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A crônica esportiva como agente de manifestação cultural

Julyane Stanzioni 6 de julho de 2009

Lembro-me que um fato marcou minha infância. Foi ver, pela televisão, a despedida de Zico no Maracanã. O estádio com aquela multidão gritando o nome do jogador, as bandeiras do Flamengo sendo agitadas. Até que tudo ficou escuro, apenas um feixe de luz no campo e em um telão a inscrição “Zico 10”. Surge então no campo o ‘Galinho de Quintino’, o Maracanã explode em emoção e, claro, em saudade.

A história fica na memória e é para sempre. Outros tantos fatos históricos do futebol gostaria de ter visto, como os gols de Pelé ou mesmo a eterna seleção de 70. Infelizmente não vi, mas, com a ajuda de alguns cronistas, como João Saldanha, Tostão, João Máximo e Armando Nogueira, pude reviver esses momentos. É nessa capacidade de fazer história e reviver acontecimentos que a crônica esportiva torna-se importante agente de manifestação cultural, de centro de uma tradição que, conforme os anos, será contada e recontada.

Segundo o pesquisador Hélio Sussekind, a paixão que o futebol desperta sempre esteve ligada a duas espécies de narrativas: a “épica”, que é construída a partir da troca de experiências entre torcedores e possibilitou a propagação da popularidade do esporte, e outra conhecida como “narrativa romântica”, que estimularia o consumo instantâneo do futebol e se baseia essencialmente nas ações de mídia já referidas.

Sendo assim, as crônicas esportivas se enquadrariam na segunda opção: narrativa romântica, pois se baseiam em ações já referidas pela mídia, como por exemplo, as transmissões dos jogos pela TV e pelo rádio e aos programas esportivos subseqüentes a essas transmissões.

A imprensa tem o papel de ‘reescrever’ o jogo, classificando-o em outra categoria que não aquela inicialmente prevista no fenômeno esportivo. Nelson Rodrigues, na crônica “A Poesia do futebol”, indaga o que o torcedor procura num jogo. Esse trecho começa a nos evidenciar a importância da crônica esportiva se comportar como meio de produção cultural. “A meu ver o que nós procuramos nos clássicos e nas peladas é a poesia. A coisa pode soar falsa, mas insisto. As coisas só nos atraem por sua possibilidade poética”.

Por isso a crônica esportiva deve se comportar como mediadora entre o fato já narrado e (re) contá-lo aos espectadores para que esses o registrem como parte integrante do seu cotidiano, nos dando a possibilidade de ter uma visão ampla de nossa sociedade e de tudo que a cerca, como o campo político e social e de nossos hábitos.

É preciso ter em mente que a paixão pelo futebol estará, sempre, vinculada a uma história que lhe é anterior em cada momento. E é justamente essa história que se precisa reescrever a cada jogo, a cada decisão, convertendo o passado em presente. Para Lucia Santaella, pesquisadora da cultura, as mídias são produtoras de cultura, uma vez que há uma estreita relação entre cultura e comunicação. Nesse contexto, a crônica funciona no limiar entre literatura e informação jornalística, convertendo o passado do jogo em presente. A crônica atualiza a memória.

Isso significa dizer que o torcedor ‘consome’ uma história presente e uma história antiga, pois um mesmo jogo é comentado infinitas vezes. Por isso, a crônica esportiva aparece como sistematizadora desses códigos culturais que são transmitidos aos espectadores. Ela acaba se tornando um modo de organizar a memória coletiva. Como a crônica “Metáfora da vida”, escrita por Tostão em 2002, nos relembra o ‘nascimento’ de um jogador que, daqui alguns anos, pode ter a história recontada para os nossos filhos: “Robinho foi o grande driblador do ano. Quase só driblou próximo ao gol, como se deve fazer. Daí ter sofrido pênaltis decisivos. O jovem do Santos dribla e finta. A finta, diferentemente do drible, não precisa de bola pra enganar o adversário. Pode ser com o olhar, com o corpo, como na jogada do terceiro gol do Santos na final contra o Corinthians, quando Robinho fintou o Vampeta e o Kleber, de uma vez só, sem tocar na bola”.

Essa consciência coletiva só será possível de se formar a partir do momento em que o acontecimento (jogo) tornar-se passível de ser resgatado através do uso da memória como centro de tradição, refeito através da história, da memória coletiva e individual, tornando-se cultura. Para outros pesquisadores, a memória, como base da cultura, só é possível a partir do momento em que há uma longevidade do acontecimento, uma espécie de extensão atemporal do fato narrado, do jogo de futebol acontecido.

E o fato de o jogo ser mais antigo do que a cultura, como afirma o historiador Johan Huizinga, faz pensar que conforme o jogo (de futebol) vai sendo narrado, mais ele faz parte de uma determinada cultura. Assim, a reafirmação do evento pelos meios de comunicação faz com que o espectador tenha um maior contato com o fato, trazendo para a vida do leitor a sensação de proximidade com o time escolhido e com seus ídolos.

Compartilhando dessa idéia, temos então o jogo desenvolvendo mais uma vez uma função social, na qual exerce um fascínio no imaginário de seus espectadores frente à realidade apresentada. Esse fascínio no imaginário é reforçado pelo papel importante da crônica esportiva, uma vez que ela reconta um episódio vivido ou não pelo espectador, fazendo-o ser parte integrante daquilo mesmo que não tenha estado ‘in loco’. Sendo assim, mais uma vez, tomando Huizinga como paradigma, acreditamos que o jogo seja uma atividade voluntária, no qual só se tornar necessidade na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade.

Assim, a crônica esportiva, como forma narrativa e mecanismo de repetição do jogo de futebol, contribuiu para o fortalecimento da proximidade entre o jogo e nossa cultura, fazendo-o se tornar parte integrante de nossa sociedade e que, de algum modo, em algum momento de nossa vida, será sempre (re) contado.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

STANZIONI, Julyane. A crônica esportiva como agente de manifestação cultural. Ludopédio, São Paulo, v. 01, n. 1, 2009.
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