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A desigualdade à brasileira: o país em que frequentar estádios é, cada vez mais, um privilégio

Dentre as muitas dúvidas que o início da pandemia de Covid-19 trouxe ao mundo, uma delas foi sobre como iríamos nos adaptar às significativas mudanças que o contexto pandêmico nos traria. Não foram poucos os que levantaram a tese de que, pelas transformações que a pandemia iria realizar nas relações de trabalho e na própria posição do Estado como regulador da economia, estaríamos diante de um cenário de maior necessidade de aprimoramento nos programas de transferência de renda, por exemplo. Assim, seria possível começar a adotar um modelo contrário à desenfreada desregulamentação que boa parte das economias do mundo experimenta, pelo menos, desde a crise econômica de 2008. 

Não apenas esse otimismo foi pueril, como, passada – até o momento – a fase mais aguda da pandemia, o que mais se percebe são contradições inerentes ao ultraliberalismo. O Brasil experimenta uma crise estrutural cujos efeitos são mais do que nocivos: inflação nas alturas, precarização e informalidade nas relações de trabalho, perda do poder de compra e da renda e melancolia social. Enquanto isso, os setores mais ricos do país não apenas não experimentaram a “crise” que a pandemia escancarou, como aproveitaram a falácia do “novo normal” para se tornarem detentores de uma fatia ainda maior do PIB.

O futebol brasileiro, naturalmente, não ficou alheio a esse quadro. Depois de um período de estádios vazios – com a subsequente diminuição das restrições de público -, as torcidas voltaram às arquibancadas. O que elas têm sentido, porém, é um reencontro com seus times que tem saído cada vez mais caro. A disparada descontrolada dos preços dos ingressos – nas quatro divisões nacionais e, especialmente, entre os clubes da elite do futebol brasileiro – não é um fenômeno que se encerra em si mesmo. Pode ser entendido como (mais um) desdobramento da arenização no futebol brasileiro, que teve início ainda antes da Copa do Mundo de 2014. Mas não só.

É plausível pensar que a maior parte dos dirigentes dos clubes brasileiros, já em 2021, contava com a demanda generalizada dos torcedores de poderem voltar aos estádios. Entra na conta, também, a inflação alta no país. No mesmo sentido, é possível especular sobre fatores não tão objetivos no aumento dos preços dos ingressos. Cada vez mais, a ida ao estádio de futebol, no Brasil, vai se assemelhando à comercialização de uma “experiência” – principalmente, nas Arenas -, trabalhada por profissionais do marketing esportivo. Especialmente em jogos decisivos, assistir a um jogo de futebol no estádio tem se comparado à experiência de fazer parte de um festival de grande porte.

Em 2022, principalmente, os dirigentes romperam com qualquer pudor ao cobrarem valores absolutamente incondizentes com a realidade da maior parte da população brasileira. Afastar as camadas populares dos estádios é correr o risco de esvaziá-los ou de mudar, gradativamente, os perfis das torcidas, permitindo que, na prática, as desigualdades se manifestem de modo ainda mais explícitas nas arquibancadas. A dimensão social parece não entrar na balança de boa parte dos dirigentes, muito mais ávidos pelas receitas exorbitantes. O caso do Corinthians é especialmente curioso. Em 2022, o clube promoveu uma escalada nos preços dos seus ingressos – seja para o Campeonato Brasileiro, a Copa do Brasil ou a Libertadores – e, ainda assim, conseguiu alcançar o recorde em média de público (37 mil pagantes) no seu estádio, inaugurado em 2014.

Embora significativo entre os clubes da elite do futebol brasileiro, o aumento nos preços dos ingressos não se restringe à Série A. Na Série B, por exemplo, times como Cruzeiro, Tombense, Operário e Criciúma têm cobrado, em 2022, ingressos mais caros que muitos dos times da primeira divisão. Na Série C, o Santa Cruz resolveu acionar o Procon, em julho, por conta do preço estabelecido pela diretoria do Retrô, que receberia o tricolor como visitante. Naquela oportunidade, o ingresso para a torcida visitante custava espantosos R$ 300 (inteira).

Santa Cruz Estádio
O Colosso do Arruda (um dos nomes que designam o Estádio José do Rego Maciel), pertencente ao Santa Cruz Futebol Clube. Fonte: Wikipédia

Outra questão de grande importância, nesse debate, é a figura do Sócio-Torcedor. É preciso chamar a atenção para o fato de que, com o aumento da promoção dessa modalidade, não é incomum que muitos dos jogos de clubes da Série A, por exemplo, fiquem praticamente restritos aos sócio-torcedores. Desse modo, o acesso ao estádio envolve, entre outras coisas, fazer parte de alguma categoria de sócio-torcedor, desembolsar um valor cada vez maior para os ingressos e, no caso específico das Arenas, se ver envolvido na avalanche de consumo a uma série de produtos licenciados.

Do ponto de vista prático, ir ao estádio de futebol assistir a um jogo do Palmeiras, por exemplo, tem se tornado um evento premium (usando expressão tanto excita os exclusivistas), de modo que, para a maioria das torcidas, a própria ida ao estádio tem deixado de ser regular e passado a ser algo para o qual é preciso se organizar financeiramente com antecedência, colocando no orçamento aquele evento como algo semelhante a uma experiência turística, feita muito de vez em quando. Isso se a chance de ir ao estádio, por conta do preço, não for nula.

O futebol brasileiro, com a sua cartolagem, está trabalhando para rarear a figura do torcedor regular, que acompanha seu time com frequência quase religiosa no estádio. O sufocamento dos setores populares nas Arenas, por exemplo, cria a ideia de exclusividade sobre a cadeira que se vai acessar no estádio, transformando a figura do torcedor não apenas em cliente, mas em proprietário.

Na lógica brutalmente financeira dos que determinam o preço das arquibancadas, chega a ser anacrônico chamar a atenção para uma coisa tão básica: que o futebol é um esporte de massas, um fenômeno cultural que, historicamente, sempre foi vivenciado pelas mais distintas classes sociais e que, diga-se de passagem, a maior parte da festa das arquibancadas sempre foi feita pelos setores populares. Se a carga de trabalho e a labuta diária tiram do indivíduo boa parte da disposição sobre o seu próprio tempo, assistir o seu time do coração no estádio sempre costumou ser o exato momento de desafogo. Um dos poucos lugares em que a expressão “alegria do povo” se faz real, ainda que efêmera. A mercantilização do futebol está de tal modo entranhada no debate sobre esse esporte que, na lógica de boa parte das diretorias, falar de “alegria do povo” soa como um romantismo tacanho ou, no máximo, algo para ser usado nas estratégias de marketing que visam aproximar clube e torcida. O que prevalece  é a pura ampliação da receita, com pouca ou nenhuma margem para o imaginário popular sobre o futebol e até mesmo sobre o que significa a presença da torcida no estádio.

Football without fans is nothing”, diriam os ingleses, mais acostumados aos protestos dentro dos estádios e, ainda assim, também reféns do fenômeno da elitização da arquibancada. Se alguma transformação real desse cenário pode vir acontecer, é possível crer que só possa vir das próprias torcidas.      

Referências

FOLHA PE. Santa aciona Procon para questionar valores de ingressos para jogo. Disponível em:https://www.folhape.com.br/esportes/santa-aciona-procon-para-questionar-valores-de-ingressos-para-jogo/234839/. Acesso em 19 de agosto de 2022. 

GE. Corinthians tem ano recorde em média de público e discute ampliar Arena. Disponível em:https://ge.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/2022/08/19/corinthians-tem-ano-recorde-em-media-de-publico-e-discute-ampliar-arena.ghtml. Acesso em 19 de agosto de 2022.

SUPER ESPORTES. Cruzeiro cobra caro? Ranking lista ingressos mais caros das Séries A e B. Disponível em: https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/cruzeiro/2022/05/09/noticia_cruzeiro,3969615/cruzeiro-cobra-caro-ranking-lista-ingressos-mais-caros-das-series-a-e-b.shtml. Acesso em 19 de agosto de 2022.

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André Lucena

Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)Doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)Escritor. Autor do livro "Um Par de Horas" (Editora Multifoco, 2019)

Como citar

LUCENA, André. A desigualdade à brasileira: o país em que frequentar estádios é, cada vez mais, um privilégio. Ludopédio, São Paulo, v. 158, n. 24, 2022.
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