165.2

A crônica da tragédia anunciada 10 anos depois: Gaviões na Bolívia e Mancha na Argentina

Fabio Perina 2 de março de 2023

Introdução

Esse texto emerge da recordação de dois incidentes muito polêmicos envolvendo as duas maiores torcidas organizadas de São Paulo (e do Brasil, pois quaisquer fatos que acontecem com elas ou meros rumores ganham uma imensa repercussão) entre fevereiro e março de 2013 pela Copa Libertadores. Primeiro, a Gaviões da Fiel do Corinthians em Oruro-BOL durante partida contra o San José. Logo depois, a Mancha Verde do Palmeiras no Aeroparque de Buenos Aires-ARG após partida contra o Tigre. O título do texto se justifica para analisar o tema amplo da elitização/proibição dos torcedores enquanto pano de fundo nessa introdução e depois através de dois subtemas específicos e recorrentes, porém que emergiram de forma aguda através desses incidentes destacados: sinalizador e relação “promíscua” clube-torcida, respectivamente.

Apesar de casos diversos, levanto uma hipótese de pressuposto em comum a ambos para a análise: o imenso desserviço e desonestidade com o qual a mídia convencional conduz o debate. Assim, a dinâmica de dominação ideológica coincide em como os grandes meios de comunicação lidam com eles e impõe sua verdade diante da opinião pública. Pois bastou durante aqueles dias repetir à exaustão seus discursos de sempre de sua visão de mundo como se fossem a verdade única, induzindo a uma percepção no senso comum de impunidade e de ser preciso um “basta” imediato. Típico da tradicional visão moralista de “bem x mal” de conduzir o tema de violência no futebol. Além de ao estarem obviamente respaldados por novas imagens espetaculares desses dois incidentes, vide o clichê do senso comum que “uma imagem vale mais do que mil palavras”. O efeito danoso e duradouro é que a imensa maioria da opinião pública passa a acreditar durante anos que essa é a única representação da realidade, seja para o tema mais geral e para os subtemas específicos. Em outras palavras: “Porque hoje, com o futebol tão em evidência no noticiário, qualquer coisa que aconteça, pequena ou grande, enseja discursos os mais estapafúrdios. É hora de sair da “parte” e chegar ao “todo”

A fonte desse breve embora importante pressuposto acima precisa ser devidamente apresentada: o blog “Forza Palestra” do jornalista-torcedor palmeirense Rodrigo Barneschi. Um blog muito engajado nas questões da cultura popular torcedora entre 2006 e 2015 (sendo que recentemente o autor organizou tantas experiências no indispensável livro “Forasteiros”, dando maior destaque ao torcedor visitante). Retomar esse autor à luz de 2023 com sua ironia crítica implica identificar a grande imprensa atual com uma espécie de “síndrome de notas de repúdio” junto da preguiça de sair do estúdio com ar condicionado para conhecer a realidade no “chão de estádio”. O que permitiria começar a superar seus clichês do senso comum contra as torcidas organizadas e com isso conhecer de fato seus torcedores de carne e osso. E mais especificamente esse texto nunca saiu de minha memória pela força de seu termo “consciência de classe torcedora” no calor desses fatos tão intensos de fevereiro/março de 2013 que serão descritos, e por fim será retomado para o desfecho de meu texto.

Falando em pressuposto, é preciso para aprofundar nossa análise recorrer à contextualização, ao invés da fragmentação como típico da abordagem midiática predominante. Não somente recordar aquele ano de 2013, muito além do ano das manifestações de junho. E não somente recordar a “gangorra” clubista dentro de campo: se hoje o Palmeiras está muito melhor que o Corinthians, em 2013 era tudo o contrário. E não somente recordar pontualmente os incidentes mais marcantes envolvendo torcedores organizados naquele ano: Gaviões x Força Jovem (em agosto em Brasília) e Fanáticos x Força Jovem (em dezembro em Joinville). (Obs: vale uma breve menção que o caso de Brasília se tornou noticiável menos pelo dano físico da briga e mais pelo “produto” midiático em questão ter sido o flagrante ao vivo, com enorme quebra de expectativa por ser em uma arena de Copa do Mundo. A percepção de impunidade através da cobertura midiática foi sugerida nos meses e até anos posteriores com a reincidência dos torcedores envolvidos retornando como fato noticiável sempre que algum identificado se envolvia em novo incidente. O que reforça o clichê de “país da impunidade”).

Acontecimentos que se inserem em impactos profundos na cultura torcedora popular. Impactos que não somente se deram nos meios de comunicação enquanto mera caixa de ressonância, mas sobretudo por causa deles enquanto agente ativo das disputas. Em âmbito externo, haviam os rumores de uma “invasão” de barrabravas argentinos para a Copa do Mundo no Brasil de 2014 e sobretudo a confissão (tardia e bombástica) de fraude do governo inglês quanto à investigação do caso Hillsborough-ING (de 1989). Ou seja, um fato que sempre foi tratado como tragédia finalmente ganhou sua nova e verdadeira versão como farsa e deu fôlego contra a narrativa que “o governo britânico com medidas duras venceu os hooligans”. Embora ainda persista o problema já comentado que imagens espetacularizadas intensamente em poucos dias produzem um consenso duradouro por vários anos difícil de ser quebrado por argumentos racionais.

Já no âmbito interno, ocorreu o acirramento da imposição do processo de arenização e com isso as intensas disputas nas práticas e nos discursos sobre o torcedor que se quer abolir e o consumidor que se quer selecionar. Sem fazer uma retrospectiva exaustiva desse pano de fundo dos muitos impactos da arenização nessa década de lá para cá (e que exigem serem melhor estudados/enfrentados por pesquisadores/militantes), cabe apenas mencionar na época a recorrência de discursos de dirigentes esportivos, aliados a consultorias empresariais, em defesa aberta da elitização dos ingressos como suposta solução definitiva para mais lucro e menos violência. Assim como outro subtema que esteve frequente naquela época era a imposição de arenas totalmente encadeiradas como uma violação da cultura torcedora de acompanhar as partidas de pé, sendo frequentemente noticiadas na imprensa a destruição de dezenas ou até centenas de cadeiras pelos torcedores e possíveis indenizações entre os clubes.

Ora, essa breve menção ao tema de protestos de torcedores transitar em parte no vandalismo e em parte na conscientização permite também como última consideração inicial de retrospectiva reconhecer a importância de 2013 ser considerado o início das torcidas antifascistas com a palavra de ordem original (principalmente em camisetas e bandeiras) sobre a assim chamada anteriormente consciência de classe torcedora: “Paz entre as torcidas, guerra entre as classes”. Enquanto há um paralelo naquele momento entre as torcidas organizadas “de pista” com outra palavra de ordem original nas redes sociais: “Perca com honra, mas não vença com covardia. O choro da mãe do rival não traz a alegria da tua!” O que expressa pelo menos uma espécie de tentativa de redução de danos nos seus conflitos.

Feitas essas considerações iniciais, necessárias para associar economia com segurança como intrínsecas, iremos a cada caso específico a seguir junto com o subtema que fomenta debate. Com cada subtítulo contando com um link para uma reportagem bem sintética de reconstituição dos fatos de 2013, logo depois minhas impressões críticas, e por fim mais um link mostrando certa continuidade para o subtema em 2023:

Kevin Espada
Kevin Douglas Beltran Espada. Fonte: Reprodução

ORURO: 20 de fevereiro de 2013

“E perguntamos: quantos incidentes perigosos tivemos com sinalizadores em nossos estádios, quantas pessoas se machucaram, quantas entidades sofreram com isso? É de total relevância que seja mostrado a falta de coerência desse estatuto que não foi capaz de se basear em dados estatísticos para formular um estádio mais seguro para seu público-alvo.” 

O fragmento acima (em texto de 2016) serve para ilustrar a abertura desse tópico através da breve menção ao tema de sinalizadores e pirotecnia encontrado aqui no portal Ludopédio. Pensando primeiro nas condições concretas do fato e depois em outras simbólicas e políticas pouco notórias, um protesto que mesmo breve e sem nenhum dano físico causa imenso prejuízo “semiótico” ao espetáculo midiatizado. Por mostrar os torcedores da forma que a televisão não gostaria de mostrar e potencialmente afetando alguns minutos da audiência televisiva cada vez mais turbinadas por cotas de televisão. Ou seja, prejudicando o espetáculo e lucro “deles” enquanto “nossa” festa foi expropriada. Ora, se não é uma invasão literal de fora para dentro de campo, emerge como uma “invasão” simbólica.

Ainda como breve revisão bibliográfica, Lopes e Hollanda (2018) afirmam um esforço de lidar com o subtema do prático ao teórico. Concebendo os sinalizadores como ética e estética fundidos na dimensão política. Ou seja, ele é um símbolo ainda mais concreto e inequívoco de protesto “contra o futebol moderno” do que poderia ser uma faixa ou boicote, pois é um ato de torcer com muito mais vibração do que seria “tolerado” pelos sujeitos dominantes.

Acrescento que, através de uma chave de leitura da militância política, o sinalizador é uma espécie de desobediência civil. Ou seja, diante de uma regra dentro da legalidade, a enfrenta para mostrar que está fora da legitimidade, sendo preciso transgredi-la tanto quanto for preciso até desmoralizar a própria regra e junto a capacidade de seus operadores a sustentarem na prática. Também acrescento que é possível ver o sinalizador como uma forma de protesto que não se limita a uma pauta concreta que pudesse ser negociada com os sujeitos dominantes do futebol, mas sim a sua maior importância está em exacerbar um descontentamento geral diante de outras pautas represadas e até ocultadas ou silenciadas. Com a facilidade de ser reconhecido como protesto mesmo por torcedores pouco organizados ou pouco politizados, e assim tentar ampliar a base de apoio para qualquer torcedor comum que tem o seu direito a torcer restringido.

Se já não fosse pouco, é um tipo de protesto que permite uma unidade tática na qual diversos grupos torcedores rivais convergem para fazê-lo em um mesmo tempo ao invés de em um mesmo espaço, ou seja, podem ao mesmo tempo articular o seu clubismo particular com a “classe” torcedora. (Obs: como de fato ocorreu esse protesto simultâneo por diversas torcidas na reta final do Brasileirão de 2014 e mais recente em casos mais esparsos no recente ano de 2022). Ou seja, em meio a imensas rivalidades, mostram que é possível fazerem sua ação política mesmo sem precisarem estar lado-a-lado.

Como ressalva do trágico San José-BOL x Corinthians, não tratarei da reconstituição da complexa trama da prisão provisória de cerca de uma dezena de torcedores corintianos ao longo dos meses seguintes, inclusive envolvendo negociações entre autoridades bolivianas e brasileiras. Mas sim como seu desfecho parcial mencionarei agora o discreto e simbólico próximo ato dias depois no infame Corinthians x Millonarios-COL. Como era de se esperar, a cobrança midiática por um “basta” imediato fez com que a Conmebol aplicasse uma de suas típicas medidas paliativas decretando portões fechados para o Pacaembu. A lógica punitiva operou (pela enésima vez) violando a presunção de inocência, ou seja, se potencialmente eram cerca de uma dezena de torcedores corintianos suspeitos do incidente em Oruro, automaticamente foram privados de torcerem dentro do Pacaembu dezenas de milhares de torcedores corintianos e até mesmo dezenas (ou até centenas) de torcedores colombianos. Porém apenas alguns indivíduos se sentiram no privilégio (sob a fachada de direito do consumidor) de reivindicar uma liminar judicial para que somente eles pudessem entrar no estádio! O que revela o terrível encontro da lógica privada com a punitiva e como a subjetividade de privilégios típica da arenização já estava vigente.

Eis que retomando essa retrospectiva e elaborando esse texto no início de 2023 me deparo com um ótimo fragmento recente que mostra a seletividade midiática e a ineficácia policial para o tema diante de um novo contexto atual de protestos contra a elitização dos ingressos:

“Os sinalizadores usados em Bragança são aplaudidos por todos quando usados por torcedores na Argentina e em países da Europa e agregam festa à arquibancada. Não tem nada a ver com sinalizador naval, aquele usado de forma fatal na absurda e lamentável morte do boliviano Kevin Espada. É mais do que óbvio, pois, que sinalizadores navais com potencial fatal deveriam ser proibidos e os usados em Bragança, por exemplo, liberados. Para todas as torcidas!”

BUENOS AIRES: 7 de março de 2013

Começando direto com as condições concretas dos fatos, a reportagem acima ajuda a reconstituir que havia no clube alviverde um elenco instável e sob desconfiança permanente que vinha horas antes de uma derrota “entregue” nos últimos minutos quando teve chance de vencer. Mais do que isso, a provocação inicial do meia Valdivia contra os torcedores ficou ofuscada pela maior repercussão posterior com a agressão acidental ao goleiro Fernando Prass com uma xícara diante de uma confusão generalizada entre vários torcedores e vários jogadores. Começando a destrinchar questões mais simbólicas, vale acrescentar que entre os anos 2000 e 2010 eram recorrentes os protestos, ameaças e até agressões de fato de torcedores da organizada contra jogadores e até treinadores do clube. Portanto já havia um “prato cheio” da narrativa fácil já vir pronta, não somente com o “produto” midiático de polêmica, como principalmente o “basta” imediato do novo dirigente Paulo Nobre. Sobretudo por ele estar nos primeiros meses de um mandato com enorme expectativa interna e principalmente externa de fazer o clube entrar na “modernização”. Através de uma lógica privada de forma sufocante e totalizante inserindo critérios de gestão em todos os âmbitos do clube, desde finanças a até relação com o torcedor. É assim que o episódio “caiu no colo” do dirigente como uma dupla (ou até tripla) oportunidade de se afastar da organizada, tentar fidelizar o torcedor comum pelo sócio-torcedor e reforçar seu próprio apoio na mídia. De forma hábil ao conquistar amplos consensos dentro e fora do clube diante de medidas no nível prático com o fim da reserva de ingressos para a organizada e em um nível simbólico um discurso que “ninguém é mais palmeirense do que ninguém”. Como a melhor publicidade indireta para tentar finalmente turbinar o programa de sócio-torcedor “Avanti”, que desde 2009 em seu lançamento nunca decolou. Uma reflexão que desenvolvi de forma mais ampliada teórica e prática em texto anterior e agora apenas acrescento que infelizmente o caso repercutiu com grande desinformação por muitos torcedores acreditarem durante anos na narrativa que a diretoria do clube supostamente “dava” ingressos para a organizada e que a partir do caso supostamente “acabou a mamata”.

Allianz
Foto: divulgação Palmeiras

Um certo “legado” dentro do clube mostra o uso político desse caso no início de 2013 foi que ele permitiu colher dividendos simbólicos no início de 2015, com a recém-inaugurada nova arena obtendo reportagens apologéticas na mídia quase diariamente (certamente bem mais do que outras arenas usadas na Copa do Mundo). Ou seja, as tão faladas “relações promíscuas” entre clube e organizada acabam sendo na prática muito mais uma fachada para as “relações promíscuas” reais entre dirigente (sobretudo quando for uma figura ególatra como Paulo Nobre) e a mídia. Na medida em que diretoria e mídia parecem cúmplices de uma narrativa pela qual se os jogadores são (supostas) vítimas da organizada então todo o clube e inclusive o torcedor comum também. Portanto, seria preciso “resgatar o torcedor verdadeiro”. (Obs: o que aliás sutilmente poderia sugerir outra reflexão sobre a subjetividade neoliberal nesse tema relação clube-torcida quando inserido no tema da violência no futebol, pois a mídia parece desde então focar mais na responsabilização privada dos clubes como o clichê “dirigentes que sustentam a violência das organizadas” ao invés da responsabilização pública das autoridades, embora isso exigiria uma pesquisa mais intensa nessa década para tentar comprovar esses indícios). Como para as torcidas organizadas não é fornecido um direito de resposta diante da opinião pública, dentre diversos argumentos que elas poderiam recorrer diante dessas acusações o mais criativo é que elas merecem algum reconhecimento por ir nas partidas mais distantes e desinteressantes onde o torcedor comum não pode ir ou simplesmente não quer ir. O que exacerba um imenso desconhecimento da opinião pública ao supor que nessas “regalias” houvesse conforto de sobra, quando na verdade ocorrem em condições de viagem bastante hostis.

Evidente que o caso Aeroparque e o subtema relação clube-torcida permitem uma ampliação a outros temas como sócio-torcedor e arenização. Sendo 2013 um ano sintomático em que a discussão entre os dois passou a convergir, ainda mais em um estado como São Paulo (principalmente por sua federação) e em um clube como o Palmeiras a partir de 2013 em que a forma de lidar com ambos foi sempre a de uma lógica privada mais aprofundada possível. Como desfecho parcial das infames repercussões do Tigre-ARG x Palmeiras, cabe uma breve menção que ainda no final de 2013 houve experiências análogas no Cruzeiro e principalmente desde aquela época até recente no Atlético-PR. Através de casos que coincidem em que as diretorias que decretaram um “basta” às organizadas e uma tentativa de sua substituição por uma nova organização sob controle do clube, inclusive subsidiando a festa nos estádios. Na medida em que um termo chave que aparece implícito é o de “concorrência”, pois nessa narrativa a organizada disputa com o clube um uso irregular de seus símbolos e assim “iludiria” o torcedor comum. Portanto, seria preciso usar o sócio-torcedor para se reaproximar dessa demanda represada por participação.

A contra-narrativa é que os clubes deveriam perceber que lançando camisetas mais caras e muitas vezes com cores aleatórias sem terem nada a ver com sua história enquanto reféns dos fornecedores de material esportivo (quase sempre multinacionais) desperta uma tendência de distanciamento diante do torcedor comum. E aqui surge mais um argumento criativo a favor das organizadas: os clubes exploram suas imagens de festas para ajudar a tornar o sócio-torcedor um produto mais atrativo, porém não as remuneram nem sequer as reconhecem em mais nada. Criativo mesmo seria começar a surgir vozes progressistas na mídia para cobrar mais transparência no financiamento de ambas as entidades (clubes e torcidas) ao invés de insistissem na exclusão sumária de sempre cujos resultados que entrega ficam muito aquém das promessas. E com isso afastar o infame termo “torcedores profissionais” por parte de jornalistas preguiçosos, por dar a entender que somente “regalias” de dirigentes que supostamente sustentariam o funcionamento das torcidas organizadas.

Em suma, de forma mais profunda, se o termo “torcida” por si só desperta confusões no futebol por tratar ora de um grupo de dezenas de pessoas ou ora de uma massa de milhões, o termo “organizada” também parece passar por alguma confusão. Pois é um tipo de associação por décadas “auto-organizada” de fato “desde baixo”, ao invés de tutelada “desde cima” pelo clube, conforme parece ser o desejo de muitos dirigentes e investidores.

E ainda, os intensos atritos entre a Mancha Verde e Paulo Nobre em 2013 adquiriram uma continuidade com a atual presidente Leila Pereira em 2023. O que me faz refletir que no curto prazo parece cômodo a uma diretoria declarar o rompimento com as organizadas para “lavar suas mãos” e atender a vontade da mídia. Porém é só uma forma de tentar comprar tempo e empurrar para a frente uma crise inevitável de mais cobrança das organizadas no médio e longo prazo. Afinal, quando se fecha um canal institucional não se silencia a alternativa transgressora que de alguma forma vem à tona (e aqui indiretamente remete ao sub-tema anterior dos sinalizadores). Em suma, arrisco uma hipótese que quando o clube exclui o torcedor do estádio resolve o problema do espetáculo, mas o empurra para a segurança pública fora dele. Tanto é que nos últimos meses a repercussão midiática dos incidentes mais violentos entre torcedores tende a ser sub-representada quando ocorrem distante dos estádios.

Desfecho

Para a pesquisa visando preparar esse meu texto encontrei outro breve texto daquele ano de 2013 muito sintomático por articular os dois subtemas específicos. No sentido que a federação paulista, com sua típica criatividade “empreendedora”, viu na crise uma oportunidade para negócios. Tanto por sua criatividade surreal de buscar refundar uma relação clube-torcida, porém atrelada à diretoria, quanto pelo seu “timing” por emergir justamente no calor da conjuntura de fevereiro/março de 2013 que aprofundei. Mais sintomático como lucro e risco aparecem explícito na reportagem no termo “queremos fechar o cerco”. Ora, como partir da premissa que os incidentes violentos dentro dos estádios sejam monopólio das organizadas? E como prometer no lançamento desse “produto” que eles não ocorreriam mais? (Obs: e até pensando no infame Corinthians x Millonarios, se tratar o torcedor como consumidor até o seu extremo, como evitar que ele reivindique indenizações bizarras?)

Recordar esse contexto à luz de uma década que se passou e pensando na intersecção dos dois subtemas vai muito além de notar de lá para cá a redução dos sinalizadores e o aumento de estímulos das diretorias dos clubes para a sua substituição por luzes de celulares como uma “festa” mais controlada. Muito mais do que isso, é preciso reconhecer a evidência que certamente esses incidentes não deixaram de ocorrer, por mais que a arenização/elitização tenham avançado e assim prometido, implica desbloquear a criatividade popular contra o discurso da mídia e a prática dos dirigentes de uma verdade única moralista. Implica pensar e tentar novas formas de auto-organização de torcedores e de sua representação diante dos “seus” clubes, embora cada vez mais fechados em si mesmos. Reflexões muito bem elaboradas no célebre livro “Clientes x Rebeldes” (SANTOS, 2017) e a aventura empresarial de adaptar as reformas do contexto inglês pós-Hillsborough para o cenário brasileiro pré-arenização. Vide seu brilhante jogo de palavras entre “o público que se quer abolir” e seu correspondente “o público que se quer selecionar”.

“Não foram poucos os amigos da arquibancada que manifestaram algum todo tipo de contentamento com a punição aplicada ao SCCP. Em sua maioria, isso se deve basicamente a um fator: clubismo. Se me permitem, vou dizer o que penso: foi (e é) um erro. Porque, acreditem os senhores, isso poderia ter acontecido contra o Palmeiras, e então a opinião certamente seria outra. Em sendo assim, cabe refletir um pouco mais. O que está em jogo não é uma decisão que prejudica o nosso rival, mas sim a abertura de um precedente perigoso, que, mais do que tudo, atiça a mente dos reacionários e justifica até mesmo manifestações grotescas (…) Porque há quem queira aproveitar as circunstâncias para impor uma agenda elitista e voltada não para o futebol como manifestação cultural e popular, mas sim para o futebol como um mero negócio. É contra isso que devemos seguir lutando. Contra a alienação, contra o senso comum, contra a hipocrisia. O futebol só existe por causa da torcida. E, queiram ou não, a arquibancada haverá de resistir. Sempre.”

Por fim, recordo novamente no fragmento acima do indispensável blog “Forza Palestra” com seu texto mais importante justamente chamado “consciência de classe” (já usado no início de meu texto) e o alerta que incidentes bastante midiatizados como os dois aqui analisados devem reforçar o alerta nos torcedores e em suas organizações que a lógica privada e punitiva contra eles se alimenta de suas divisões. Acrescento ainda que uma série de fatores tende a dispersar e super-especializar a compreensão dos casos: seja a rivalidade dos envolvidos, a abordagem fragmentada da mídia ou simplesmente o distanciamento temporal. Se atualmente tem sido crucial olhar para 2013 à luz de em 2023 para pensar na agitação de estádios e ruas, então é possível uma analogia entre a dimensão clubística e a dimensão político-militante. Pois se o primeiro caso trata da ação direta transgressora e o segundo caso do suposto financiamento de organizações, então é preciso dar um salto de qualidade na compreensão que ambos articulados são as duas faces da mesma moeda da estigmatização-criminalização de movimentos populares (especificamente de torcidas organizadas).

Leituras de Apoio

SANTOS, Irlan Simões. Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2017.

LOPES, Felipe Tavares Paes; HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. “Ódio eterno ao futebol moderno”: poder, dominação e resistência nas arquibancadas dos estádios da cidade de São Paulo. Tempo, v. 24, p. 206-232, 2018.

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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. A crônica da tragédia anunciada 10 anos depois: Gaviões na Bolívia e Mancha na Argentina. Ludopédio, São Paulo, v. 165, n. 2, 2023.
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