131.4

A hora da Estrela no futebol

Com suas palavras sobre a paixão nacional, Clarice Lispector presenteou todos e provou que futebol e literatura podem fazer a mais linda das tabelinhas

Foto: Sesc em São Paulo/Flickr/Reprodução.

O ano era 1968. 30 de abril foi o dia em que Clarice Lispector publicou no Jornal do Brasil uma crônica intitulada “Armando Nogueira, futebol e eu, coitada”.

Dias antes, Armando Nogueira havia provocado no mesmo JB:

“De bom grado eu trocaria a vitória de meu time num grande jogo por uma crônica de Clarice Lispector sobre futebol”.

A reconhecida e consagrada escritora não precisava responder sobre um assunto tão popular e que, para o senso comum, passa longe da literatura e dos romances, time em que Lispector era craque, camisa 10 e faixa.

Quem diria que uma intelectual como ela se interessaria por futebol?

Mesmo com um perfil nada parecido com o de uma torcedora e num tempo em que às mulheres era negado o direito de opinar sobre o esporte bretão, a escritora não só respondeu Armando Nogueira na crônica publicada no JB, como era botafoguense praticante — ainda que não nas arquibancadas, mas “sofredora do sofá pela TV” —, e devolveu a provocação com um desafio:

“Meu primeiro impulso foi o de uma vingança carinhosa: dizer aqui que trocaria muita coisa que me vale muito por uma crônica de Armando Nogueira sobre, digamos, a vida. Aliás, meu primeiro impulso, já sem vingança, continua: desafio você, Armando Nogueira, a perder o pudor e escrever sobre a vida e você mesmo, o que significaria a mesma coisa”.

Com muito talento a escritora vai nos colocando dentro da crônica, prendendo o leitor ao texto como o time de coração nos prende na arquibancada a cada lance de perigo contra ou a favor. Porém, é o coração botafoguense que grita alto e alerta Armando Nogueira:

“Mas, se seu time é Botafogo, não posso perdoar que você trocasse, mesmo por brincadeira, uma vitória dele nem por um meu romance inteiro sobre futebol”.

Mesmo que a torcedora grite, a escritora pondera que “não pode se deixar levar pelos excessos”. Guia o leitor que, porventura, ainda se pergunte porque uma renomada escritora, uma intelectual, estaria escrevendo sobre futebol, e esclarece:

“não poderia eu me isentar a tal ponto da vida do Brasil”.

Clarice usa toda sua sensibilidade para responder aos incautos que, no Brasil, futebol é muito mais que um jogo. Não deveria ser um assunto relegado ao populacho, sendo mais uma das tantas exoticidades que a elite atribui à turba, ainda que seja o futebol patrimônio da ralé, deveria ser tratado pelos intelectuais como parte integrante da vida do brasileiro.

Vai além, como a escritora reconhece no futebol e nas experiências proporcionadas pelo entorno da paixão nacional, a matéria prima indispensável para erguer as obras literárias mais sensíveis, justamente por imitar a vida.

Lá pelas tantas, Lispector entrega o filho “traidor” que abandonou o Clube da Estrela Solitária e “para agradar ao pai veste a casaca do Flamengo”. Fala de como são as tardes de futebol pela TV com o outro filho, o botafoguense, que com uma “impaciência piedosa” e “um tanto de ternura pela mãe”, responde rapidamente às tolas perguntas que faz a genial escritora e leiga espectadora de futebol.

Depois se entrega: primeiro ao Botafogo, se declarando uma apaixonada torcedora e em seguida ao leitor, quando conta seu pecado de na vida ter ido uma única vez ao estádio para assistir de “corpo presente” a um jogo do Fogão contra quem, confessa, nem sequer se lembra:

“Sinto que isso é tão errado como se eu fosse uma brasileira errada”.

Com a confissão e admissão do pecado, segue crônica adentro aproveitando para desmentir e desmistificar um bordão tradicional que compara o futebol a uma dança:

“Não, não imagine que vou dizer que futebol é um verdadeiro balé. Lembrou-me foi uma luta entre vida e morte, como de gladiadores”.

Arremata com a genialidade dos grandes escritores e dá uma nova dimensão de beleza ao futebol:

“O futebol tem uma beleza própria dos movimentos que não precisa de comparações”.

A autora de “A hora da estrela” ainda teria tempo para equiparar uma vez mais vida e futebol, ao falar de seu desconhecimento sobre o esporte mais amado do brasileiro, abriu de vez o coração para encerrar a crônica e cravar definitivamente sua paixão pela vida na medula de cada leitor:

“Então, na minha avidez por participar de tudo, logo de futebol que é Brasil, eu não vou entender jamais? E quando penso em tudo no que não participo, Brasil ou não, fico desanimada com minha pequenez. Sou muito ambiciosa e voraz para admitir com tranquilidade uma não participação do que representa vida. Mas sinto que não desisti. Quanto a futebol, um dia entenderei mais. Nem que seja, se eu viver até lá, quando eu for velhinha e já andando devagar. Ou você acha que não vale a pena ser uma velhinha dessas modernas que tantas vezes, por puro preconceito imperdoável nosso, chega à beira do ridículo por se interessar pelo que já devia ser um passado? É que, e não só em futebol, porém em muitas coisas mais, eu não queria só ter um passado: queria sempre estar tendo um presente, e alguma partezinha do futuro”.

Clarice Lispector morreu um dia antes de nascer. Isso mesmo, nasceu num dia 10 de dezembro e de tanto querer a vida acabou encontrando a morte num dia 09 de dezembro, em 1977, um dia antes de completar 57 anos de idade. Em 1968, na crônica publicada no Jornal do Brasil, respondeu e desafiou Armando Nogueira, declarou seu amor pelo futebol, pelo Botafogo e pela vida.

“Estrelas são os olhos de Deus vigiando para que corra tudo bem”.

Lispector escreveu isso sobre estrelas, mas gostava mesmo era de uma única estrela, a Estrela Solitária do Clube de General Severiano, o Botafogo de Futebol e Regatas.

Armando Nogueira foi o pai do jornalismo esportivo moderno, o poeta das crônicas esportivas foi também o homem que criou o padrão de telejornalismo que conhecemos. Entre tanta genialidade em prosa, verso, chutes, passes e dribles, não é preciso mesmo trocar nada por coisa alguma, Armando Nogueira por Clarice Lispector, provocação por desfio, Botafogo por Flamengo ou qualquer time pelo clube de coração.

Se é possível ter a provocação genial de Armando Nogueira e o futebol romanceado por Clarice Lispector, o futebol literário, cativante e instigante de Armando Nogueira e a “ignorância apaixonada” que nos apaixona por Clarice Lispector, somos nós, então, bem-aventurados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Pedro Henrique Brandão

Comentarista e repórter do Universidade do Esporte. Desde sempre apaixonado por esportes. Gosto da forma como o futebol se conecta com a sociedade de diversas maneiras e como ele é uma expressão popular, uma metáfora da vida. Não sou especialista em nada, mas escrevo daquilo que é especial pra mim.

Como citar

BRANDãO, Pedro Henrique. A hora da Estrela no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 4, 2020.
Leia também:
  • 178.19

    Atlético Goianiense e Vila Nova – Decisões entre clubes de origem comunitária

    Paulo Winicius Teixeira de Paula
  • 178.17

    Onde estão os negros no futebol brasileiro?

    Ana Beatriz Santos da Silva
  • 178.15

    Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol

    Camila Valente de Souza