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A história escrita no rastro do Exú: Lima Barreto e as interlocuções entre futebol brasileiro e raça

Luciano Jorge de Jesus 2 de agosto de 2021

Apresentação

Gosto de títulos que apresentam a possibilidade do estranhamento, um convite para quem lê, pensar o que está disposto e proposto nas páginas seguintes. Quando o tema é um escritor tão importante como Lima Barreto, a ideia parece avolumar, afinal, como escrever sobre futebol levando em consideração uma figura que até mesmo contribuiu (não sozinho) para a construção da “Liga brasileira contra o futebol”.

Lima Barreto tem em sua escrita o potencial de Exu construindo suas reflexões avessas à linearidade, longe do pragmatismo presente, de forma elíptica. Dessa forma, um ponto de partida importante e uma primeira aproximação com os escritos do autor é também inspirada pela reflexão do historiador Luiz Antonio Simas:

“Os que demonizam meu compadre acertam, porém, em um detalhe… homem é perigoso. Perigoso porque escapa das limitações do raciocínio cartesiano – que tem pânico do inesperado – e não compactua com fórmulas que reduzem a vida a um jogo de cartas marcadas, com desfecho previsível

Como poderemos, na limitação de nossa tosca e arrogante visão racionalista, entender Exu, o menino que colheu o mel dos gafanhotos, mamou o leite das donzelas e acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje? Como lidar com aquele que sentado bate com a cabeça no teto e em pé não atinge nem mesmo a altura do fogareiro?” (p. 16, 2019)

É interessante pensar em Lima Barreto como um intelectual interessado em pensar o futebol, quando esse sempre esteve ocupando o lugar da crítica tenaz, buscando refletir sobre as contradições presentes no futebol brasileiros daquele momento, indo além de uma possível personalização de “inimigo do futebol” e membro da Liga Brasileira contra o Futebol. Contudo é preciso observar as reflexões, não para negar cada linha escrita, mas para ampliar nosso olhar sobre a realidade brasileira do início do século passado, a partir do olhar de um escritor tão importante.

Assim, a partir dos textos de Lima Barreto o foco não é consolidar a ideia de que o mesmo é favorável ou não ao futebol no país, afinal, seus textos não deixam dúvidas sobre isso e também sabemos muito bem qual a trajetória do esporte mais popular em nosso país. Mais do que isso, o interesse nos escritos de Lima Barreto são as possíveis interlocuções encontradas entre o futebol brasileiro e as questões raciais.

Lima Barreto versus Coelho Neto

Antes do passo seguinte, assumo os limites das reflexões. Ainda me limito a pensar nas reflexões do autor, que é objeto e fonte das primeiras interlocuções, a partir do excelente trabalho de Mauro Rosso “Lima Barreto e Coelho Neto – Um Fla-Flu literário” (2010). A obra em questão é um interessante conjunto de textos sobre o futebol brasileiro do início da década de 20 do século passado e em suas páginas podemos encontrar um confronto de ideias entre Lima Barreto e Coelho Neto, grande escritor e grande entusiasta do futebol e também merece um olhar mais aprofundado.

Assim, entendo a intencionalidade nas escolhas de Mauro Rosso e, mais do que isso, a necessidade em ampliar o olhar sobre as reflexões construídas por Lima Barreto para além do excelente livro utilizado como fonte para esse artigo.

 

 

Da mágica da contradição em Lima Barreto

Nascido no dia 13 maio de 1881 Afonso Henriques de Lima Barreto é mais um escritor atento a (re)construção da realidade do país, seja para os relatos sobre o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro e o país e os silêncios (e silenciamentos) do progresso, ou para notar seus estranhamentos com as práticas que ganhavam espaço.

Nesse sentido é possível pensar em um diálogo entre Lilia Moritz Schwarcz (2017) e Silvio Almeida (2018) para lembrar que a ambiência da qual o Lima Barreto fez parte, concebeu o desejo de liberdade e igualdade      e também construiu ideias e políticas que buscavam hierarquizar corpos e identidades raciais. Exatamente nesse momento já circulavam no Brasil teorias que tinham como objetivo determinar a forma como a população negra era notada, além das ações e instituições que recorriam – e seguem recorrendo -, racionalmente ou não, a essas teorias para encarcerar e violentar a população negra brasileira. E não é absurdo dizer que não há coincidência nem mesmo sobre as violências da qual Barreto foi vítima, até o fim de sua vida.

À luz das reflexões dos estudos citados anteriormente cabe pensar em possíveis diálogos com as reflexões de Lima Barreto. Afinal, qual a importância em pensar no autor como mais uma figura fundamental para as reflexões sobre o futebol brasileiro e as questões raciais?

Recorrendo ao belíssimo trabalho de Mauro Rosso, temos o artigo de Lima Barreto publicado no Correio da Manhã no dia 17 de setembro de 1921, em que ele faz algumas considerações sobre o scratch que seria convocado para a disputa do sul-americano daquele ano. O autor observa os critérios condizentes para a convocação de jogadores e também marca seu posicionamento sobre a ausência de jogadores negros:

“[…] A questão da cor é apontada a todo o momento mais prejudicial à organização do nosso team, vindo a ser dos maiores e mais razoáveis motivos da ineficiência do quadro que nos representará e defenderá as nossas cores, em Buenos Aires. E procede todo esse descontentamento dos brasileiros que querem, como consolo único, devido à forte intransigência dos de cima, dar o seu grito de alarme. Quem ousará contestar que o team do Andarahy é presentemente o que maior contingente de jogadores poderia fornecer para o scratch brasileiro?

Este, o segundo defeito dos organizadores desse scratch de última hora, afora o primeiro que apontamos: o medo da cor.

Na Confederação Brasileira dos Desportos, até presentemente se pretendeu encobrir essa coisa de seleção dos elementos genuinamente brasileiros. Houve, porém, falta de cuidado e a peneira com que se pretendia encobrir o sol traiu!

E aí está a verdade inacreditável de todo esse critério seguido; aí está a verdade nua e crua de tudo, para o desapontamento de todos. O governo brasileiro auxiliou em algumas dezenas de contos a Confederação Brasileira dos Desportos, mas exigiu-lhe também uma retribuição: a não ida para o Rio da Prata de jogadores que não sejam rigorosamente brancos.” (p. 152)

A capacidade de análise de Lima Barreto é potente porque explicita o interesse no modo como as questões raciais se construíram no país, que acabava de abolir a escravidão, deixando essa mesma parcela da população viver a própria sorte. Os escritos do autor são potentes para pensar na forma como as questões raciais se constroem em nosso país na medida em que buscam retratar diferentes elementos do tema e fugindo de uma perspectiva de análise individualizada. Ao contrário, Lima Barreto nota a forma como o Estado brasileiro constrói políticas de silenciamento. Afinal, segundo o escritor, a demanda pela não convocação de jogadores negros foi pautada pelo presidente da república. Silvio Almeida chama atenção para algo nesse sentido: é necessário um Estado para manter um grupo racial excluído da vida pública brasileira (2018, p. 42).

O “medo da cor” nos sugere uma expressão de amplo entendimento. Nele se inscreve não só a exclusão de atletas negros, mas a ideia de que esse silenciamento não é algo aleatório, mas também dialoga não só com a exclusão de atletas negros em grandes clubes do Brasil (algo para que Lima Barreto também chamou a atenção), mas também a forma racionalizada com a qual o racismo lia/lê corpos negros e buscava/busca construir ideias que circulavam. Como nos lembra muito bem Silvio Almeida, dialogando com os escritores Etienne Balibar e Immanuel Wallerstein, “não há racismo sem teoria” (p.54, 2018). 

No texto “O meu conselho”, datado do dia 01° de outubro de 1921, Lima Barreto reflete sobre a possível chegada de um herdeiro de uma família tradicional de Trinidad. Em seus argumentos, ele sugere que esse herdeiro possui uma relação de poder muito próxima daquela existente no Brasil e que o autor busca denunciar em seus textos. O autor faz a interlocução do herdeiro personagem de seu texto com o futebol que se enraizava no país. E aqui um trecho interessante:

“[…] É por ver acontecer isto aqui, depois que se implantou entre nós o anglicano futebol, que imagino que esse descendente dos barões que impuseram a João Sem-Terra (1199-1215) a Magna Carta, vive lá em Trinidad, a surrar os negros que trazem mais de corto número de folhas, arrancadas às árvores, nos cabazes em que colhem a baga rubra do café maduro. É o fardo do homem branco: surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O futebol não é assim: não surra, mas humilha; não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam.” (p. 155)

A leitura de Lima Barreto é perspicaz e parece prever exatamente o que aconteceria anos depois com craques como Barbosa, Bigode e Juvenal. A leitura racial é primordial para notar o que ocorre com os três atletas quando são culpados pelo insucesso do futebol brasileiro na primeira copa realizada no Brasil, em 1950. Contudo, ao contrário do que poderíamos imaginar, a humilhação e a injúria não são somente aspectos do “campo”, elas parecem extrapolar o campo, o tempo e o espaço.

Assim, a passagem é muito importante na medida em que o autor parece ter claro que o futebol não é exatamente um espaço isolado das relações que se construíam naquele momento em nosso país. Inclusive a ideia de que não há tanta distância entre os barões de outras colônias e aqueles que dominavam (e comandam) o esporte bretão. E, mais do que isso, notar que o futebol seria mais um espaço de para a tentativa de dominação de jogadores negros.

Lima Barreto
Em parceria com o produtor Cultural, Pedro Rajão, Cazé cria esse mural em homenagem a história e importância de Lima Barreto, série de murais que fazem parte do projeto NEGRO MURO. Foto: Reprodução cazearte.com

Conclusão – Ou novos pontos de partida

Lima Barreto foi um opositor do futebol e questionava bastante as práticas esportivas que ganhavam ampla popularização na capital federal. Esse momento, como nos ensina Leonardo Affonso de Miranda Pereira (2000), é de grande debate sobre os benefícios (ou não) dos esportes, que eram a grande novidade do momento (p. 42, 2000).

Mas essa oposição não é gratuita e é realizada por um intelectual que possui chaves de leitura que podem ser importantes para entender diferentes camadas da sociedade brasileira daquele momento. Nesse sentido é importante valorizar o lugar criativo e potente de um homem como Lima Barreto, levando em consideração sua trajetória, que, inclusive, é marcada por aquilo que ele sempre denunciou.

As fontes analisadas são um interessante convite para pensar na forma como Lima Barreto conseguiu construir reflexões sobre raça. Mesmo as fontes aqui analisadas merecem ainda maior profundidade de análise e mais do que isso – e aqui está o encanto nessa possibilidade – mergulhar ainda mais na interlocução com uma série de pensadores e pensadoras que pensaram as questões raciais de forma ainda mais ampla. Cabe aqui ressaltar a necessidade da interlocução com um arcabouço teórico racializado, falando sobre as suas próprias experiências. Nossa base epistemológica sobre o encontro entre raça e futebol precisa desse olhar, e sobretudo um olhar que esteja em diálogo com a forma como Lima Barreto tem notado o futebol, as questões raciais, de classe e a forma que o Brasil buscava consolidar um projeto.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

PEREIRA, Leonardo Afonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

ROSSO, Mauro. Lima Barreto versus Coelho Neto: um Fla-Flu literário. Rio de Janeiro: Difel, 2010.

SCHWARCZ, Lilia Moritz (2017). Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras.

SIMAS, Luiz Antonio. Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros. 2ªed. – Rio de Janeiro: Mórula, 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

JESUS, Luciano Jorge de. A história escrita no rastro do Exú: Lima Barreto e as interlocuções entre futebol brasileiro e raça. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 4, 2021.
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