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A Copa no Qatar: Soft Power

José Paulo Florenzano 15 de setembro de 2022

No dia 1º de setembro de 1971 uma pequena nota da United Press International (UPI), inserida na cobertura de política externa do New York Times, registrava a declaração de independência do Qatar.[1] Localizado no Golfo Pérsico, contando à época com pouco mais de cem mil habitantes, o país árabe rompia a tutela que o colocara até então na condição de protetorado britânico, sem, contudo, despertar muito atenção. Mas a descoberta de grandes reservas de petróleo e de gás natural, ocorrida nos anos 1960, prenunciava as profundas mudanças que adviriam nas próximas décadas.

Conforme salientado por Paul Michael Brannagan e Richard Giulianotti, a partir dos anos 1980, o Qatar adotaria uma política pioneira, ambiciosa e arrojada, baseada em soft power, a fim de se projetar como um ator relevante e reconhecido no campo das relações internacionais. [2] O conceito, elaborado nos anos 1990 pelo cientista político Joseph Nye, da Universidade de Harvard, tem sido desde então utilizado para analisar a política externa dos agentes estatais.[3] Por soft power compreende-se, dentre outros aspectos, o uso de um poder adquirido e alicerçado em “conquistas culturais, desempenhos educacionais e sucessos esportivos”, em aparente contraposição ao hard power, isto é, a um poder baseado em coerção material, força militar e capital financeiro.[4] Aparentemente porque, como observam Brannagan e Giulianotti, as duas formas de poder se acham na realidade inter-relacionadas, como nos revela o exemplo da Arábia Saudita, cuja estratégia de soft power impressiona justamente pela soma dos valores econômicos investidos em uma gama bastante ampla de modalidades esportivas: torneio de tênis, decisão de boxe dos pesos pesados, etapa do Rali Dakar, finais da Supercopa da Espanha e da Supercopa da Itália, Grande Prêmio de Fórmula 1.[5]

Assim como os demais estados do Golfo Pérsico, o Qatar também almeja transformar-se em um polo de turismo esportivo.[6] Em linhas gerais, os interesses estratégicos do país consistem em realizar a diversificação das atividades econômicas a fim de diminuir a dependência dos recursos naturais que respondem por mais da metade da riqueza nacional. Esta estratégia, por sua vez, requer a projeção de uma imagem moderna do estado qatari, operação simbólica assentada em vários pilares interligados, a saber: esporte, educação, arte, viagem e mídia.[7] Trata-se não apenas de inserir o país no circuito global do turismo, convertendo-o no destino de homens de negócios e de consumidores de espetáculos artísticos e esportivos, mas também de atrair estudantes cosmopolitas para a Cidade Universitária, enclave educacional na cidade de Doha que abriga instituições ocidentais de ensino, além da universidade pública do Qatar.

Copa Catar
Fonte: divulgação

De forma contraditória, no entanto, ao se candidatar e obter o direito de sediar a Copa do Mundo, o Qatar tornar-se-ia o centro das atenções da imprensa internacional e das organizações não governamentais, cujas matérias e investigações trouxeram à lume o longo histórico de violação dos direitos humanos das mulheres muçulmanas, dos migrantes laborais e das comunidades LGBTQIA+. Eis o efeito imprevisto da estratégia do soft power. A gestão de uma reputação positiva ancorada nos diversos pilares acima mencionados experimenta um profundo abalo, refletido na perda da capacidade de atração, do poder de influência, ou, ainda, da imagem de credibilidade -, aspectos constitutivos do processo denominado por Brannagan e Giulianotti de soft disempowermen, processo desencadeado pelo escrutínio internacional ao qual o país se encontra submetido desde o instante em que foi agraciado pela FIFA, em 2010, como sede da Copa de 2022.[8]

De fato, as denúncias a respeito das condições materiais, legais e de trabalho dos migrantes laborais recrutados para as obras de infraestrutura do evento causaram danos inestimáveis à reputação do país, e, por conseguinte, à capacidade de exercer nos agentes econômicos, esportivos e culturais a atração desejada pelo soft power.[9] Segundo reportagem do The Guardian, desde 2010, mais de 6.500 trabalhadores migrantes de cinco países do Sul da Ásia – Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka e Nepal – morreram nas obras de construção dos estádios e de infraestrutura para a Copa do Mundo.[10]

Dentre outras violações, a Anistia Internacional menciona o não pagamento ou a retenção indevida de salários, horários de trabalho exaustivos em temperaturas que podem superar os 50º C no verão, e, em especial, a Kafala, lei que condiciona a mudança de emprego pelo trabalhador imigrante à anuência do empregador responsável por trazê-lo ao país, configurando, desse modo, um regime de semiescravidão.[11] Tal forma de contratação vigorava oficialmente até 2016, mas, devido às pressões internacionais, agora está proibida pela nova legislação trabalhista, que também determina a interrupção do serviço ao meio dia durante os meses de verão. Todavia, embora as mudanças tenham sido elogiadas pela Organização Internacional do Trabalho, denúncias de organizações não governamentais indicam a persistência da exploração, sob as mais diversas formas, incluindo a continuidade da prática da Kafala, consubstanciada na retenção do passaporte da mão de obra imigrante por parte das empresas contratantes.[12]

Al Janoub Stadium
Al Janoub Stadium. Foto: Valdenio Vieira/PR/Wikipédia

Como reação às denúncias do jornal britânico, protestos começaram a invadir o campo de jogo, mobilizando atletas em torno das condições de trabalho no Qatar. Durante as eliminatórias da Copa do Mundo, por exemplo, seis seleções europeias – Noruega, Alemanha, Holanda, Áustria, Dinamarca e Irlanda – entraram em campo exibindo em faixas ou nas camisas frases em defesa dos direitos humanos.[13]  Além disso, por ocasião do primeiro GP de F1 no circuito de Lusail, em novembro de 2021, o piloto britânico da Mercedes, Lewis Hamilton, apareceu nos treinos com um capacete que exibia as cores do movimento LGBTQIA+. Em seguida, postou nas redes sociais as fotos com a mensagem: “Nós seguimos juntos”.[14]

Os riscos simbólicos contidos na estratégia de soft power começam a se mostrar cada vez mais evidentes, cobrando um preço elevado em termos de credibilidade e reputação. Nesse sentido, do ponto de vista dos países árabes mais atuantes no campo do esporte global, tornava-se imperativo buscar um antídoto, capaz, senão de eliminar, pelo menos minimizar os efeitos do soft disempowerment, conforme veremos no próximo artigo.

Notas

[1] Cf. “Sheikdom of Qatar Declares Independence from Britain”, The New York Times, 2 de setembro de 1971.

[2] Cf. Brannagan, Paul Michael; Giulianotti, Richard. The Soft Power – soft disempowerment nexus: the case of Qatar. International Affairs, 94:5, 2018, p. 1142. https://core.ac.uk/download/pdf/288360531.pdf

[3] Nye Jr., Joseph S. Soft Power. The Means to Success in World Politics. Public Affairs, New York, 2004.

[4] Cf. Brannagan e Giulianotti, op. cit. p.1141.

[5] Conforme o príncipe Abdulaziz bin Turki al Faizal, presidente da Autoridade Geral do Esporte, da Arábia Saudita, o objetivo consiste em promover o país “em termos de turismo”, usando o “esporte” como “recurso”. Cf. “Golfo Pérsico usa esporte para se promover”, Andrew England e Murad Ahmed, Financial Times, matéria reproduzida pela Folha de S. Paulo, 1 de dezembro de 2019.

[6] Chadwick, Simon. The Business of Sports in the Gulf Cooperation Council Member States. In: Sport, Politics, and Society in the Middle East. Danyel Reiche and Tamir Sorek (eds). Oxford University Press, New York, 2019, p.189

[7] Cf. LaMay, Craig L. The World Cup and Freedom of Expression in Qatar. In: Sport, Politics, and Society in the Middle East. Danyel Reiche and Tamir Sorek (eds). Oxford University Press, New York, 2019, p. 110.

[8] Cf. Brannagan e Giulianotti, op. cit. 1152. Ver também Craig L. op. cit.

[9] Cf. “Anistia Internacional cobra indenização de R$ 2 bi da FIFA”, Alex Sabino, Folha de S. Paulo, 7 de junho de 2022.

[10] Cf. “Revealed: 6,500 migrant workers have died in Qatar since World Cup awarded”, The Guardian, Pete Pattisson, Niamh McIntyre [et al], 23 de fevereiro de 2021. Os dados foram compilados a partir de fontes governamentais, como, por exemplo, a embaixada do Paquistão no Qatar.

[11] Cf. “Anistia Internacional cobra indenização de R$ 2 bi da FIFA”, Alex Sabino, Folha de S. Paulo, 7 de junho de 2022. Ver também o depoimento do trabalhador queniano, Malcom Bidali, ao jornalista João Gabriel: “A Seleção Brasileira pode ajudar e mudar nossa história”, Folha de S. Paulo, 15 de janeiro de 2022.

[12] Cf. “Qatar e FIFA tentam mudar imagem da Copa após denúncias de exploração”, Fábio Zanini, enviado especial a Doha, Folha de S. Paulo, 20 de novembro de 2021.

[13] Cf. “Para ONG, reação tardia de atletas ainda pode gerar mudanças na Copa do Qatar”, Alex Sabino, Folha de S. Paulo, 8 de abril de 2021.

[14] Cf. “Hamilton alfineta país com capacete da bandeira LGBTQIA+”, Folha de S. Paulo, 20 de novembro de 2021. Cf. “Lewis Hamilton praised after wearing rainbow helmet in Qatar GP practice”. The Guardian, 19 de novembro de 2021. https://www.theguardian.com/sport/2021/nov/19/lewis-hamilton-rainbow-helmet-qatar-grand-prix-formula-one

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A Copa no Qatar: Soft Power. Ludopédio, São Paulo, v. 159, n. 17, 2022.
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