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A divisão sexual do trabalho e a equiparação das premiações da CBF

Soraya Barreto Januário 6 de outubro de 2020

O dia 2 de setembro foi marcado por grande entusiasmo das pessoas adeptas e ligadas ao futebol de mulheres no Brasil. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou que a seleção brasileira de futebol de mulheres receberá as mesmas remunerações dos homens, nivelando os valores de acordo com as quantias oferecidas pela FIFA. O assunto vem sendo debatido pela mídia nacional e internacional e foi recentemente tema de debate, aqui no Ludopédio, pela escrita poderosa de Silvana Goellner (2020). Com efeito, vamos trazer o tema novamente com um olhar pautado num tema caro aos feminismos: a divisão sexual do trabalho.

A CBF argumenta que, a partir de agora pautada por uma política de “paridade salarial”, todos os jogadores e jogadoras de futebol que representarem o Brasil devem receber diárias e prêmios em dinheiro iguais quando estiverem em missões internacionais.

No mesmo anúncio, a entidade ainda nomeou as ex-atletas Aline Pellegrino e Duda Luizelli para a coordenação de futebol feminino. Aline ficará focada nas competições do futebol de mulheres e responsável pela supervisão e desenvolvimento da modalidade. Já Duda Luizelli ficará exclusivamente na coordenação das seleções femininas. Elas ocuparão o lugar que foi de Marco Aurélio Cunha, estabelecendo, finalmente, uma participação mais efetiva de mulheres do mundo do futebol em cargos de decisão da CBF.

É importante lembrar que dos 159 países que jogam futebol de mulheres nas competições da FIFA, apenas seis já tinham acordos de igualdade de remuneração em vigor. A Austrália, Inglaterra, Noruega, Fiji, Finlândia e Nova Zelândia, não à toa países que já possuem um histórico de maior equilíbrio entre os parâmetros salariais em outras esferas também.

O debate em torno da igualdade salarial no esporte praticado por mulheres – e na sociedade como um todo – não é um debate novo e atual. As assimetrias da divisão sexual do trabalho e as triplas jornadas são evidentes na vivência feminina. Tanto, que apesar das tentativas de derrocada de políticas públicas inclusivas, as mulheres ainda têm reparações na aposentadoria como forma de equilibrar as desigualdades promovidas pelas jornadas extras e pela economia do cuidado.

Divisão histórica e estruturante

A divisão sexual do trabalho decorre das relações sociais estabelecidas associadas às questões de gênero/sexo, historicamente e culturalmente adaptadas a cada sociedade. Na construção de uma estrutura sexista e patriarcal, a hierarquia de dominação foi constituída pelos homens na esfera produtiva e, das mulheres, na esfera reprodutiva (do cuidado e da maternidade, por exemplo). Dessa forma, coube aos homens a ocupação das funções de valor público e social agregados. Apesar de, na contemporaneidade, o homem no papel de provedor principal, ou único, ser cada vez menor, esses valores culturais ainda são perpetuados.

Um exemplo fortemente lembrado quando se debate em torno do tema é o da seleção de futebol de mulheres dos Estados Unidos – tetracampeã da Copa do Mundo Feminina da FIFA, tetracampeã olímpica de ouro e seleção número um do mundo. Em detrimento aos resultados invejáveis das estadunidenses, o futebol de homens do país ostenta apenas um terceiro lugar em 1930, e mesmo assim permanecem com salários inferiores. A seleção estabeleceu uma longa disputa judicial com a federação nacional sobre as reivindicações de discriminação de gênero e igualdade de remuneração.

Além das norte-americanas, as jogadoras da seleção nigeriana, após levarem o campeonato da Copa das Nações Africanas em 2016, protestaram em frente ao hotel onde estavam hospedadas denunciando os salários em atraso. As atletas do futebol espanhol ameaçaram entrar em greve em 2019 devido à falta de reajustes e aumento salarial.

Seguindo esse exemplo, a própria FIFA foi questionada sobre a discrepância entre os prêmios relativos às Copas do Mundo do Futebol de mulheres e de homens. Com premiações e condição de jogos bem distintas – vale lembrar o gramado sintético da Copa do Mundo no Canadá em 2015 – a FIFA continua legitimando essas assimetrias.

 
Seleção Feminina vence a final Pan-Americana em 2015. Foto: Rafael Ribeiro / CBF / Fotos Públicas

O que virá daqui para frente?

O anúncio da CBF é especialmente significativo considerando o histórico de proibições e invisibilidade do esporte praticado por mulheres ao longo de sua história em território nacional e, ainda, porque vem de uma federação que há muito tempo subestima o valor do futebol de mulheres. Foi necessária muita luta e reivindicação da comunidade esportiva feminina junto à entidade para que políticas como essas fossem postas para jogo, como explicitado anteriormente por Silvana Goellner (2020). Todavia, é pertinente comentar que ainda não foi divulgado com clareza como essa equiparação vai acontecer visto a discrepância abissal dos campeonatos brasileiros e estaduais na prática dos homens e mulheres.

O futebol de base e suas ramificações são de inestimável importância na preparação e profissionalização de clubes e atletas, e, apesar da atuação da CBF se pautar no âmbito nacional, políticas públicas e um diálogo próximo às federações estaduais é fator preponderante ao desenvolvimento equânime do futebol de mulheres em território nacional. Com a pandemia, ficou ainda mais evidente a pouca importância dada pela maioria dos clubes estaduais ao futebol de mulheres. Equiparar a premiação é um passo de extrema importância, assim como foi a contratação da campeoníssima técnica sueca Pia Sundhage para comandar a nossa seleção e as nomeações das coordenadoras de futebol feminino já mencionadas neste texto. Mas precisamos de cautela e objetividade na compreensão de como esse processo irá ocorrer.

Algumas medidas já foram tomadas em relação aos Campeonatos Brasileiros nas Séries A1 e A2, na qual formatos mais democráticos e competitivos foram implementados. A Primeira Divisão passou a ser disputada em grupo único e a Segunda subiu de 16 para 36 equipes, contemplando todos os estados do Brasil. Os campeonatos nacionais também ganharam reforço na base com o início dos campeonatos de Sub-18, Sub-16 e Sub-14 em 2019.

A perversidade do sexismo

Contudo, o anúncio de equiparação da CBF não foi visto unanimemente como positivo. Pautado em lógicas neoliberais e de mercado, muitas pessoas consideraram injusta a equiparação – obviamente esquecendo o passado marcado por silenciamento e proibições. Apesar de o futebol ser um negócio extremamente rentável e mercantilizado, esquece-se da dívida histórica do esporte e da sociedade brasileira com as mulheres em relação aos esportes e ao futebol no país. Para além do valor efetivo da modalidade como fenômeno sociocultural.

Com efeito, importa questionar, por exemplo, por que no caso da seleção estadunidense as mulheres não são remuneradas de forma superior, já que, para algumas pessoas, esse assunto deveria ser observado pela lógica do mercado? A perversidade do sexismo não deixa que as pessoas enxerguem nuances tão claras como esta. A divisão sexual do trabalho possui duas diretrizes principais que legitimam o nosso argumento: a primeira é que a separação entre o que se considera trabalhos para homens e trabalhos para mulheres; e a segunda – que complementa a primeira – é a hierarquização do trabalho, no qual a construção dos trabalhos para o homem é mais valorizada do que os relacionados às mulheres, que são subalternizadas.

Até há pouco tempo no futebol, os cargos de gestão, decisão e de aparente compreensão do tema eram ocupados unicamente por homens. Às mulheres, eram atribuídos trabalhos ligados ao cuidado, trabalhos que, em geral, são não-remunerados ou são precarizados.

Com as lutas perpetradas pelas mulheres e pelos feminismos, assistimos ao despontar de mulheres em espaços antes negados, conquistados com muita luta – vale ressaltar que nada foi dado – e hoje podemos contemplar mulheres narrando, apitando, jogando e gerindo o futebol. Com a conquista destes espaços, ao longo dos últimos anos, vem sendo amplamente denunciado o caráter universalizante do ambiente e prática futebolística construída no e pelo masculino, seja em campo ou na arquibancada. Ações como o #Mulheresnofutebol, #Deixaelajogar e #Deixaelatrabalhar lançados por mulheres, atletas e jornalistas esportivas que, de forma geral, denunciaram o assédio e as condições da presença da mulher no ambiente clubístico e do futebol. O caminho ainda é longo e pedregoso, mas o embate tem sido frutífero e pode promover mudanças significativas no cenário social e nas assimetrias que dividem o trabalho valorizado dos futebóis (DAMO, 2018).

Referências

DAMO, Arlei. Futebóis – da horizontalidade epistemológica à diversidade política. Fulia/Ufmg, v. 3, n. 3, p. 37-66, 2018

GOELLNER, Silvana. Nós convidamos a CBF a trazer reformas de igualdade de gênero para o Brasil. In. Ludopédio. Acesso em 20 set 2020.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Soraya Maria Bernardino Barreto Januário

Professora Doutora do Departamento de Comunicação Social - Universidade Federal de Pernambuco e do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos/UFPE.

Como citar

JANUáRIO, Soraya Barreto. A divisão sexual do trabalho e a equiparação das premiações da CBF. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 14, 2020.
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