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A Copa do Qatar: Sportswashing

José Paulo Florenzano 20 de outubro de 2022

O investimento dos fundos soberanos  do Golfo Pérsico nos clubes europeus tem chamado a atenção dos analistas da política e do esporte. Recordemos a sequência: em 2008, o Abu Dhabi United Group, ligado à família real dos Emirados Árabes, em especial, ao xeique Mansour bin Zayed, assume o controle acionário do Manchester City. Em 2011, é a vez da Qatar Sports Investment, subsidiária da Qatar Investment Authority, fundo soberano do Qatar, controlado pelo emir Tamin bin Hamad bin Khalifa Al Thani, adquirir o Paris Saint-Germain.[1] Mais recentemente, em 2021, o Public Investment Fund, administrado pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, arrebata a maioria das ações do Newcastle United.[2]

Nasser Al-Khelaifi Neymar Paris Saint-Germain
Nasser Al-Khelaifi durante a apresentação oficial de Neymar no Paris Saint-Germain. Foto: C.Gavelle /PSG/Fotos Públicas

A investida, contudo, não se esgota no controle acionário e administrativo de clubes de futebol, mas envolve um amplo leque de modalidades e competições esportivas, como, por exemplo, a do automobilismo. Com efeito, em 2021, a Arábia Saudita fez sua estreia na Fórmula 1 com o Grande Prêmio de Jeddah; desde 2009 os Emirados Árabes promovem o Grande Prêmio de Abu Dhabi e, a partir de 2023, de forma regular, o Qatar também passará a integrar o circuito mundial de Fórmula 1 com o Grande Prêmio de Doha.

Existem razões políticas, diplomáticas e econômicas por trás desta intensa e arrojada movimentação em direção ao turismo de lazer, esporte e entretenimento. De um lado, ela expressa a necessidade conjunta de diversificar a atividade econômica no Golfo Pérsico, ainda muito atrelada ao petróleo e ao gás natural. De outro lado, porém, ela denota a tensão geopolítica provocada pela crescente disputa entre Arábia Saudita e Qatar pela hegemonia na região, disputa da qual a realização da Copa de 2022 constitui um capítulo importante, na medida em que confere ao país sede um lugar de relevo no mapa esportivo, elevando, por conseguinte, os custos políticos e diplomáticos de uma hipotética ação de força orquestrada pela potência rival.[3]

Todavia, para Paul Michael Brannagan e Richard Giulianotti, respectivamente, estudiosos das áreas de Relações Internacionais e de Sociologia do Esporte, a estratégia de soft power empregada pelas autoridades qataris produziram ao mesmo tempo um processo de “desempoderamento”, pois, ao tornar-se sede da Copa da FIFA, as mazelas do país foram expostas por vários órgãos de imprensa e canais de notícias (CNN, BBC, New York Times, The Guardian), sobretudo, a situação de superexploração dos migrantes econômicos contratados para as obras de infraestrutura do evento esportivo.[4] De fato, como assinala Havard Soyland Stamnes, outro pesquisador do campo das Relações Internacionais, a referida estratégia não se encontra isenta de riscos.[5]

Kyle Fruh, Alfred Archer e Jake Wojtowicz, no entanto, invertem os termos do problema a partir do emprego de uma nova categoria de análise.[6] De acordo com os autores da área de Filosofia, a Copa do Qatar pode ser mais bem compreendida como uma estratégia de sportswashing, adotada pelos governantes locais com o propósito deliberado de minimizar os desgastes morais provocados pela existência do histórico de violação dos direitos humanos no país.[7]  Já para Havard Soyland Stamnes, ao contrário, o “escrutínio da política interna” do Qatar, promovido pela imprensa ocidental, foi a “consequência não intencional” da prática de sportswashing consubstanciada no evento da FIFA.  

Ou seja, a depender da perspectiva teórica, a Copa de 2022 pode ser definida tanto como um caso de soft power quanto como um caso de sportswashing. Alguns autores procuram traçar uma distinção analítica entre as duas categorias, ao passo que outros parecem utilizá-las sem muita preocupação com as fronteiras conceituais. A rigor, não existe consenso nem mesmo entre os pesquisadores que lançam mão da segunda noção, pois, ora ela surge como o fator responsável pela existência de um problema a ser resolvido (a “consequência não intencional” causada pela adoção da prática de sportswashing), ora como o antídoto capaz de  combater os efeitos negativos gerados por um problema preexistente (o recurso à prática de sportswashing para desvincular a imagem pública da “mancha moral”).

Copa Catar
Fonte: divulgação

Mas, para avançarmos em um debate que por vezes parece girar em círculo, vejamos no que consiste exatamente a “lavagem esportiva”, expressão criada em 2015 no contexto da campanha de protesto movida por organizações não governamentais contra a primeira edição dos Jogos Europeus, na cidade de Baku, capital do Azerbaijão, país do Cáucaso governado por um regime autoritário, acusado de violação dos direitos humanos.[8] Para Kyle Fruh, Alfred Archer e Jake Wojtowicz, os casos paradigmáticos de sportswashing implicam três aspectos inter-relacionados, a saber: 1) a existência de uma violação moral grave e generalizada; 2) a ação política de um estado autoritário; 3)  o uso estratégico do esporte, o qual, por sua vez, pode ser instrumentalizado através da realização de eventos ou da aquisição de clubes. [9]

De um modo mais específico, a prática de sportswashing responde à necessidade imperativa de desviar a atenção ou distorcer a percepção externa sobre a gravidade das injustiças e violações reveladas. A aquisição do Newcastle, nesse sentido, emerge como um exemplo emblemático. Como se sabe, ela foi concretizada no momento em que a mídia ocidental pedia explicações às autoridades árabes sobre a morte do jornalista Jamal Khashoggi, colaborador do  Washington Post, assassinado em 2018 no consulado saudita em Istambul. Conforme sublinha Sacha Deshmukh, diretor da Anistia Internacional no Reino Unido:

 Sempre dissemos que essa negociação representava tentativa das autoridades sauditas de lavar a imagem da sua horrorosa estatística em direitos humanos com o glamour do futebol.[10]

Se, por um lado, a noção de sportswashing projeta luz sobre uma prática insidiosa acionada por agentes estatais, ou, mesmo, por corporações econômicas,  por outro lado, ela se revela muito problemática e isto basicamente por dois motivos. Em primeiro lugar, porque pressupõe a existência de “elementos esportivos” imaculados, cuja integridade poderia ser corrompida pela “lavagem esportiva”.[11] Esta análise nos remete ao antigo ideal amador das elites europeias, cultivado desde os primórdios do movimento olímpico, na era moderna, sobre o qual – segundo os defensores do amadorismo – pairava a ameaça moral representada pela oferta de recompensas materiais e premiações financeiras aos atletas, como nos mostra Sérgio Settani Giglio. [12]

Em segundo lugar, a noção de sportswashing evoca e reafirma representações negativas e estereótipos culturais a respeito de árabes e muçulmanos. A literatura acadêmica sobre o tema, por certo, costuma advertir para o fato de que estamos diante de uma expressão nova para descrever uma prática antiga, acionada pelos mais diversos regimes antidemocráticos. A título de ilustração, ela cita a Copa de 1978, instrumentalizada pela ditadura argentina, ou, recuando mais no tempo, a Copa de 1934, explorada pelo fascismo italiano.[13] Sem entrarmos no mérito desta interpretação a respeito da antiguidade da prática, de resto bastante discutível, interessa-nos problematizar a atualidade da expressão, explicitar as premissas ideológicas nas quais ela se baseia, as metáforas raciais que carrega, as correlações valorativas que estabelece, por exemplo, com a noção de whitewashing.[14] De fato, como assinalado por vários autores, “lavar” a reputação maculada significa “branquear” a imagem pública, isto é, exibi-la sob “uma luz favorável”. [15]

Duplo movimento, portanto, na operação de sportswashing: de “branqueamento” do portador da “mancha moral” e de “contaminação” da comunidade futebolística. Estamos, assim, diante de um idioma de poluição, estruturado com base nas noções interligadas de pureza e perigo, de acordo com a análise de Mary Douglas.[16] Levando-se em consideração os estados autoritários aos quais o termo sportswashing se encontra comumente associado, não é difícil inferirmos quem, nos meios de comunicação, corporifica o “perigo” de “corromper” o sistema esportivo europeu.

Por essa via, não resta dúvida, deparamo-nos com uma nova vertente, por assim dizer, do discurso de poder designado por Edward Said de  “orientalismo”.[17] Conforme a análise do intelectual palestino, as representações negativas que constituem a teia de significados do “orientalismo” reproduzem a existência de uma alteridade extrema, de uma diferença radical, de uma relação hierárquica que fixa e mantém o árabe e o muçulmano na eterna condição de bárbaro, isto é, de potencial ameaça à “civilização” ocidental.

Esta “ameaça”, hoje, assume duas formas bem distintas: de um lado, a da invasão de refugiados e migrantes que reivindicam um lugar ao sol no capitalismo desenvolvido, trazendo na bagagem cultural hábitos e valores considerados incompatíveis com um estilo de vida consagrado pelas sociedades ocidentais; e, de outro lado, a do investimento de emires e xeiques que se assenhoram dos clubes europeus, contaminando com suas “lavagens” as fontes de identidade de onde jorram os valores supostamente puros do esporte.

Mas entre estas duas formas de “ameaça”, a questão da islamofobia adquire uma feição inesperada, conforme veremos no próximo artigo.

Notas

[1] Cf. “Renovação de Mbappé virou questão de Estado para a França e o Qatar”, Alex Sabino, Folha de S. Paulo, 24 de maio de 2022.

[2] Cf. “Newcastle, o novo rico do futebol inglês, tem uma mulher no comando”, Pedro Ramos, O Estado de S. Paulo, 6 de novembro de 2021.

[3] Cf. “How the Saudi-Qatar Rivalry, Now Combusting, Reshaped the Middle East”, by Max Fischer, The New York Times, 13 de junho de 2017. Em 2017 a Arábia Saudita esteve à frente do boicote econômico e do bloqueio do tráfego aéreo, marítimo e terrestre imposto ao Qatar por vários países árabes, sob a alegação de que o país mantinha laços estreitos com organizações terroristas. As retaliações foram encerradas em 2020, mas deixaram no ar um clima de desconfiança e ameaça.

[4] Cf. Brannagan, Paul Michael; Giulianotti, Richard. The Soft Power – soft disempowerment nexus: the case of Qatar. International Affairs, 94:5, 2018, p. 1142. https://core.ac.uk/download/pdf/288360531.pdf

[5] Cf. Soyland, Havard Stamnes. “Qatar’s sports strategy: A case of sports diplomacy or sportswashing?” Instituto Universitário de Lisboa, Dissertação de Mestrado em Estudos Internacionais, 2020, p. 11. https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/22176/1/master_havard_stamnes_soyland.pdf

[6] Kyle Fruh, Alfred Archer and Jake Wojtowicz. “Sportswashing: Complicity and Corruption” (2022) Sport, Ethics and Philosophy, p.5. https://dukespace.lib.duke.edu/dspace/bitstream/handle/10161/25569/Sportswashing%20Complicity%20and%20Corruption.pdf?sequence=2&isAllowed=y

[7] Ao contrário, portantSoyland, Havard Stamnes, op. cit., p.11.

[8] Cf. “COPA, Copa Além da. O sportswashing além do Oriente Médio”. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 20, 2021.

[9] Kyle Fruh, Alfred Archer and Jake Wojtowicz, op. cit., p.5. A rigor, os autores consideram como agentes do sportswashing apenas o Estado. Mas em seguida mencionam o papel das corporações, destacando o exemplo do antigo proprietário do Chelsea, Roman Abramovich.

[10] Cf. “Sauditas seguem passos de vizinhos e tentam mudar imagem com futebol”, Alex Sabino, Folha de S. Paulo, 18 de outubro de 2021. Cf. “Saudi Arabia expands its sportswashing ambitions to the world of gaming”, Karim Zidan, The Guardian, 21 de março de 2022 https://www.theguardian.com/sport/2022/mar/21/saudi-arabia-expands-its-sportswashing-ambitions-to-the-world-of-gaming

[11] Kyle Fruh, Alfred Archer and Jake Wojtowicz, op. cit. p.7.

[12] Giglio, Sérgio Settani. “A História Política do Futebol Olímpico (1894-1988)”. São Paulo, Intermeios/Fapesp., 2018.

[13] Kyle Fruh, Alfred Archer and Jake Wojtowicz, op. cit. p.3.

[14] Archer, Alfred; Fruh, Kyle and Wojtowicz, Jake. “Sportswashing and the Qatar 2022 FIFA World Cup”. De acordo com os autores, o termo “sportswashing” deriva do termo “whitewashing”, o qual constitui uma “metáfora” envolvendo o uso de cal ou tinta para tornar branca uma superfície qualquer. Via de regra, ela é empregada para “encobrir os aspectos duvidosos do comportamento de alguém”, isto é, apresentá-los sob “uma luz positiva”. Nesse sentido, “sportswashing” se caracteriza como uma forma de “whitewashing”.https://breakthrough.neliti.com/sportswashing-qatar-2022-fifa-world-cup/

[15] Soyland, Havard Stamnes, op. cit., p. 11. Kyle Fruh, Alfred Archer and Jake Wojtowicz, op. cit., p. 2.

[16] Douglas, Mary. “Pureza e perigo”, 2 ed. São Paulo, Perspectiva, 2012.

[17] Said, W. Edward. “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente”, São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A Copa do Qatar: Sportswashing. Ludopédio, São Paulo, v. 160, n. 21, 2022.
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