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A cena do boxe: a nobre arte e o futebol-arte (parte IV)

José Paulo Florenzano 2 de abril de 2020

Da medalha de ouro nas Olimpíadas de Roma, em 1960, à conquista do cinturão dos pesos pesados, em 1964, Muhammad Ali empreendera o percurso de uma transformação radical cujo significado ecoava por toda a esfera do Atlântico Negro. No Brasil, o caráter perturbador de que se revestia tal mudança não passava despercebida, sendo, aliás, devidamente captada e transmitida aos admiradores da nobre arte pela reportagem de A Gazeta Esportiva Ilustrada:

Diríamos que Cassius Clay, agora “Muhammad Ali”, pela religião muçulmana que professa, é mesmo antipático aos próprios norte-americanos.[1]

O renascimento simbólico do novo campeão dos pesos pesados suscitava apreensões, provocava desconcerto, impondo aos formadores de opinião a árdua tarefa de traduzir o acontecimento histórico representado pelo advento de Muhammad Ali, esvaziando-o, tanto quanto possível, dos significados ameaçadores que lhe estavam associados. A Tribuna, de Santos, por exemplo, continuava a se referir ao lutador como “Cassius Clay”, taxando-o em suas páginas como um “empedernido fanfarrão”.[2] Ao mesmo tempo, porém, a figura do “crioulo campeão” despertava admiração em virtude de uma forma de atuar no ringue que evocava a dimensão estética presente no gramado de jogo.[3] Nada mais emblemático nesse sentido do que o exercício comparativo traçado nas páginas de A Gazeta Esportiva Ilustrada entre a estilística de luta do boxeador estadunidense e o modo de atuar do jogador brasileiro. De fato, enquanto Muhammad Ali definia a si próprio como “um mestre da dança” [4]; Servílio, atacante do Corinthians nos anos 1930, era cognominada de “bailarino”. A comparação estabelecida pela revista nos anos 1960 explicitava os jogos de identificação tecidos no contexto mais amplo do Atlântico Negro:

O homem dava espetáculos. Se fosse nos dias de hoje, alguém daria logo ao baiano o “nome” de Cassius Clay. E não estaria exagerando de maneira alguma. Os Sonny Liston das defensivas contrárias jamais conseguiram “parar” aquele demônio.[5]

Servílio de Jesus, em foto do Jornal Mundo Esportivo, n. 87, 22 abr. 1948. Foto: Reprodução/Blog Tardes de Pacaembu.

O paralelo entre o lutador e o jogador aproximava a nobre arte do futebol-arte, encontrava-lhes um ponto de intersecção onde o culto da virilidade, exigido em graus variados em ambas as esferas, via-se nuançada pelo recurso a novas técnicas corporais, comumente situadas no universo feminino. Nesse sentido, enquanto o primeiro dançava igual uma borboleta e picava feito uma abelha; o segundo driblava os adversários como quem os convidava para dar alguns passos de valsa, de samba, ou de gafieira. Lá e cá, no entanto, o efeito era o mesmo: enredar o oponente na armadilha da batalha lúdica e solapar o esquema perceptivo do observador tradicional.

O exercício comparativo, porém, não se esgotava na dimensão estética do problema, mas se desdobrava no plano político da ação esportiva. À medida que ia adquirindo contornos mais nítidos, enunciando de maneira mais contundente suas mensagens, a analogia envolvendo o boxeador norte-americano e o jogador brasileiro tornava-se cada vez mais temerária, ensejando de forma inadvertida linhas de reflexão que escapavam ao regime de verdade do campo esportivo. Ela comportava o risco potencial de inspirar a recusa do atleta negro em corresponder às representações sociais dominantes, em levá-lo a não aceitar sem questionamento o lugar que lhe era designado na estrutura do futebol ou do boxe ou de qualquer outra modalidade, como nos mostra de forma eloquente a redefinição da identidade negra de Paulo César Lima, apanhando de surpresa a crônica esportiva, qual um gancho de esquerda:

Eu sou o Muhammad Ali do futebol.[6]  

Paulo César Lima ergueu punho cerrado para foto de capa da revista Placar (n. 59), publicada em 30 de abril de 1971. Foto: Reprodução.

Ponta-esquerda do Botafogo, jogador da Seleção Canarinho, mas, sobretudo, expoente do movimento de contestação dos atletas profissionais nos anos setenta, ele expressava através do futebol a luta contra a posição subalterna à qual se viam relegados os negros na sociedade brasileira. Os setores mais conservadores da imprensa esportiva não lhe perdoavam a ousadia de assumir posições combativas na esfera do jogo. Até mesmo a revista Placar, mais alinhada ao campo progressista, não deixava de provocá-lo quando a oportunidade se oferecia: “Cadê o crioulinho rebelde?”.[7] Durante muito tempo, o espectro representado por um “Muhammad Ali de chuteiras” rondaria o País do Futebol.[8] Os jogos de identificação envolvendo o jogador brasileiro e o pugilista afro-americano, as comparações estabelecidas pela imprensa esportiva, associando, no plano das técnicas corporais, o ringue e o campo, e distinguindo, no plano das relações raciais, Ali e Pelé, desvelava em que medida a nobre arte se afigurava uma referência importante para o futebol-arte, tanto no campo esportivo quanto no âmbito político. A influência exercida pela primeira sobre o segundo irrompia de forma surpreendente, em 1970, nas reflexões de Didi acerca das estratégias de jogo que convinha a uma equipe tecnicamente inferior adotar diante de um adversário mais forte:

A gente joga para frente quando tem jogadores. Futebol é como boxe. O lutador que não tem pegada deve ficar se defendendo e cansando o adversário até derrubá-lo. Se abrir a guarda para uma luta igual, ele pode até ser nocauteado no primeiro assalto.[9]               

Gentil Cardoso, por sua vez, reunia em 1967 os atletas do Vasco da Gama para uma preleção baseada na biografia de Joe Louis.[10]  O técnico negro desejava transmitir ao elenco os ensinamentos contidos na obra do boxeador afro-americano. Vertidos para a realidade brasileira, tais ensinamentos contemplavam também a questão racial, pois, como salientava Gentil Cardoso, o preconceito no nosso país era um “fato” que somente a “hipocrisia” poderia encobrir.[11]

O futebol-arte se constituía, portanto, em uma rede complexa e heterogênea de ideias de caráter político-esportiva, algumas abertamente subversivas, outras simplesmente pragmáticas, ideias que tanto no primeiro caso quanto no segundo assimilavam lições extraídas da nobre arte.

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Todavia, neste ponto, convém formularmos a seguinte questão: por acaso não havia um movimento na direção contrária, isto é, não havia nenhum tipo de aprendizado, qualquer contribuição, por menor e mais modesta que se queira considerá-la, dos jogadores negros brasileiros para os atletas afro-americanos, ou, de modo mais amplo, para os esportistas da diáspora africana? Desdobrando a pergunta: estamos, assim, tão seguros acerca da oposição binária instituída no campo das relações raciais, localizando, do lado da resistência, Ali, e do lado da “alienação”, Pelé? A resposta para esta série de indagações encontra-se nas incursões do Santos pelo mercado estadunidense, empreendidas a partir de meados dos anos sessenta, conforme veremos no próximo artigo.[12]


Notas

[1] Cf. “Cassius Clay conserva a coroa dos pesados”, revista A Gazeta Esportiva Ilustrada, n. 302, 2ª quinzena de maio de 1966.

[2] Cf. “Boxe”, A Tribuna, 1 de janeiro de 1965.

[3] Cf. “Clay venceu dois numa só noite: Terrel e WBA”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, n. 319, 1ª quinzena de fevereiro de 1967

[4] Mailer, Norman (1998) A luta. São Paulo, Companhia das Letras, p. 62).

[5] Cf. “Servílio pai seria hoje o Cassius Clay do futebol! ”, A Gazeta Esportiva Ilustrada, n. 249, 1ª quinzena março de 1964.

[6] Cf. “Um craque acuado, com medo do fim”, revista Placar, n. 550, 14 de novembro de 1980.

[7] Cf. “Eu sou a solução do Vasco e do Brasil”, revista Placar, n. 531, 4 de julho de 1980.

[8] No início da década de noventa, uma reportagem na imprensa referia-se em tom de deboche ao principal expoente da última geração de rebeldes do futebol brasileiro, Romário, como um “Muhammad Ali de chuteiras”. Cf. revista Veja. 15 de novembro de 1993.

[9] Cf. “Este velho senhor está de volta ao Rio”, revista Placar, n. 16, 3 de julho de 1970.

[10] Cf. “Gentil aconselha jogadores do Vasco a ler Gandhi, a vida de Santos e Joe Louis”, Jornal do Brasil, 10 de junho de 1967. A biografia do boxeador chamava-se: “Nunca beijei a lona”.

[11] Cf. “Gentil foi recebido no Vasco com abraços” e “Gentil Cardoso, um técnico diferente”, Jornal do Brasil, 9 de junho de 1967.

[12] Cf. “Santos e Milan quebram recordes e empatam em Nova Iorque”, A Tribuna, 12 de junho de 1965. Esta primeira partida da equipe praiana nos Estados Unidos não teve a presença de Pelé, convocado para atuar pela Seleção Brasileira.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A cena do boxe: a nobre arte e o futebol-arte (parte IV). Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 2, 2020.
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