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A escala corinthiana em Salta: “antijogo” no noroeste da Argentina?

Gabriel Moreira Monteiro Bocchi 4 de agosto de 2022

O evento que narro e analiso neste texto ocorreu no dia 04/07/2022, e se relaciona diretamente com um evento de maior alcance público: a partida entre Boca Juniors e Corinthians, disputada na Bombonera, pelas oitavas de final da Copa Libertadores da América. Como evento relacionado às sociabilidades do Futebol, e não só a elas, visto os agentes envolvidos, aciono para a análise a noção de “Antijogo”, explorada por Luiz Henrique de Toledo no artigo “Antijogo: considerações em torno de uma categoria da diferença” (2020).

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No dia 27/05/2022, seguinte às partidas que encerraram a fase de grupos da Libertadores deste ano, foi realizado o sorteio que definiu os confrontos da fase seguinte. Corinthians e Boca Juniors, que já haviam se enfrentado na fase inicial, teriam pela frente mais dois jogos, desta vez, eliminatórios. Ao notar que a partida de volta, em Buenos Aires, coincidiria com meu período de férias, comecei a planejar a viagem – “Ver um jogo do seu time na Bombonera é um sonho pra qualquer um que gosta um pouquinho de futebol!”, definiu uma amiga São Paulina.

Como eu, cerca de trinta torcedores-viajantes do Corinthians optaram pelo voo com escala em Salta, cidade na região noroeste da Argentina. Embora o tempo de viagem para alguns tenha aumentado em até dez horas, se comparado com o voo direto para a capital, tal desvio e tempo se justificaram por uma diferença de preço na passagem de cerca de R$500,00.

Quando o avião pousou, por volta das 13h30 daquela segunda-feira, em uma pista ladeada pela Cordilheira dos Andes, ainda dentro dele vimos que havia repórteres e pessoas com câmeras de televisão filmando o desembarque. Foi o estopim para que blusas fossem abertas para escancarar camisas do Corinthians, bandeiras e demais camisas foram retiradas de mochilas – e me incluo neste movimento – para exibição às câmeras no ato de saída do avião.

Foto por Pedro Dias.
Foto: Pedro Dias

A excepcionalidade daquele pouso, para além das equipes jornalísticas, revelou-se por meio de um tapete vermelho estendido à frente da escada de desembarque, uma banda marcial que executava melodias e pessoas com roupas formais que cumprimentavam os passageiros. Não compreendemos o que ocorria – uma fala no sistema de som do avião chegou a informar que aquela era uma nova rota de voo, mas sem especificar a dimensão da viagem como um “evento” de maior destaque. 

Os objetos que exibíamos com símbolos do Corinthians rapidamente foram identificados por alguns dos jornalistas: “São torcedores do Corinthians que se dirigem para a partida de amanhã, contra o Boca Juniors”, comentou a repórter do canal El Tribuno de Salta, que realizava uma transmissão ao vivo, disponível no Youtube.

Apenas no interior do aeroporto, na fila para a imigração, uma funcionária nos explicou o que ocorria: aquele era o voo inaugural da linha São Paulo/Salta, e havia mobilizado a presença de autoridades políticas, como o governador de Salta, o ministro do turismo e dos esportes da Argentina e o presidente da empresa aérea responsável.

Passadas a viagem e a partida (de contornos dramáticos!), foi ao me deparar com o vídeo tido como oficial do evento, publicado na página do Governo de Salta no Youtube, que me dei conta de uma possível prática de “antijogo” preconizada por nós, brasileiros e corinthianos, já em solo argentino.

A noção de “antijogo”, discutida por Luiz Henrique de Toledo (2020), remete a “categorias da diferença”, não apenas referentes às práticas esportivas: “Antijogo expressando má conduta individual parece crescer à sombra da ideia de estabilidade normativa coletiva enfeixada nas relações e práticas esportivas, mas também presente num vasto domínio da sociabilidade e contextos muito mais amplos em que aparece como burla ou contrafação”. 

Na situação em análise, a “diferença” e a “burla” colocadas à mostra no ato de desembarcar foi: “Somos corinthianos!”. Não se tratava de turistas brasileiros interessados em conhecer a cidade, mas sim com um símbolo e um propósito, nas dinâmicas das sociabilidades torcedoras, diferenciadores, ainda que de forma, por um lado, “burladora” de regras do jogo, por outro, nem tanto.

“Antijogo” envolve também um diálogo com as “normas, regras e decoros” que definem as lógicas do próprio jogo, seja esportivo ou, em sentido mais amplo, das sociabilidades em geral. A cargo de exemplificar conforme o autor, é realizada densa análise de algumas situações classificadas como “antijogo” no Futebol: La mano de Dios, de Maradona, na Copa do Mundo de Futebol Masculino de 1986, a “mordida” de Luis Suárez, na edição de 2014 do mesmo torneio, e, novamente com Maradona, Los dedos de Dios, no Mundial de 2018. “Subverter” as normas do jogo, ciente destas, me parece, comporia o “antijogo”.

O vídeo publicado pelo Governo de Salta em sua página no Youtube apresenta uma edição de imagens em 36 segundos, nas quais é dada ênfase à fala e à imagem do governador, Gustavo Sáenz, e da qual foram excluídas quaisquer presenças de torcedores ou símbolos corinthianos – embora a notícia textual publicada no site do governo destaque a presença destes como “Um exemplo da importância desta rota aérea e de seu impacto em ser uma opção de ingresso ao país”. 

As formalidades encenadas naquele desembarque (tapete vermelho, autoridades políticas, banda marcial, mídia local) eram voltadas a celebrar um acordo comercial, com vistas à ampliação dos fluxos econômicos da região como turística, tendo como público alvo brasileiros e seus Reais. As normas do “jogo” daquela cerimônia provavelmente não contavam com as tantas celebrações e gritos de “Vai Corinthians!”, marca distintiva do Corinthianismo, de modo que este “antijogo” – “aqui poderíamos prospectar antijogo no interior da miríade de comportamentos transgressores torcedores” – fora excluído do registro fílmico oficial do governo, provavelmente interpretado por estes sujeitos como “burla ou contrafação”.

Sem compreender o evento de que fazíamos parte, logo, sem saber exatamente quais eram as regras daquele jogo – para nós, apenas um desembarque cujo destino final voltava-se a uma partida do Corinthians – ainda assim poderíamos ser “acusados” de praticar um “antijogo”? Nos dias seguintes, sobretudo terça e quarta-feira, ostentações públicas e barulhentas da presença de corinthianos em Buenos Aires foram deveras notadas, de forma que a atuação torcedora no aeroporto parece mais uma “imitação” de um comportamento previamente construído e estabelecido entre torcedores – claro, tudo fora devidamente registrado e publicado em redes sociais.

Por outro lado, e desta forma, considerando as lógicas do jogo da atuação torcedora, sobretudo na condição de “estrangeiro” e “visitante”, independente dos significados governamentais atribuídos ao evento do “voo inaugural”, o antijogo em si seria não exibir e dialogar símbolos e diferenças diante de câmeras e jornalistas: “Colocamos o Corinthians na história do aeroporto!”, vibrou um dos corinthianos na fila para apresentar documentos ao setor de imigração. 

Agradeço a Pedro Dias, um dos corinthianos presentes no voo para Salta, que me enviou imagens fundamentais para a elaboração deste texto. Ele, seu pai e irmão, moradores da cidade de Santa Cruz do Capibaribe/Pernambuco, percorreram cerca de cinco mil quilômetros (três horas de carro até Recife, três horas de voo até São Paulo, três horas até Salta e mais três até Buenos Aires) para estarem no jogo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

BOCCHI, Gabriel Moreira Monteiro. A escala corinthiana em Salta: “antijogo” no noroeste da Argentina?. Ludopédio, São Paulo, v. 158, n. 4, 2022.
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