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A inserção das mulheres no Sport Clube Internacional

Silvana Vilodre Goellner 31 de outubro de 2022

Nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do XX Porto Alegre vivenciava um período de transição. O desenvolvimento industrial, as novas tecnologias e a chegada de imigrantes promoveram alterações econômicas, políticas, sociais e culturais. Sopravam os ventos da modernidade e com ela diversificaram-se os códigos de conduta e os olhares sobre a energia do corpo individual e do corpo social. A cidade passava por um processo de modernização e o espaço público foi remodelado visando ampliar as opções de divertimento, sociabilidade, competição e lazer. Nos parques, praças, balneários e clubes começaram a aparecer as demonstrações ginásticas, as regatas, os campeonatos de natação, as corridas de cavalo, as provas de tiro ao alvo e as competições de ciclismo. Gradativamente houve a inserção de outras manifestações esportivas, dentre elas o futebol. Foi em 1903, por meio de um jogo de exibição promovido pelo Sport Club Rio Grande, que a capital gaúcha conheceu o esporte bretão. Nesse mesmo ano foram fundados o Grêmio Foot Ball Porto Alegrense e o Fussbal Porto Alegre, ambos vinculados à comunidade alemã.  

Nas décadas inaugurais do século XX a experiência esportiva era revestida de elegância e glamour, estava associada as elites e era reconhecida como um signo de distinção social. A criação do Sport Clube Internacional, em 1909, se deu neste contexto e, diferentemente das agremiações futebolísticas que o antecederam contemplou em seu quadro social pessoas de diferentes etnias e nacionalidades.

A presença das mulheres na história do clube acontece desde o seu princípio. O fardamento usado pelos jogadores em sua partida de estreia foi pensado por Humbertina Pacheco Fachel que na época trabalhava em um ateliê de costura. Incentivada pelo noivo Bartolomeu e pelos irmãos, Valdomiro e Carlos, jogadores da equipe, foi ela quem criou o primeiro uniforme do clube: camisa branca com listras verticais vermelhas, calção branco e boné vermelho contendo uma aba de palha, ao estilo do usado por jóqueis.  As peças de todo o plantel foram confeccionadas em apenas uma semana com a ajuda da irmã Eulina e das amigas Julieta Pinto César e Lídia de Oliveira. Humbertina também criou o distintivo do clube fazendo uso de um papel grosso que forrou com algodão e revestiu com as sobras dos tecidos vermelhos e brancos utilizados nas camisas. 

Camisa Internacional
Fonte: Blog Oficial do Arquivo Histórico do Sport Clube Internacional

Ainda que as mulheres não jogassem futebol neste período em função de convenções sociais, sua participação na agremiação acontecia de modo diverso: além de comparecerem aos jogos integrando a torcida, executavam tarefas essenciais para que os homens estivessem em campo como, por exemplo, o zelo com os uniformes, a feitura de bandeiras, distintivos e flâmulas, a preparação dos alimentos,  a limpeza dos espaços, a organização de eventos beneficentes e o aconselhamento dos esposos, familiares, amigos e namorados.  Enfim, mesmo que desempenhando funções invisíveis, elas estavam lá e do seu modo contribuíram para que o clube se firmasse no cenário esportivo local e, posteriormente, nacional.

Internacional
Fonte: Blog Oficial do Arquivo Histórico do Sport Clube Internacional

No início do século XX, a sociedade brasileira era conservadora em relação aos costumes e impunha várias restrições à circulação das mulheres no espaço público. As famílias, temerosas de sua desmoralização, mantinham sob vigilância o comportamento das senhoras e senhoritas que eram educadas para o casamento e para a maternidade cujas atribuições a atrelavam ao ambiente doméstico. Suas aparições em eventos esportivos se davam sob a tutela dos pais ou maridos a quem acompanhavam ou por quem eram autorizadas a frequentar.

Tanto quanto neles, a paixão pelo clube também pulsava no coração delas, e o Inter soube reconhecer esse desejo. No dia 2 de abril de 1918, Maria von Ockel foi aceita em seu quadro social, tornando-se a primeira mulher a alçar a categoria de sócia em um clube de futebol no Brasil. A postulação da jovem foi apresentada pelo presidente, Heitor Carneiro, que assinou a ata de sua aprovação registrando que ela estava sob responsabilidade de seu cunhado, o Sr. P.M. Buester. Maria era conhecida nos círculos de convivência do Inter e integrava, juntamente com a esposa do presidente, um grupo que se reunia para jogar tênis e socializar. Atento e acolhedor à inserção das mulheres no seu cotidiano, o Conselho Deliberativo do clube, em Assembleia Geral Ordinária, aprovou em 1919 a realização de melhoria nos vestiários e a construção de um pavilhão junto aos seu ground para atender as senhoritas e senhoras que se dedicavam ao tênis, esporte que praticavam como lazer usando vestidos, sapatos e, por vezes, um pequeno chapéu vermelho, símbolo do pertencimento clubístico.

A modernização dos costumes deslocou o posicionamento do bello sexo na esfera social e pouco a pouco as mulheres foram ocupando os espaços nos quais o esporte acontecia. Por ser uma atividade protagonizada quase que exclusivamente pelos homens, elas aderiam com entusiasmo aos hábitos esportivos, deliciadas com os ares de independência e sociabilidade que eles conotavam. No futebol não foi diferente. Em várias cidades brasileiras, começam a aparecer moças interessadas pela sua prática apesar de não ser recomendada por se tratar de um esporte de contato que exigia esforços considerados incompatíveis com a fragilidade de seus corpos.

No Rio de Janeiro, capital da República, o football feminino começou a se firmar na década de 1930 com o surgimento de vários times e campeonatos.  Essa presença não passou desapercebida pela imprensa local que noticiava a realização de competições em diferentes locais da cidade, publicava fotografias das equipes, destacava nome de jogadoras e detalhes dos jogos. Tal visibilidade incomodou setores mais conservadores da sociedade que consideraram o futebol como uma ameaça a mocidade e ao futuro da Nação. Sob a acusação de que poderia prejudicar a saúde, a feminilidade e a moral das moçoilas, foi publicamente rechaçado chegando mesmo a ser proibido.

Em maio de 1940, José Fuzeira, um cidadão carioca escreveu uma carta aberta ao Presidente da República, Getúlio Vargas, na qual condenava o futebol para as mulheres classificando-o como um antro de perdição, um disparate que não deveria continuar. Esse documento teve ampla circulação na imprensa e acendeu um movimento que culminaria na elaboração de um aparato legal que por quase quatro décadas impediu que as mulheres praticassem várias modalidades esportivas. Em 1941 o Conselho Nacional de Desportos (CND) instituiu o Decreto-Lei nº 3.199, o primeiro documento a balizar o ordenamento esportivo brasileiro cujo artigo 54º oficializou a interdição às mulheres “de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”.  Apesar de não nomear quais seriam as modalidades impróprias a elas, isso aconteceu somente em 1965, o futebol foi assim interpretado e sua prática se tornou alvo de uma série de intervenções, inclusive da polícia que algumas vezes levava as jogadoras até a delegacia para prestar depoimento e depois liberá-las.  

No Rio Grande do Sul esse cerceamento não se deu de modo diferenciado das demais regiões do país.  Na década de 1950, na cidade de Pelotas, foram criadas duas equipes de mulheres, o Vila Hilda F.C. e o Corinthians F.C, cujas atletas excursionaram pelo estado inspirando a criação de outros times e outras praticantes. O CND, ciente dessa mobilização, entrou em cena cobrando das autoridades locais que fosse cumprida a legislação e, portanto, extintas as equipes e suas aparições.   

O Decreto-Lei nº 3.199 foi revogado apenas em abril de 1979 e durante o tempo de sua vigência as mulheres enfrentaram muitas dificuldades para jogar bola: eram impedidas pelas suas famílias, a sociedade as recriminava e as entidades gestoras do esporte não demonstravam interesse em reverter a situação. Ainda assim é importante destacar que o fato de não aparecerem nos jornais ou nos registros oficiais da modalidade não significa a inexistência de jogos e de jogadoras. Muitas mulheres resistiram às determinações legais e as convenções sociais e do seu jeito criaram estratégias para usufruir do futebol enfrentando o preconceito e a desonra que foram associadas à sua prática. Brincar na rua com familiares, amigos e vizinhos era um modo de estar no futebol, assim como participar de eventos beneficentes de caráter não competitivo. 

Extinta a oficialização da interdição, algumas iniciativas começam a florescer em solo gaúcho.  No dia 11 de outubro de 1980, o Sport Club Rio Grande, primeiro clube de futebol do país, criou o Departamento de Futebol Feminino. Nesse mesmo ano em Santa Maria foi organizado um campeonato que reuniu vinte equipes participantes. Em Bento Gonçalves no ano de 1982 foi fundado o Bento F. C. Feminino e no ano seguinte, em Caxias do Sul, o Atlântico.

Na capital foi somente depois da regulamentação da modalidade, em abril de 1983, que o futebol de mulheres se tornou mais conhecido. No início da década de 1980 despontaram alguns times, em sua maioria, resultantes do agrupamento de mulheres e meninas que praticavam o futebol de salão e de campo. A criação das equipes do Sport Clube Internacional e do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, os clubes mais tradicionais de Porto Alegre, foi imprescindível para uma maior visibilidade da modalidade, sobretudo na imprensa local visto que a rivalidade já existente entre a equipe de homens foi agregada às disputas entre as mulheres.

Internacional feminino
Jogadoras do Internacional em final contra o Corinthians em 2022. Foto: João Callegari

Em 1983 o Clube do Povo inaugurou uma nova página em sua história ao formar sua primeira equipe de mulheres. As gurias passaram a ocupar os gramados protagonizando o espetáculo que até então vivenciavam como coadjuvantes. Desde essa primeira convocação até a atualidade foram muitas as estrelas que defenderam o manto colorado, honraram o clube e projetaram o futebol gaúcho para além de suas fronteiras. Ao rememorar os primeiros passos da inserção das mulheres no Sport Clube Internacional homenageia todas aquelas que de um modo ou outro inscreveram suas marcas na história do clube e fizeram com que ele se tornasse o gigante que é.

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Silvana Goellner

Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Aposentada).  Ex-coordenadora do Centro de Memória do Esporte (CEME) e  Vice-Coordenadora do Grupo de Estudos sobre Esporte Cultura e História (GRECCO). Pesquisadora e ativista do Futebol de Mulheres. Integrante do Grupo de Estudos Mulheres do Futebol (GEMF).

Como citar

GOELLNER, Silvana Vilodre. A inserção das mulheres no Sport Clube Internacional. Ludopédio, São Paulo, v. 160, n. 33, 2022.
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