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A evolução do futebol português a partir da Revolução dos Cravos

Uma das tabelinhas mais belas, sem dúvidas, é aquela que fazem história e futebol. Notoriamente, um não vive sem o outro. Dentre os jogos históricos do futebol mundial, é preciso destacar um que aconteceu no dia 25 de abril de 1974, em Portugal, e protagonizou o que foi um dos acontecimentos mais relevantes para a história social, política e futebolística daquele país.

Contexto

O dia 28 de maio de 1926 marcou o golpe militar que instaurou a ditadura em Portugal. Óscar Camona, primeiro presidente do novo regime autoritário, tomou posse somente dois anos depois, num período conhecido como “Ditadura Nacional”, representado por ações fascistas, repressivas e violentas, as quais estruturaram o aparecimento de uma nova Constituição. Em 1932, começou o “Estado Novo”, representado pela chegada ao poder do principal nome daquela época, Antônio de Oliveira Salazar.

Antônio de Oliveira Salazar
Antônio de Oliveira Salazar esteve no governo português por 36 anos. Foto: Wikipédia

Entre 1933 e 1968, o território português viveu o que ficou conhecido por Salazarismo. Esse movimento se caracterizou como um regime ditatorial, comandado pelo professor Salazar, e foi consequência do golpe. O docente, que também se tornou primeiro ministro das finanças do país, assumiu o posto de ditador e garantiu que a Constituição de 33 – a qual instaurava inúmeros atos de repressão – limitasse, ou erradicasse, a liberdade do povo.

A ideologia salazarista se disseminou ao longo dos anos, defendendo ideias de política de defesa e de condicionamento industrial, no entanto, Portugal foi um país pobre até a década de 60, fato que possibilitou o crescimento do processo de emigração. O salto econômico se tornou evidente depois que o país entrou na Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), no início daquela década.

A partir dali, o país ibérico agiu quase como um indivíduo narcisista: todas as atenções eram para si mesmo. Sem qualquer resquício de beleza, Portugal isolou-se em seu próprio território, em seu próprio povo – mais especificamente no monopólio que o governo protegia –, em sua própria ditadura, em seus próprios problemas. O mito do “Orgulhosamente sós” foi o principal ideal do Salazarismo, o qual mantinha a ideia de que viver naquelas terras, diante daquela situação, era motivo para ter orgulho.

A tabelinha

Antônio Salazar nem de longe era fã de futebol. O ditador percebeu tarde que, apesar disso, o esporte poderia ser utilizado como um meio de controle de massas. Como Portugal não voltou sua atenção para nada que não fosse o regime autoritário e a manutenção dele, em 1943, decretou-se uma lei que determinou que toda atividade esportiva no país seria amadora.

O profissionalismo na terra ibérica estava longe de ser realidade e depois daquela lei, tornou-se ainda mais distante. Quando não eram militares, muitos atletas precisavam trabalhar em outras áreas, pois não havia como se manter apenas como jogador. O time que fez mudar essa visão sobre o mundo da bola foi o Benfica. Depois que o clube venceu duas vezes consecutivas a Liga dos Campeões da Europa, enfim o profissionalismo foi oficialmente legitimado, em 1965. No entanto, o esporte do povo ainda era minimamente considerado.

Outro fator que vale destacar é que naquela época, os times que disputaram a I Divisão da temporada 73/74 eram principalmente da capital portuguesa e da região entre o Tejo e o Sado.

A Lei de Opção também era uma das principais barreiras para a evolução do futebol português. De acordo com ela, os clubes poderiam obrigar os jogadores a permanecerem em seu plantel. Para muitos, isso sempre foi sinônimo de regresso, uma vez que o atleta não teria a possibilidade de passar por outros times e, provavelmente, ter todo o seu potencial reconhecido. No entanto, há também quem pense que houve algo positivo, como Carlos Cardoso, que atuou como zagueiro no Vitória Setúbal por 13 anos.

“A Lei de Opção só tinha um lado positivo, que era o de permitir aos treinadores manter os mesmos jogadores durante cinco ou seis anos, ao contrário do que acontece agora. Um jogador estava ligado ao clube ‘ad eternum’, desde que o clube quisesse.” – Cardoso, em entrevista ao MaisFutebol, 2014.

Em 68, Salazar sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) e não pôde se manter à frente da ditadura. Sua saída do controle representou o enfraquecimento do regime e sua morte, em 1970, concretizou isso. Marcello Caetano, em seguida, assumiu o poder e promoveu timidamente a Primavera Marcellista, período em que o novo ditador buscou demonstrar que o governo passaria por processos de liberalização política e modernização social, mas isso ficou apenas no mundo das ideias.

A morte de Antônio Salazar influenciou diretamente na evolução positiva de muitos aspectos, inclusive no futebol. Em 1972, o primeiro Sindicato de Jogadores Profissionais foi criado, mas algumas questões, como aposentadoria, ainda eram consideradas utópicas. Além disso, nenhum time português repassava os descontos para a Segurança Social, logo, não havia fundo de desemprego. Mesmo com alguns progressos, o esporte ainda era encarado como um negócio ruim.

Ao passo que um novo dia nascia, a situação social e política de Portugal tomava forças para criar e colocar em prática uma revolução. Os movimentos independentistas cresceram principalmente nas colônias africanas e decorreram em guerrilhas armadas, fato que se intensificou após a morte de Salazar. Em 1973, inúmeras reuniões clandestinas foram feitas e em uma dessas o Movimento das Forças Armadas é criado. Em 5 de março de 74, o primeiro documento – intitulado “Os Militares, as Forças Armadas e a Nação” – daquele movimento é elaborado e colocado em circulação secretamente, e até abril, os militares seguiram seus planos para a tomada do poder.

O antes

Mesmo com os rumores da revolução, a bola continuou rolando para os portugueses. Um dia antes de tudo acontecer, o Sporting estava pela segunda vez na sua história em uma final de competição europeia. Diante do Magdeburgo, na Alemanha, os portugueses buscavam o título da Taça das Taças da temporada 73/74. A partida foi transmitida pelo sistema de Rádio e Televisão de Portugal (RTP).

O primeiro jogo acabou empatado, em terras ibéricas, e para conseguir a classificação, o Sporting precisava de uma vitória ou um empate com mais de dois gols. O time português, porém, não conseguiu superar a equipe alemã e perdeu por 2 a 1.

Estádio José Alvalade
Estádio José Alvalade, palco do empate do primeiro jogo contra o Magdeburg. Foto: Wikipédia

“E depois do adeus”

Em Portugal, quando o juiz apitou o fim da partida, o RTP instantaneamente reproduziu, às 22h55, a voz de Paulo Carvalho cantando “E Depois do Adeus”. Aquele era o primeiro sinal.

Às 00h20, o segundo e definitivo sinal do estopim da revolução ecoou. Foi ao som de “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso, que os militares deram início à Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974. Espalhados pelo país, vários grupamentos ocuparam lugares estratégicos para que tudo ocorresse como fora planejado. A música que se tornou hino do movimento havia sido considerada ilegal pelo governo, pois este argumentou que sua letra fazia referência ao comunismo.

Confira a música: 

https://www.youtube.com/watch?v=smn_4aSX4oM

Naquele horário, os jogadores do Sporting ainda estavam voltando para seu país. Quando chegaram na fronteira alemã, diante do muro de Berlim, tomaram conhecimento do golpe militar que estava para acontecer, porém, não acreditaram. Somente quando pararam em Frankfurt, na Alemanha Ocidental, o cansaço deu lugar à preocupação. Os noticiários já falavam sobre os tanques espalhados pelo país e a ausência de linha telefônica. Portugal estava ainda mais isolado naquele momento, mas por uma causa libertadora.

Quando as tropas militares enfim depuseram Marcello Caetano, às 19h30 de 25 de abril de 1974, enfim o povo respirou aliviado e liberto.

Portugal 25 de abril de 1974
Cena das ruas de Portugal no dia 25 de abril de 1974. Foto: Wikipédia

A Revolução dos Cravos

O golpe militar daquele 25 de abril simboliza até hoje o Dia da Liberdade portuguesa. Há 47 anos, o país ibérico se viu livre do que foi um dos períodos mais obscuros de sua história. As ruas foram tomadas por homens armados, mas que não fizeram da hostilidade um elemento crucial para a concretização do fim da ditadura. Não houve sangue, não houve tiros por parte dos militares, houve flores.

A origem do nome da Revolução veio da flor do cravo, a qual foi distribuída após o golpe e colocada no cano das armas empunhadas pelos militares. As pessoas que iam às ruas para comemorar o acontecimento também tinham consigo essa flor, por isso ela se tornou símbolo e deu nome ao movimento.

Flor do cravo
Símbolo da revolução, a flor do cravo foi colocada no cano das armas dos militares. Foto: Reprodução/Memória Agência Brasil

A revolução no futebol

Com o fim do período ditatorial, o futebol também passou por mudanças. A queda do regime significou a possibilidade dos jogadores reivindicarem seus direitos, tanto que a partir de 1976, muitos já tinham direito à Segurança Social. Alguns clubes deixaram de existir, pois eram majoritariamente empregos de fachadas, consolidados na época do esporte amador, promovidos por empresas da indústria, protegidas pelo governo. A famigerada Lei de Opção foi extinta e fez com que muitos clubes reformulassem seus elencos. Muitas regiões do país que não possuíam recursos para desenvolver o esporte passaram a estruturar novas equipes, como a região Norte, com o Boavista e o atual Vitória Sport Clube.

De início, uma fase ruim se instalou no futebol português. Com a desejada independência das colônias concretizada, os times ficaram sem jogadores, uma vez que vários deles vinham dos países africanos como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Assim, o esporte só conseguiu certa evolução a partir de 1980, quando Portugal passou a integrar a União Europeia e conheceu a ótica mercantilista do futebol, a qual a Europa já vinha vivendo desde anos antes.

O país também passou a investir nas categorias de base e conseguiu títulos expressivos como dois Mundiais Sub-20 (1989 e 1991). Depois disso, muitos times deram atenção também à base e então houve um progresso significativo no futebol. Um dos principais exemplos disso é o que aconteceu no Porto. A partir de 1982, Pinto Costa, então presidente do clube, reorganizou e reestruturou o time português e fez dele um gigante.

Gradativamente, a qualidade do futebol ibérico foi melhorando, fato que o fez ser reconhecido como dono de um tipo de jogo tático e que dá resultados. Portugal então passou a ser visto como protagonista mundial e alcançou patamares significantes principalmente no futebol europeu. Chegou pela primeira vez na final de uma Eurocopa em 1984, com sua seleção, e conquistou o vice. Entre 86 e 94, o país passou por uma reconstrução que rendeu a “Geração de Ouro” entre os anos de 94 e 2003, em âmbito mundial.

Bem como o apito de um juiz que marca o início de um jogo, quando a Revolução dos Cravos derrubou a ditadura, a liberdade soou aos quatro ventos do país ibérico e fez o futebol progredir após o salazarismo. Era o sinal que faltava para a evolução que se viu nos anos seguintes. Há exatos 47 anos, um regime autocrático que durou mais que quatro décadas seguidas foi deposto e até hoje, o país comemora sua libertação e não deseja repetir seu passado.

 

“O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade”

Grândola Vila Morena – Zeca Afonso

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lúcia Oliveira

Amante da comunicação, da escrita, da fotografia, do futebol, da literatura, do jornalismo, entre outras coisas. Escrevo para eternizar e vivo para escrever.

Como citar

OLIVEIRA, Lúcia. A evolução do futebol português a partir da Revolução dos Cravos. Ludopédio, São Paulo, v. 142, n. 51, 2021.
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