observador tradicional.
O exercício comparativo, porém, não se esgotava na dimensão estética do problema, mas se desdobrava no plano político da ação esportiva. À medida que ia adquirindo contornos mais nítidos, enunciando de maneira mais contundente suas mensagens, a analogia envolvendo o boxeador norte-americano e o jogador brasileiro tornava-se cada vez mais temerária, ensejando de forma inadvertida linhas de reflexão que escapavam ao regime de verdade do campo esportivo. Ela comportava o risco potencial de inspirar a recusa do atleta negro em corresponder às representações sociais dominantes, em levá-lo a não aceitar sem questionamento o lugar que lhe era designado na estrutura do futebol ou do boxe ou de qualquer outra modalidade, como nos mostra de forma eloquente a redefinição da identidade negra de Paulo César Lima, apanhando de surpresa a crônica esportiva, qual um gancho de esquerda:
Eu sou o Muhammad Ali do futebol.[6]
Ponta-esquerda do Botafogo, jogador da Seleção Canarinho, mas, sobretudo, expoente do movimento de contestação dos atletas profissionais nos anos setenta, ele expressava através do futebol a luta contra a posição subalterna à qual se viam relegados os negros na sociedade brasileira. Os setores mais conservadores da imprensa esportiva não lhe perdoavam a ousadia de assumir posições combativas na esfera do jogo. Até mesmo a revista Placar, mais alinhada ao campo progressista, não deixava de provocá-lo quando a oportunidade se oferecia: “Cadê o crioulinho rebelde?”.[7] Durante muito tempo, o espectro representado por um “Muhammad Ali de chuteiras” rondaria o País do Futebol.[8] Os jogos de identificação envolvendo o jogador brasileiro e o pugilista afro-americano, as comparações estabelecidas pela imprensa esportiva, associando, no plano das técnicas corporais, o ringue e o campo, e distinguindo, no plano das relações raciais, Ali e Pelé, desvelava em que medida a nobre arte se afigurava uma referência importante para o futebol-arte, tanto no campo esportivo quanto no âmbito político. A influência exercida pela primeira sobre o segundo irrompia de forma surpreendente, em 1970, nas reflexões de Didi acerca das estratégias de jogo que convinha a uma equipe tecnicamente inferior adotar diante de um adversário mais forte:
A gente joga para frente quando tem jogadores. Futebol é como boxe. O lutador que não tem pegada deve ficar se defendendo e cansando o adversário até derrubá-lo. Se abrir a guarda para uma luta igual, ele pode até ser nocauteado no primeiro assalto.[9]
Gentil Cardoso, por sua vez, reunia em 1967 os atletas do Vasco da Gama para uma preleção baseada na biografia de Joe Louis.[10] O técnico negro desejava transmitir ao elenco os ensinamentos contidos na obra do boxeador afro-americano. Vertidos para a realidade brasileira, tais ensinamentos contemplavam também a questão racial, pois, como salientava Gentil Cardoso, o preconceito no nosso país era um “fato” que somente a “hipocrisia” poderia encobrir.[11]
O futebol-arte se constituía, portanto, em uma rede complexa e heterogênea de ideias de caráter político-esportiva, algumas abertamente subversivas, outras simplesmente pragmáticas, ideias que tanto no primeiro caso quanto no segundo assimilavam lições extraídas da nobre arte.
https://www.instagram.com/p/Bjki9K7g7ht/?utm_source=ig_web_copy_link
Todavia, neste ponto, convém formularmos a seguinte questão: por acaso não havia um movimento na direção contrária, isto é, não havia nenhum tipo de aprendizado, qualquer contribuição, por menor e mais modesta que se queira considerá-la, dos jogadores negros brasileiros para os atletas afro-americanos, ou, de modo mais amplo, para os esportistas da diáspora africana? Desdobrando a pergunta: estamos, assim, tão seguros acerca da oposição binária instituída no campo das relações raciais, localizando, do lado da resistência, Ali, e do lado da “alienação”, Pelé? A resposta para esta série de indagações encontra-se nas incursões do Santos pelo mercado estadunidense, empreendidas a partir de meados dos anos sessenta, conforme veremos no próximo artigo.[12]
Notas
[1] Cf. “Cassius Clay conserva a coroa dos pesados”, revista A Gazeta Esportiva Ilustrada, n. 302, 2ª quinzena de maio de 1966.
[2] Cf. “Boxe”, A Tribuna, 1 de janeiro de 1965.
[3] Cf. “Clay venceu dois numa só noite: Terrel e WBA”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, n. 319, 1ª quinzena de fevereiro de 1967
[4] Mailer, Norman (1998) A luta. São Paulo, Companhia das Letras, p. 62).
[5] Cf. “Servílio pai seria hoje o Cassius Clay do futebol! ”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, n. 249, 1ª quinzena março de 1964.
[6] Cf. “Um craque acuado, com medo do fim”, revista Placar, n. 550, 14 de novembro de 1980.
[7] Cf. “Eu sou a solução do Vasco e do Brasil”, revista Placar, n. 531, 4 de julho de 1980.
[8] No início da década de noventa, uma reportagem na imprensa referia-se em tom de deboche ao principal expoente da última geração de rebeldes do futebol brasileiro, Romário, como um “Muhammad Ali de chuteiras”. Cf. revista Veja. 15 de novembro de 1993.
[9] Cf. “Este velho senhor está de volta ao Rio”, revista Placar, n. 16, 3 de julho de 1970.
[10] Cf. “Gentil aconselha jogadores do Vasco a ler Gandhi, a vida de Santos e Joe Louis”, Jornal do Brasil, 10 de junho de 1967. A biografia do boxeador chamava-se: “Nunca beijei a lona”.
[11] Cf. “Gentil foi recebido no Vasco com abraços” e “Gentil Cardoso, um técnico diferente”, Jornal do Brasil, 9 de junho de 1967.
[12] Cf. “Santos e Milan quebram recordes e empatam em Nova Iorque”, A Tribuna, 12 de junho de 1965. Esta primeira partida da equipe praiana nos Estados Unidos não teve a presença de Pelé, convocado para atuar pela Seleção Brasileira.