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A crônica da farsa anunciada: 10 anos depois do insólito São Paulo x Tigre-ARG

Fabio Perina 12 de dezembro de 2022

Em diversas crônicas recorro àquela pérola narrativa consagrada: “os grandes fatos da história ocorrem primeiro como tragédia e depois como farsa”. No entanto, distinto dessa abertura da obra “18 de Brumário de Luis Bonaparte”, se Karl Marx visitasse e estudasse o futebol sul-americano recente precisaria reescrevê-la apenas como farsa. Não somente lembrar desses acontecimentos infames em plena Copa do Mundo do Catar é uma luta pela memória como de lá para cá nesses 10 anos foram raríssimas as referências na mídia brasileira que tentassem alguma reconstituição ou mencionassem alguma repercussão: foram os casos de vídeos no canal do youtube “Peleja” e no blog de Tales Torraga no UOL Esporte.

Como reconstituição mais geral, aqueles últimos dias de 2012 vai muito além da histórica fake News do suposto fim do mundo segundo o calendário maia. Tinha também o retorno de Felipão como treinador da seleção, Fluminense campeão brasileiro, Corinthians na expectativa de jogar o Mundial de Clubes no Japão e a torcida palmeirense na expectativa da despedida oficial do ídolo goleiro Marcos no Pacaembu. Uma partida festiva que encerrou à meia-noite do dia 12/12/12, em óbvia homenagem ao número usado pelo goleiro. Abrindo um dia que também entraria para a história na insólita final da Copa Sul-Americana entre o favorito São Paulo contra o surpreendente Tigre-ARG, que se ilusionava em repetir a façanha de um título na mesma competição que o também modesto Arsenal-ARG em 2007. (Obs: cerca de meia década antes chama a atenção o imenso contraste entre os dois clubes: o “tricolor” como vigente tri-campeão brasileiro e o “matador” padecia no Ascenso).

Na trajetória rumo à final alguns adversários mais tradicionais enfrentados foram à partir das quartas-de-final: o São Paulo eliminou Universidad de Chile e Universidad Católica enquanto o Tigre eliminou Cerro Porteño e Millonarios. Alguns destaques do São Paulo eram o treinador Ney Franco, o experiente goleiro Rogério Ceni e as revelações do campeonato: o meia Lucas Moura e o atacante Osvaldo. Enquanto o Tigre tinham como destaques o treinador Nestor “Pipo” Gorosito, o lateral-zagueiro Lucas Orban, volante-capitão Martin “Pato” Galmarini e a jovem revelação (que embora rapidamente ‘desapareceu’) do meia Ruben Botta.

Tigre
Fonte: reprodução

Tratar do desfecho dessa final vai muito além do que os memes no Facebook de são-paulinos que “o tigre virou gatinho” e anti são paulinos que “a Copa Sul-Americana é a série B da Libertadores”. Infelizmente implica tratar do porquê de sua farsa ter a ver com desvios de bastidores (através de 3 atos) para não permitir que apenas dentro de campo se decidisse o resultado. Primeiro, na primeira partida o Tigre perdeu seu mando do estádio Dellagiovana, ao norte de Buenos Aires, sob alegação de capacidade insuficiente para uma final. E com isso teve que jogar na Bombonera um empate sem gols em que perdeu o efeito alçapão. Uma cláusula sempre esdrúxula de regulamentos de federações também esdrúxulas em que um clube pôde jogar um torneio inteiro em seu estádio (e com o atenuante em sua defesa que não apresentou incidentes), porém se vê forçado na prática a ir a um campo neutro. Infelizmente no futebol sul-americano essas farsas de articulações de bastidores de federações não são casos isolados. (Obs: evidente que saltou aos olhos de muitos naquele momento a força do São Paulo nos bastidores da Conmebol em neutralizar o mando de campo de seu adversário em uma final continental: assim como em 2005 o Atlético-PR teve que sair da Arena da Baixada para jogar no Beira-Rio. Uma narrativa que cai com muita coerência diante de uma diretoria tricolor que tanto se apoiou no marketing de “soberano” enquanto para todos os demais emergia como a mais soberba).

Depois, um elemento de tensão a mais foi que o tricolor não permitiu que o clube visitante fizesse um treino de reconhecimento do gramado do Morumbi na véspera e sequer o aquecimento minutos antes do apito inicial. Com bola rolando, o primeiro tempo com gols de Lucas e Osvaldo teve uma cena polêmica como aperitivo para o intervalo: um “manotazo” de Lucas Orban em Lucas Moura, quem por sua vez mostrou em sua mão o sangue saindo de seu nariz. O que foi entendido como provocação aos argentinos de que “não teriam sangue” por estarem perdendo o jogo por 2 a 0 e com isso o título. Para além do choque cultural entre os dois países sobre o lance, o fato é que o Tigre foi para o vestiário e de lá não retornou para o segundo tempo. Enfim veio o último elemento e o mais explosivo. Para piorar em poucos minutos naquele pedaço do Morumbi não se obtiveram registros audiovisuais do que realmente ocorreu diante da alegada (embora depois tampouco apresentaram provas) agressão de policiais brasileiros a jogadores argentinos. Do pouco que se pôde reconstituir até então, a Conmebol diante do impasse entre 3 opções (retomar a partida, suspendê-la até a devida apuração e declarar a desistência do Tigre) preferiu a última. Para evitar uma comoção insurrecional com dezenas de milhares de são-paulinos revoltados. Assim lavou suas mãos da responsabilidade da devida apuração em articulação com as autoridades cabíveis e com isso desse um desfecho legítimo a seu torneio. Estava forjada a farsa do Morumbi.

É interessante uma menção extra-campo que não somente antes e depois desse escândalo houve vários outros entre brasileiros e argentinos por competições continentais (quase sempre no Brasil e com ação policial ou de repressão ou omissão), como entender um pouco os bastidores do futebol argentino e sul-americano. Ironicamente nos mais de 30 anos de “Don” Julio Grondona no comando do Arsenal e da AFA e com influência direta na Conmebol dificilmente o futebol argentino se viu escandalosamente prejudicado como nesse caso. Mais surpreendente ainda pela ascensão esportiva do Tigre naquela virada de década de 2000 a 2010 também coincidir com a ascensão política de Sergio Massa. Quem chegou a ser candidato presidencial pelo peronismo ao fim do duplo mandato de Cristina Fernández e atualmente no ano de 2022 atingiu ainda mais protagonismo como “super-ministro” da economia do presidente Alberto Fernández.

E depois?

Mesmo sem que o Tigre tenha conseguido até aqui uma revanche direta contra o São Paulo, alguns pequenos reencontros entre os protagonistas dessa trama podem ser mencionados que a deram um sabor a mais. Primeiro, o pontual retorno de Lucas Orban ao Morumbi em 2021 pelo Racing. E pricipalmente o retorno do Tigre à Libertadores: reencontrando o Palmeiras em 2020 assim como em 2013. O mais curioso foi o imenso contraste do clube argentino vir da temporada anterior de 2019 simultaneamente campeão da Copa Argentina contra o Boca e também rebaixado de volta para o Ascenso. O clube se sentiu novamente perseguido pela Conmebol diante de um decreto temporário que somente poderiam jogar uma Libertadores quem estivesse na primeira divisão. É aí que emerge novamente o papel de Gorosito como um personagem central ao denunciar outra farsa. Não apenas como ídolo quando jogador do River Plate nos anos 80 e San Lorenzo nos anos 90 e como treinador com bons trabalhos em clubes modestos como Argentinos Jrs., Gimnasia La Plata nesse ano de 2022 e, claro, no próprio Tigre em 2012 e 2019. Pois em meados de 2019 por coincidência ser novamente Gorosito o treinador do clube quem engrossou a denúncia contra a possibilidade da Conmebol retirar sua vaga. Como também numa surpreendente entrevista, em meados de 2021, disparando para todos os lados. Em suma, por um capricho do destino de lá para cá o modesto Tigre ao menos pode se orgulhar de ter tido melhor resultado esportivo do que o São Paulo com título nacional e mais um vice nacional (no início de 2022) contra apenas um título estadual e uma vergonhosa derrota em seu retorno a uma final de Copa Sul-Americana nas últimas semanas. Por fim, para diversos torcedores anti são-paulinos o que era farsa ficou como maldição durante o jejum de títulos do clube entre 2012 e 2021 diante da narrativa que deveria voltar ao gramado para terminar o segundo tempo daquela partida para somente assim reencontraria o caminho dos títulos!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. A crônica da farsa anunciada: 10 anos depois do insólito São Paulo x Tigre-ARG. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 11, 2022.
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