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A Copa do Mundo do Brasil vista de Portugal

Giovana Capucim e Silva 20 de novembro de 2014

Não é preciso descrever para um leitor do Ludopédio, amante do futebol, a sensação de imenso e intenso prazer que é a Copa do Mundo de futebol, principalmente durante a infância quando questões “de gente grande” que cercam o evento não nos atingem. Lembro-me de que no desfecho de cada torneio eu pensava, o quanto seria fantástico se, algum dia, a Copa do Mundo fosse realizada no Brasil. Naquela época, isso não passava de um sonho de criança, algo que nunca aconteceria. Pensava eu que a única vez que o Brasil organizou uma Copa foi depois da II Guerra Mundial, quando a Europa estava destruída. Preferia, então, ficar sem guerra e sem Copa no meu país.

Os anos foram passando, o lucro da FIFA aumentando e começou-se a falar sobre um “revezamento de continentes” ou algo parecido com isso. Naquela, vencida pelo Brasil, que foi a primeira Copa no continente asiático anunciava-se: depois do torneio na Alemanha, o próximo seria no continente africano. Começaram, então, a circular rumores sobre o tal “rodízio de continentes” e a ida da Copa para a América do Sul em 2014. Nos idos de 2004, ainda tomada pela emoção da vitória brasileira no último campeonato do mundo, me deparei, num domingo qualquer ao abrir o caderno de esportes, com a seguinte manchete: “A Copa de 2014 será no Brasil”. Desse jeito. Afirmando categoricamente. Sem nenhuma condicional ou verbo no subjuntivo. Quase uma profecia. Li, reli, mostrei ao meu pai, duvidei e ele também. Então, como já tinha o hábito de guardar recortes de jornal que julgava marcantes – muito antes de fazer ideia que me tornaria historiadora – guardei este também. Minha ideia era, em 2014, ter a prova cabal de que o jornal fazia afirmações levianas. Não seria a primeira vez. No entanto, ele estava certo naquela ocasião.

A presidenta Dilma e o presidente da Fifa, Joseph Blatter, na apresentação oficial da taça da Copa do Mundo. Foto: José Cruz – Agência Brasil.

Em 2007, já depois da decepção do “quadrado mágico”, da trágica aposentadoria de Zidane e da Itália ter encostado – não alcançado – no Brasil em número de títulos, foi, então, feito o anúncio oficial. Àquela altura o Brasil já era o único candidato e eu havia passado os últimos anos me acostumando com aquela ideia, a tomando como parte da minha realidade e, já na faculdade, começando a pensar o quanto aquilo, apesar de mágico, seria realmente bom para o Brasil. Nos próximos sete anos a mágica que rondava a Copa do Mundo na minha infância me fez ter quase vergonha de ver aquele sonho de criança tomando forma: incêndios em favelas, desapropriações, prisões arbitrárias em protestos, estádio do rival construído com dinheiro público, obras superfaturadas, remoções indevidas e um festival de bobagens e arbitrariedades por parte das autoridades da FIFA e dos governantes brasileiros em todas as instâncias.

O corte das meias-entradas deu-me certeza de que eu, assim como a maior parte da população brasileira que sonhava com o evento, provavelmente não faria parte daquele espetáculo. A certeza veio em meados de 2013 quando surgiu a oportunidade de ir estudar em Portugal em 2014. E perder a Copa no meu país, perder o sonho, que naquele momento já parecia um pesadelo repleto de violência policial e capitalismo selvagem, de ver a Copa acontecendo bem diante dos meus olhos. Não poderia, no entanto, perder a oportunidade de ir estudar no exterior. Assim, comecei a pensar por um outro lado e a refletir: como será assistir uma Copa do Mundo realizada no Brasil da Europa? O que dirão os europeus, particularmente os portugueses sobre a nossa Copa? Nossa estrutura? Nossas instalações que todos os jornais brasileiros julgavam caóticas? Com essas e tantas outras indagações e o peito meio apertado, parti em Abril de 2014, meses antes do Mundial, para Lisboa.

Torcedor português na estreia de sua seleção na Copa do Mundo de 2014. Foto: Clive Brunskill – Getty Images for Sony.

Na chegada à Lisboa, logo percebi o tom que rondava o mundial brasileiro. Logo o taxista do aeroporto já me indagou: está tudo atrasado, será que os estádios ficarão prontos? Na minha experiência do Pan-Americano do Rio de Janeiro de 2007, disse a ele, convicta: “Ficará tudo pronto na véspera e todo mundo vai achar tudo maravilhoso, você vai ver”. E por diversas vezes indagações como essa me foram direcionadas e respondi, a todas, com a mesma otimista certeza. Com o tempo, percebi que o otimismo não era uma exclusividade de meu país. Por pior que fosse a situação da seleção portuguesa, desde a convocação controversa (e qual não é?) que deixou de fora ídolos como Quaresma, passando pela contusão do principal jogador (e atual melhor do mundo), o otimismo português prevalecia: desejavam uma final entre Brasil e Portugal no Maracanã.

Com a aproximação da Copa, os comerciais nacionalistas na televisão exaltavam o amor português pelo futebol, o fato de terem o melhor jogador do mundo em sua seleção e a proximidade com o Brasil, geográfica e cultural. Esses fatores eram postos como vantagens da seleção portuguesa sobre as demais equipes europeias. Logo também começaram a aparecer bandeiras e cachecóis – tradição europeia de estádios – nas janelas, como acontece no Brasil, mas em menor escala. Dizem alguns portugueses que essa tradição de enfeitar as fachadas com as cores nacionais foi iniciada pelo brasileiro Felipão, chamado em terras lusitanas de Scolari. Outros dizem que ela já existia, mas certamente ele foi um grande incentivador da prática, assim como da própria ideia de “pátria de chuteiras”, durante a Euro de 2004, organizada no país e durante o campeonato do mundo de 2006.

A festa de abertura teve como principal decepção para mim a transmissão do pontapé inicial dado por um tetraplégico. Ou melhor, o esforço descarado da televisão em não mostrá-lo. Avanço tecnológico brasileiro na área da medicina não era o que as emissoras pretendiam mostrar ao mundo sobre o Brasil. As belezas naturais, a miscigenação dos povos, a democracia racial (que ficou de fora das arquibancadas), o Brasil exótico e, confuso ao ver o gaúcho andando de bicicleta pelos morros do Rio de Janeiro. Não importa que não fizesse sentido, era esta imagem que se queria perpetuar pelo mundo: a reprodução de uma ideia de Brasil, construído de longa data. Qualquer propaganda de turismo para o Brasil na Europa exalta isso, quase da mesma maneira que nós exaltamos a cultura dos museus e cidades europeias e escondemos, quase que com vergonha, o fato de termos tido, recentemente, eleito dois dentre os melhores museus do mundo em nosso país. Omitimos o fato de sermos um país referência em acessibilidade – sem nem falar de exoesqueleto – dentre tantos outros padrões de qualidade e tecnologia que exportamos para o mundo todo. Parece-me que a leitura dos europeus sobre o Brasil, e vice-versa, nunca saiu do século XIX e de seus binômios cultura-natureza e civilização-barbárie – dentre tantas outras visões maniqueístas afirmadas nessa época das quais ainda não nos livramos e, muito menos, superamos.

Cerimônia de abertura da Copa de 2014. Foto: Danilo Borges – Portal da Copa.
Cerimônia de abertura da Copa de 2014. Foto: Marcello Casal Jr. – Agência Brasil.

Além dessas decepções, tampouco esperava que ainda tivessem andaimes e operários fazendo ajustes finais com as pessoas entrando para assistir à abertura, meu otimismo havia sido demasiado. Ainda assim, a Copa começou. Em Portugal a abertura da Copa do Mundo geralmente coincide com a Festa dos Santos Populares, a maior festa de rua do país, semelhante a uma imensa quermesse homenageando os santos católicos do mês, assim como as nossas festas juninas. Ao sair nas ruas depois do jogo entre Brasil e Croácia, havia inúmeras pessoas vestindo camisas de suas seleções nacionais, num clima que misturava as tradições portuguesas com as nacionalidades dos transeuntes e a alegria geral pelo início do tão esperado Mundial.

A estreia portuguesa também mostrou que os portugueses andavam demasiadamente otimistas com relação a sua seleção que perdeu para a futura campeã do torneio por 4 a 0, tampouco embalou nos jogos seguintes e acabou eliminada ainda na primeira fase. A vida em Lisboa pouco mudou durante o dia. Era ao final do dia, quando os jogos começavam que uma movimentação anormal se apresentava, não só nos bares da cidade, mas, principalmente, na região da Praça Marquês de Pombal, onde foi instalado por uma televisão local um imenso telão que transmitia a maior parte dos jogos. O telão ficava ao lado da praça, no Parque Eduardo VII e diariamente enchia de portugueses, torcedores das equipes que estavam em campo ou outros moradores e turistas que desejavam assistir aos jogos em meio a outras pessoas e sem a obrigação de consumir nada. Nos intervalos os DJs colocavam músicas dançantes. Nos jogos do Brasil, não importava contra que adversário, eram sempre os últimos sucessos brasileiros na Europa que ocupavam todo o intervalo do jogo. O Parque ficava sempre muito cheio de brasileiros que reproduziam as formas de torcer que nos são características de Copa do Mundo ali naquele espaço e tempo.

Cristiano Ronaldo, de Portugal, tenta levar perigo ao gol alemão, mas é marcado de perto por Per Mertesacker. Foto: Clive Brunskill – Getty Images for Sony.

De diferenças do Brasil quanto ao “viver a Copa” parece-me que os europeus o fazem com mais intensidade. Isso porque os jogos no horário comercial nos impedem de acompanhá-los. A FIFA exige – dentre tantas outras coisas – que o horário dos jogos seja determinado de maneira que eles sejam transmitidos à noite no continente europeu. Assim, o indivíduo que trabalha na Europa pode acompanhar todos os jogos, vivendo, sob essa ótica, a Copa com mais intensidade. Não há um vazio entre os jogos da equipe nacional, pois há todos os dias a oportunidade de acompanhar grandes partidas, não somente no dia da seleção portuguesa. Os portugueses, em sua maioria, são amantes do futebol, tem um grande carinho pelo time brasileiro e torcem por ele, uma vez que Portugal esteja eliminado. Sofremos juntos na trágica eliminação brasileira.

Apesar de toda a tragédia, meu otimismo ao chegar aqui mostrou-se certeiro num aspecto: da imprensa, dos torcedores, dos otimistas e até dos pessimistas, só se ouviu elogios sobre a organização da Copa do Mundo no Brasil. Se na abertura, na escolha das sedes e até dos nomes dos estádios foi feito um esforço para mostrar um Brasil exótico e quase “selvagem”, a percepção do estrangeiro no Brasil a cobrir ou a assistir o Mundial, em geral, foi de um país que tinha muito mais a oferecer do que se esperava dele. Para isso se mantiveram os binômios para elogiar a “civilidade” brasileira e eliminar tudo o que a FIFA, governantes, imprensa e torcedores “vips” julgavam “bárbaro” como protestos e marginalizações que já fazem parte do modelo da Copa do Mundo de futebol masculino.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Giovana Capucim e Silva

Mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP) e é integrante do GIEF (Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol) e do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas-USP).

Como citar

SILVA, Giovana Capucim e. A Copa do Mundo do Brasil vista de Portugal. Ludopédio, São Paulo, v. 65, n. 6, 2014.
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