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A Copa do Mundo de 1934 e o fascismo italiano: Um bate bola sobre futebol e política

O futebol pode ser uma excelente ferramenta didático-metodológica para debater diversos assuntos em contextos diferentes e disciplinas distintas. Por ser o esporte mais popular do Brasil e do mundo, fazer conexões envolvendo o futebol, política e a História não se torna uma relação difícil. Muito pelo contrário. Deve-se fazer esse movimento das estruturas curriculares com o esporte e as práticas lúdicas, principalmente se conhecer a realidade do local e os sujeitos que o compõem.

Na disciplina de História, debater o conteúdo envolvendo os aspectos do esporte auxilia a problematizar outros contextos e desdobramentos no ensino-aprendizagem do alunado. Além de não ser uma aula tradicional envolvendo somente o livro didático, a realidade do cotidiano da turma aparece nas discussões em sala de aula.

Assim, o presente texto é um relato de experiência em uma turma de 9º ano, em uma escola estadual do campo no interior do Rio Grande do Sul. A escola tem como característica ser em uma região de imigração italiana. A questão central aqui relatada dá-se a partir de um trabalho sobre regimes totalitários, através da disciplina de História. Nesse sentido, tivemos como objetivo trabalhar os regimes nazifascistas a partir do futebol, no caso do fascismo italiano (1922-1943) e, no caso do nazismo alemão (1933-1945), trabalhamos a partir das Olimpíadas de Berlim de 1936. Aqui especificamente, nos deteremos na experiência trabalhada sobre o futebol e o fascismo italiano

Como metodologia utilizamos, a saber: a) o livro didático[1]; b) vídeos do canal Peleja[2][3] que apresenta panoramas sobre torcidas fascistas na Itália; c) adaptações do artigo “O neofascismo no Brasil”, de Armando Boito; d) além de problematizações levantadas em sala de aula. Depois de debatermos sobre a Grande Depressão, falamos sobre as consequências que ocorreram na Europa antes da Segunda Guerra Mundial (JÚNIOR, 2021).

Num primeiro momento, para os educandos terem uma breve noção sobre o conceito de Fascismo, entreguei uma folha com a definição de fascismo e neofascismo, a partir do artigo do Armando Boito. Após isso, coloquei no quadro a palavra “fascismo” e os alunos foram falando o que entenderam sobre a definição e tentando resumir minha descrição em uma palavra. A maioria das palavras descritas foram: preconceito, xenofobia, ódio, “coisa ruim”, entre outros.

Copa 1934
Cartaz promocional da Copa do Mundo FIFA de 1934. Fonte: Wikipédia

Ao passo que 2022 é ano de Copa, decidi falar sobre a Copa do Mundo de 1934 e a influência que o fascismo teve no torneio. O regime fascista influenciou não só o principal torneio futebolístico do mundo, mas também o próprio campeonato italiano, como por exemplo, incentivando a profissionalização. Em 1926, o governo fascista escreveu a Carta Viareggio, que expulsava os jogadores estrangeiros, além dos presidentes das federações serem indicados pelo ditador Benito Mussolini (ROSA, 2019).

Apesar da Carta Viareggio expulsar os estrangeiros do futebol, jogadores sul-americanos atuaram pela seleção italiana, até mesmo um brasileiro chamado Anfilogino Guarisi, de apelido Filó. A ideia colocada em sala de aula foi entender as contradições que existiam no regime a partir das convocações de brasileiros e outros sul-americanos que jogaram pela Itália. Desse modo, a seleção italiana convocou estrangeiros para tornar a equipe competitiva para a Copa do Mundo.

Um ponto importante para entender o contexto da escola e dos alunos, se dá onde geograficamente se localiza a instituição. A escola está localizada no interior do Rio Grande do Sul, no qual possui forte identificação com a imigração italiana. Nessa região existe um forte imaginário de pertencimento a uma Itália antiga, um orgulho imigrante europeu, uma exaltação do passado e um sentimento meritocrático das terras conquistadas. Sabemos que a vinda da imigração europeia foi de muito trabalho, e, que, curiosamente as primeiras cotas sociais/raciais[4] foram para essa imigração, no qual ocorreu no final do século XIX. Assim, essa imigração recebeu terras, sementes, além de todos os meios de produção para uma vida digna.

O debate envolvendo Itália, ascensão do fascismo e o racismo é um tema muito sensível para ser trabalhado. Logo, o futebol foi um instrumento viável para abordar essa temática. Dessa forma, conseguimos trabalhar a ascensão de regimes totalitários que compõem a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)[5], envolvendo a Copa do Mundo de 1934 e 1938, no qual a Itália foi a vencedora.

Copa 1934
Seleção italiana na Copa de 1934. Fonte: Wikipédia

Após perceber a maioria do posicionamento do alunado, começamos a debater sobre o neofascismo e as consequências para a contemporaneidade. Assim, debatemos sobre as características dessas ideias como: o ultraconservadorismo, admirar a violência, ter um herói ou líder, perseguir quem pensa diferente e discursos intolerantes. Elementos característicos de uma sociedade com traços fascistas, não estando longe do nosso cotidiano.

A partir do fenômeno da imigração atual na Europa e o posicionamento dos europeus que residem nesses países, observamos comportamentos próximos aos fascistas/neofascistas. Logo, a pergunta chave para a construção da empatia em sala de aula foi: “Se aqui é uma região de imigração, qual foi o motivo dos italianos se deslocaram para a América?”

As respostas, quase que totalitárias, foram: buscar melhores condições de vida; buscar trabalho; fugir da fome; fugir das guerras; recomeçar a sua vida e de seus familiares. Desse modo, a ideia foi comparar a vinda dos imigrantes europeus no século XIX e o deslocamento forçado de africanos e asiáticos para a Europa na contemporaneidade.

O debate que estava acontecendo em sala de aula era em relação a xenofobia, a pessoas imigrantes não europeias que entravam no continente. O movimento foi para se colocarem também enquanto descendentes de imigrantes que se deslocaram por motivos forçados, mas compreender o motivo de não sofrerem xenofobia e discriminação. No início do ano letivo debatemos sobre o Brasil no século XIX e a imigração, logo, conseguimos fazer um debate sobre o branqueamento[6] no país e as consequências do Pós-Abolição.

O ato de se colocar no lugar do outro foi uma ferramenta para evitar piadas ou reproduções de ideias fascistas e/ou neofascistas. Consequentemente, compreender que a história do “outro” é parecida com a dos seus familiares e a opressão sofrida não se dá somente na Europa, mas acontece no Brasil. Assim, entender o preconceito sofrido por imigrantes haitianos, venezuelanos, colombianos, equatorianos, nigerianos, senegaleses, angolanos e demais etnias e povos.

Portanto, o debate sobre a Copa do Mundo de 1934, foi uma ferramenta pedagógica para debates sensíveis e “polêmicos”, no qual trabalhamos temas como racismo, xenofobia, futebol, existencialidade dos alunos e construção de identidade através da História. Futebol e política além de se relacionarem, são movimentos dialéticos nas suas constituições de existência. Desse modo, a ideia foi entender que ações xenofóbicas no esporte são reflexos de uma sociedade que se tornou compatível a visões e comportamentos fascistas. Assim, mesmo brasileiros e sul-americanos, praticamos a xenofobia com imigrantes que possuem os mesmos objetivos que os primeiros imigrantes italianos tinham quando chegaram: construir uma vida melhor e buscar condições de trabalho digna.

Notas

[1] BOULOS JR, Alfredo. História: sociedade & cidadania. Editora FTD: São Paulo. 4ª edição, 2018.

[2] A verdade sobre os posicionamentos políticos da sua torcida. Produção Canal Peleja. Acessado em: 10 nov. 2022.

[3]  O Livorno é o lado vermelho da Itália. Produção Canal Peleja. Acessado em: 10 nov.2022. https://www.youtube.com/watch?v=fBCVYZI1j4g.  Acessado em: 10 nov. 2022.

[4] Reportagem sobre os primeiros cotistas raciais e socias no Brasil. Obviamente entendemos a importância das políticas públicas tanto sociais, como raciais. Além de entendermos, apoiamos e lutamos pelas políticas públicas. Entretanto, em relação as imigrações europeias não são debatidas as cotas raciais recebidas pelos imigrantes em suas comunidades, muito menos a questão do branqueamento do país motivada pela vinda da imigração. De fato, o que é falado é a meritocracia, o orgulho e o pertencimento de uma comunidade de imigrantes italianos. 
GOLIN, Tau
. Os cotistas desagradecidos. Sul21, Porto Alegre, 06 jun. 2014.

[5] Para a BNCC é a Habilidade: EF09HI13- descrever e contextualizar os processos da emergência do fascismo e do nazismo, a consolidação dos estados totalitários e as práticas de extermínio.

[6] O texto da Maria Aparecida Bento foi orientador para o debate, intitulado de “Branqueamento e Branquitude no Brasil”. Ver mais em: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/racismo/racismo_institucional__caderno_do_evento_bh_2014.pdf#page=5

Referências bibliográficas

BENTO, M. A. . Branqueamento e branquitude no Brasil. In: BENTO, M. A. S.; CARONE, Iray. (orgs.) Psicologia Social do Racismo. Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, Vozes, 2003.

BOULOS JR, Alfredo. História: sociedade & cidadania. Editora FTD: São Paulo. 4ª edição, 2018

DIMAS JUNIOR, . Futebol & Copas: uma aula de história. São Paulo: Editora Gregory, 2019.

GOLIN, Tau. Os cotistas desagradecidos. Sul21, Porto Alegre, 06 jun. 2014.

ROSA, Thiago. Itália e a Copa de 34: uma vitória com toques de fascismoLudopédio, São Paulo, v. 119, n. 24, 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Elias Cósta de Oliveira

Historiador, mestrando, pesquisador, sócio inadimplente, amor platônico por um time de bairro e apreciador de batidas de limão.Participante do STADIUM (Grupo de Estudos de História do Esporte e Práticas Lúdicas) da Universidade Federal de Santa Maria/RS

Como citar

OLIVEIRA, Elias Cósta de. A Copa do Mundo de 1934 e o fascismo italiano: Um bate bola sobre futebol e política. Ludopédio, São Paulo, v. 163, n. 5, 2023.
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