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A cultura pop na “Cantiga do Rei Pelé”: Affonso Ávila narra uma troca de passes no ritmo do futebol, história e política no século XX

Intitulado como a “Era dos Extremos[1]”, pelo historiador britânico Eric Hobsbawm, o século XX abarcou os impactos de uma sociedade pós-revolução industrial que encontrou com movimentos políticos, ideológicos e sociais, além das avassaladoras inovações tecnológicas iniciadas no século XIX. Nesse contexto temporal alucinante proporcionado durante o século XX no mundo, o futebol transcendeu a esfera esportiva tornando-se um fenômeno social, cultural e econômico, catalisando estas diversas formas de apropriação do jogo. Á reboque, nesse veloz e intenso século XX, os praticantes do futebol, atletas, treinadores, dirigentes e torcedores em determinados casos entram nesse imaginário e memória coletiva como protagonistas compulsória ou voluntariamente. Nesse contexto, uma figura símbolo desse século e destas mudanças está simbolizada na figura do Atleta do Século[2] XX: Pelé[3].

A reverência em torno da figura de Pelé se justifica por sua impressionante e expressiva trajetória esportiva, exemplificada em números e conquistas que permanecem até os dias atuais. Em campo Pelé se tornou o maior artilheiro da história do futebol anotando 1.281[4] gols atuando em 1.363 partidas de futebol, participou das conquistas de três Copas do Mundo pela seleção brasileira em 1958, 1962 e 1970. Atuou como jogador profissional por dois clubes, o Santos Futebol Clube de 1956 até 1974 e pelo New York Cosmos entre os anos de 1975 a 1977. Atuando pela seleção brasileira assombrou o mundo em 1958, quando com apenas 17 anos se tornou protagonista no mundial com uma sequência de gols. Atuando pela seleção brasileira, Pelé anotou 95 gols em 115 partidas, outra média impressionante, em meados dos anos de 1960, Pelé recebeu a alcunha de “Rei”, “rei do futebol”, por cronistas esportivos e estudiosos e aficionados do futebol. Assim, cabe aqui contextualizar que Pelé se tornou rei simbólico do futebol e do Brasil em pleno século XX, o século dos extremos e da midiatização.

Rei Pelé
Foto: Reprodução Twitter

Após este brevíssimo apanhado estatístico sobre Pelé podemos compreender um pouco do sentido do mito construído em torno deste atleta. Portanto, fazendo um paralelo entre a biografia de Pelé e a trajetória histórica, econômica, social e cultural do Brasil e do Mundo ao longo do século XX, o poeta, ensaísta e pesquisador mineiro Affonso Ávila[5] escreveu a “Cantiga do Rei Pelé[6]”. Ao longo de quarenta e seis estrofes o poeta mineiro conduz uma tabelinha primorosa relacionando as trajetórias de Pelé, Brasil e Mundo. Segue abaixo o poema, para apreciação;

Cantiga do Rei Pelé
Cantiga do Rei Pelé. Foto: Reprodução Thiago Costa
Cantiga do Rei Pelé
Cantiga do Rei Pelé. Foto: Reprodução Thiago Costa
pelada poética
Foto: Thiago Costa

No poema acima, lemos o uso rítmico da letra “é”, em uma sequência de rimas e um jogo sonoro entre marcos temporais do século XX e a trajetória de Pelé. Por exemplo, abrindo a cantiga com, “na era do rei que ainda é/ tudo ao redor dava pé/ […] subia em bolsa o café”, em referências diretas aos primeiros anos da República no Brasil e euforia do café. Na sequência Ávila traz ao campo Juscelino Kubitschek, a construção de Brasília e o período do nacional desenvolvimentismo vivido no Brasil, com; “erguiam em contrapé-/ lo aos corvos e à má-fé/ no cerrado a finca-pé/ um sorridente pajé/ construía a nova sé/ sem servidão ou galé/ empregado qualquer zé/ tinha aonde pôr o boné.”

Affonso Ávila
Affonso Ávila. Foto: Reprodução

Affonso Ávilla em sua cantiga poética caminha com mais versos, agora trazendo o futebol para o texto; “era a alegria do fute-/ bol o gol de placa o olé/ drible curto de mané/ nos johns e o rei da sué-/ cia aplaudindo o caburé.” O poeta traz para o campo a popularização do futebol no Brasil como a alegria do povo, e o auge de Mané Garrincha na Copa do Mundo de 1958 na Suécia, onde ele driblou joãos (johns) e foi aplaudido pelo mundo na Europa. E mais ao final da cantiga o clima fica sombrio com a menção ao golpe e regime militar no Brasil; “milico aí deu o golpe eh eh/ pau comeu com chipanzé/ depois fodeu a ralé/ falastrão com rapapé / ao dos banqueiros curé/ […] da cultura marcha-à-ré”. O autor segue na sequência fazendo menção a diversidade religiosa no Brasil na segunda metade do século XX e finaliza com uma esperança retomando a figura de Pelé; “agora é ir-se a galilé/ da matriz de são josé/ e rezar a deus Maomé/ a outros cultos de javé/ ou mesmo no candomblé/ que voltem sorriso e fé/ ao reino do rei pelé”.

Em relação a escrita de Affonso Ávila, este jogo textual é uma as características de sua obra como bem afirma o pesquisador, Rogério Barbosa da Silva; “A poesia de Affonso Ávila, desde os seus primeiros livros, apresenta uma forte propensão para o jogo, abrindo-se, por conseguinte, numa dimensão crítica, a qual nos obriga a oscilar entre o pensamento e a imaginação de seus poemas, “lucilúdicos”(SILVA, 205, 2012)[7]”. Em versos rápidos e informativos Ávila traz uma sucessão de acontecimentos no contexto de ascensão de Pelé nos campos de futebol e coloca seu leitor em leitura com sonoridade e ritmos que o futebol carrega em si. Uma alternativa para quem quiser ver este poema de forma ampla e sonora em uma videoinstalação[8] pode ir ao Museu Brasileiro do Futebol no Mineirão, que dentro da Sala Futebol e outras Artes, na seção destinada para a literatura[9], o visitante pode imergir nessa e em outras poesias de futebol. No caso da “Cantiga do Rei Pelé”, de Affonso Ávila, a interpretação fica a cargo de Rodolfo Vaz, que é acompanhada de imagens destes momentos citados no texto de Ávila.

Pelé
Foto: Reprodução Twitter

Dentre os gêneros literários a poesia provavelmente exerça uma das mais proveitosas tabelas entre futebol e produção textual, por seus ritmos, sons e improvisos. Como bem afirma o professor Elcio Cornelsen em seu estudo, “Vinicius e o Futebol: um soneto para Garrincha[10]”, analisando a relação da poesia e futebol, no contexto de uma semiologia do esporte proposta por Passolini afirma que;

“A paixão de Pasolini pelo futebol advinha da crença de que a cultura popular seria um terreno de luta política, e de que o futebol seria um elemento importante da cultura contemporânea. Além disso, tal paixão levou Pasolini a atribuir, de maneira original, ao futebol uma linguagem própria, definindo-a como um sistema de signos que possuiria todas as características fundamentais da linguagem falada-escrita”. (CORNELSEN,2013, 3)

Portanto quando Affonso Ávila traz a sua “Cantiga do Rei Pelé”, o autor subverte a ordem estabelecida no Brasil, trazendo Pelé; um rei negro em um país republicano, e marcado historicamente pelo racismo e desigualdade social. Ao mesmo tempo em que propõe uma viagem pelo século XX, usando o futebol e Pelé como fios condutores dessa narrativa que traz ao leitor política, cultura pop, elementos religiosos dentro da dinâmica de índices de uma memória cultural na semiótica do futebol de poesia.

 

Notas

[1] HOBSHAWM, Eric J.. Era dos Extremos: o breve século XX : 1914-1991. tradução Marcos Santarrita; São Paulo : Companhia das Letras, 1995.

[2] Eleição do  http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/15-de-maio-de-1981-pele-recebetrofeu-de-atleta-do-seculo-de-todos-os-esportes-10810972

[3] Édson Arantes do Nascimento. Para mais: NASCIMENTO, Edson Arantes do. Pelé, a autobiografia. red. Orlando Duarte e Alex Bellos, trad. Henrique Amat Rêgo Monteiro, Rio de Janeiro: Sextante, 2006. (título original: My Autobiography; 2006)

[4] Lista dos futebolistas do século pela IFFHS

[5] Affonso Ávila nasceu em Belo Horizonte em 1928. Além de poeta, é ensaísta e crítico literário, especialista no barroco mineiro. Fundou nos anos 1950 a revista Tendência e no final dos anos 1960 a revista Barroco, que dirige até hoje. É considerado um dos mais importantes poetas brasileiros contemporâneos. Teve participação ativa em importantes movimentos literários, foi criador do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais e de uma linha de pesquisas e ensaios cujo enfoque é o Barroco no Brasil, principalmente do Barroco mineiro. Foi organizador da Semana de Poesia de Vanguarda, um importante evento realizado em 1963, e vencedor de diversos prêmios – entre eles o Prêmio Jabuti, com O Visto e o Imaginado e também com Cantigas do Falso Alfonso El Sábio. Faleceu em 26 de setembro de 2012, aos 84 anos de idade.

[6] Para mais ver no livro: A. A. V. V. Pelada poética (plaquete). Belo Horizonte: Scriptum, 2010.

[7] SILVA, Rogério Barbosa da. Poesia, jogo e simulacro em Affonso Ávila. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 16, n. 31, p. 205-214, 2º sem. 2012.

[8] Poesia & Futebol

[9]  Para mais conferir a resenha: ROSA, Victor da. Onze mais um: instalação poética no museu do Mineirão, 2014. EM TESE. Belo Horizonte, v. 20 n. 1, jan.-abr. 2014. p. 190-192.

[10] CORNELSEN, Elcio Loureiro. Vinicius e o Futebol: um soneto para Garrincha. Todas as Musas. Ano 05. Nº1. Jul-dez-2013.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Thiago Carlos Costa

Professor e Pesquisador. Doutorando em Estudos do Lazer (EEFFTO-UFMG), Mestre em Estudos Literários (UFMG), Graduado em História (PUC-MG).  Membro do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagens e Artes (FULIA), da UFMG e também participa do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG.

Como citar

COSTA, Thiago Carlos. A cultura pop na “Cantiga do Rei Pelé”: Affonso Ávila narra uma troca de passes no ritmo do futebol, história e política no século XX. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 35, 2021.
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