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A interferência da audiência na construção da notícia: o caso do Podcast 45 minutos

Uma das principais referências na produção de podcasts no Nordeste brasileiro, o Podcast 45 Minutos vem ganhando projeção nos últimos anos pela cobertura jornalística que faz dos clubes de futebol da região – em especial de Pernambuco, da Bahia e do Ceará. Com milhares de programas gravados e milhões de downloads, o projeto nascido no Recife em 2014 tem obtido notoriedade também por um fenômeno moderno: a proximidade e a relação direta com a audiência (MESQUITA, 2014) na era digital.

Este ensaio trata-se de um curto fragmento de um estudo maior, tese de doutorado, ainda em curso. O objetivo aqui é trazer uma breve reflexão sobre o impacto das redes sociais na produção das notícias no jornalismo esportivo, especificamente sobre o caso do Podcas45 e a sua relação com o seu público.

Dois acontecimentos inspiraram a construção deste texto: um caso de interferência direta na produção da notícia a partir de uma queixa de um “podouvinte” (que desencadeou uma série de ações a ver a seguir) e a série de projeções do Nieman Lab sobre a relação do jornalismo com a audiência.

O Nieman Lab faz parte da Fundação Nieman, de Harvard. É uma das mais respeitadas instituições acerca do estudo em busca da promoção e elevação dos padrões do jornalismo. Entre outros pontos, o Laboratório Nieman promete ajudar o jornalismo a descobrir seu futuro na era da internet. Embora o foco dos estudos desse núcleo não tenha relação direta com o jornalismo esportivo, interessa-nos aqui relativizar as tradicionais “previsões” (se assim posso chamar) feitas pelo laboratório norte-americano, a partir de uma série de artigos lançados no começo deste ano, justamente com o trabalho do Podcast45 a representar a vertente jornalística esportiva.

Francesco Zaffarano (2022) traz o exemplo da Will Media, uma startup italiana de notícias onde ele trabalha como editor-chefe. O projeto jornalístico passou a engajar a sua audiência em eventos da redação, além de organizar reuniões comunitárias, com oficinas, projetos locais etc. Zaffarano (2022) defende, por exemplo, que os dados do Google Analytics não são mais suficientes para guiar os jornalistas e que, para permanecer relevante, ele argumenta, o jornalismo vai precisar perguntar diretamente para as pessoas o que elas precisam do canal de comunicação. “Espero que 2022 seja o ano em que nós nos comprometamos a nos relacionar pessoalmente com as pessoas das nossas comunidades” (ZAFFARANO, 2022).

 Shalabh Upadhyay (2022), por sua vez, destaca que a pandemia causada pela Covid-19 serviu como um catalisador para essa mudança de comportamento da sociedade e o jornalismo precisa acompanhar essa transição no mundo que ela chama de “pós-notícias”, conceito que em resumo aponta uma preocupação com o excesso de informação nas redes digitais. Quando as notícias já não são a fonte primária do público, o jornalismo ganha relevância como o lugar onde as pessoas vão para validar as informações recebidas de múltiplas fontes. “Para isso, os jornalistas precisam criar processos transparentes que forneçam ao público em geral os meios de validar seu trabalho” (UPADHYAY, 2022).

O último artigo do Nieman Lab a ser citado é de Ariel Zirulnick (2022). Ela afirma que os jornalistas confundiram o envolvimento do público e o envolvimento da comunidade por muito tempo – e em 2022, finalmente começaremos a tratá-los como funções distintas e complementares da redação. “O primeiro, é focado na construção de hábitos, fidelidade e receita de público. A segunda é entender os vazios no ecossistema local e posicionar a redação para ajudar a preenchê-los” (ZIRULNICK 2022). Em resumo, a autora pede que as redações se posicionem como um guia sábio e confiável, não o herói ou alguém que permanece distante.

Santa Cruz
Walter, atacante do Santa Cruz. Foto: Rafael Melo/Santa Cruz

A audiência potente

Todas essas projeções e tendências do jornalismo apontados por especialistas nos Estados Unidos podem de alguma maneira serem trazidas para a realidade brasileira. O advento das redes sociais on-line promoveu uma série de mudanças para a sociedade. A mais significativa foi a possibilidade de expressão e sociabilização através das ferramentas de comunicação mediada pelo computador (CMC) (RECUERO, 2009). Com a livre opção de interagir com a notícia, bem como com outros leitores, os atores (pessoas, instituições ou grupos) ganharam um novo meio para expor opiniões e adentrar em debates através das redes sociais.

Com a chegada dessa ferramenta, a participação do receptor na comunicação foi potencializada. A abertura de novos canais de interação trouxe maior dinâmica, especialmente nos últimos anos, quando as emissoras incorporaram em suas rotinas de produção as plataformas digitais, como WhatsApp, Facebook, Youtube, Instagram e o Tik Tok.

O encurtamento das fronteiras possibilitado pelo ciberespaço trouxe o desenho de um novo tipo de audiência e, por conseguinte, uma nova hipótese, classificada por Mesquita (2014) como “audiência potente”. A autora apresenta 11 características dessa audiência: tecnológica, de conectividade, de rede, de interatividade, de autonomia na apropriação do conteúdo, de testemunha, de coprodução, de vigilância, de reação, de propagação e de amplificação.

De acordo com Mesquita (2014, p.57), “quando nos referimos à audiência potente estamos falando de cidadãs e cidadãos que, de alguma forma, estabelecem uma relação ativa com os veículos de comunicação, envolvendo-se ou sendo envolvidos nos processos, práticas e nas rotinas jornalísticas”. Neste contexto, uma questão central para a concretização dessa nova modalidade de audiência é a interatividade, cenário amplamente potencializado pelas redes sociais digitais.

 O Podcast45

E é justamente a interatividade e a proximidade com o público que nos leva ao Podcast 45 Minutos como um exemplo de projeto que consegue aliar o engajamento do público ao desenvolvimento do trabalho jornalístico. Os noticiários esportivos são balizados pelo que é comentado na internet (LEAL, 2020) e muitos jornalistas passaram a observar, por exemplo, os Trend Topics[1] do Twitter para se balizar nos assuntos mais recorrentes do dia. O Podcast45 faz isso, mas conseguiu, dentro de uma perspectiva tal qual projeta e pede os artigos do Nieman Lab, agregar seu público dentro uma única comunidade, em grupos no WhatsApp, onde os colaboradores do canal podem interagir diretamente com os jornalistas, dando sugestões de pautas, fazendo colaborações informativas e cobrando conteúdo.

Trago aqui um exemplo dentro de um universo de casos presentes no grupo de WhatsApp do Podcast45, um solo fértil para estudos. No último dia 4 de fevereiro, um dos colaboradores, torcedor do Santa Cruz, escreveu um longo texto. Queixava-se da cobertura ao seu clube do coração. “Como tricolor que sou tenho também minhas críticas a forma que o Santa vem sendo tratado pelo 45 minutos”. O “podouvinte” cobrava um programa sobre a vitória do Tricolor no Campeonato Pernambucano e homenagens ao clube que, no dia anterior, completara 108 anos. “Desculpe o desabafo, já basta a raiva que os nossos dirigentes nos fazem passar, meu Santa merece respeito”, concluiu o longo texto que não ficaria sem respostas.

A partir de então, uma série de outros torcedores também endossaram as cobranças aos jornalistas e outros saíram em defesa do projeto sob o argumento, por exemplo, de que o programa ainda seria gravado adiante. “Desde que o projeto deixou de ser apenas em Pernambuco, os jogos isolados dos estaduais (na 1° fase) não geram necessariamente Telecasts. Então, a gente faz algumas junções. No caso do Santa, o time jogará isolado no domingo. E aí teremos um programa que engloba a semana do Tricolor”, explicou um dos editores do podcast.

“Precisamos conciliar não apenas as agendas de jogos, mas também as agendas internas. Somando os jogos isolados dos Estaduais e os adiamentos de jogos, está beirando o impossível”, justificou outro editor a denotar uma clara preocupação em atender os anseios do seu público e deixá-lo consciente da logística que envolve a produção do programa.

A consequência da cobrança e debate interno pôde ser notada no programa seguinte. Para o grande público, certamente algumas escolhas e temas abordados no podcast posterior à discussão passariam despercebidas, mas para quem pôde acompanhar o debate entre a audiência e os jornalistas, a forma como se deu construção do programa deixou transparecer uma evidência: o pedido do “podouvinte” estava a ser atendido.

 Falou-se do aniversário coral, faz-se uma caminhada histórica pelas conquistas e trajetória do Santa Cruz, sobre o estádio do Arruda, “patrimônio torcida” e, assim, a maior fatia do programa acabou dedicado ao tricolor pernambucano. Perguntei diretamente a Celso Ishigami, fundador e editor do projeto, se o programa referido, o dia 7 de fevereiro, havia sido influenciado pelas cobranças no grupo do WhatsApp.

Seria mentira minha se eu disse que não teve nenhuma influência. Mas é importante dar o tamanho certo da influência porque na prática estamos sempre de olho na reação da nossa audiência. Vou dar um exemplo prático ligado ao acontecimento que foi a falta do Telecast do Santa Cruz. Particularmente, defendo que nós façamos programas com pautas mais produzidas e que fujamos das análises de jogos propriamente dita. Mas o que eu vejo de momento, da forma como as pessoas consomem conteúdo, é que esse conceito do Telecast, com análise do pós-jogo é um produto muito consolidado, já uma herança de rádio, que adaptamos para o formato de conteúdo sob demanda e é muito difícil brigar contra isso. A gente fica refém de ter Telecast e isso já é uma forma de mostrar como a reação da audiência interferente no conteúdo que a gente produz. Independentemente de ser um caso específico ou não. É algo presente na nossa rotina saber como o nosso conteúdo vai ser recebido pela nossa audiência (ISHIGAMI, 2022).

Vejo nessa pequena passagem alguns elementos que me remeteram aos artigos publicados pelo Nieman Lab este ano. Zaffarano (2022) pedia mais contato com a comunidade (entre outros pontos, o Podcast45 promove eventos, como campeonatos de botão e futebol de campo, onde encontra seus ouvintes); Upadhyay (2022) sugeriu transparência com o público, e Zirulnick (2022) maior proximidade e confiança entre jornalistas e audiência. Não se pode dizer que o projeto em análise não consegue seguir à risca desde “ontem” o que os norte-americanos pedem para “amanhã”.

Obviamente, no segmento esportivo, o comportamento da audiência potente historicamente se manifesta de forma intensa (PATRÍCIO; BALACÓ, 2021), por se tratar de uma área dominada pelas discussões em torno do futebol. O que me chama a atenção é o mecanismo encontrado pelo Podcast45 para lidar com esse canal, agrupando seus seguidores, que por sua vez são financiadores do projeto, num enorme e seleto grupo capaz de dialogar diretamente com quem faz a notícia. Um campo extremamente fértil para estudos – no plural, porque alguns já começaram a ganhar vida.

O programa reiteradamente discute imparcialidade e objetividade no jornalismo esportivo e quebra paradigmas históricos quando os jornalistas do grupo expõe suas paixões clubísticas – mais uma estratégia de aproximação com o torcedor, seu público-alvo. Outra característica do grupo de comunicação é que ele também se utiliza frequentemente de ferramentas como o Google Trends para promover os debates de acordo com os temas mais relevantes da atualidade. Por outro lado, o produto que se diz feito “do Nordeste para o Nordeste” ainda é alvo de críticas por não tratar todos os estados da região optando por trabalhar majoritariamente os clubes pernambucanos, baianos e cearenses – este ponto, entretanto, seria extenso a ponto de merecer outro texto adiante.

Por fim, mais uma ferramenta comum ao Podcast45 é a utilização de lives (transmissão ao vivo) “transmídia”, que envolvem transmissões em plataformas como Youtube, Twitter, Twitch, todas com a possibilidade de interação com a audiência em tempo real. De tão grande, inclusive, o grupo passou a utilizar uma maneira de monetizar a participação do público com o que denomina “super chat”, onde o internauta que faz uma colaboração financeira para o grupo durante o programa tem prioridade na leitura da sua mensagem.

Santa Cruz
Foto: Rafael Melo/Santa Cruz

Conclusão

Diante das informações apresentadas ao longo deste trabalho, conclui-se o processo de interação da audiência com a notícia no campo esportivo com o uso de múltiplos recursos e apropriações oriundas da internet, em especial com revolução potencializada pelas redes sociais digitais, prova-se um item irrevogável na construção do noticiário esportivo: o torcedor, motivado pelo seu sentido passional, sente-se muitas vezes na obrigação de responder, questionar, reforçar o valor do seu clube. Jamais se furtar ao silêncio, sobretudo com a possibilidade de interagir ao alcance das mãos – aqui estão os smartphones.

Os jornalistas esportivos trabalham seus noticiários regidos na maior parte pelas regras jornalísticas clássicas. Porém adaptados à nova realidade. Sem renunciar à interatividade da audiência que interage na sua grande maioria através das redes sociais, sendo ela capaz de interferir na configuração do noticiário através de colaborações (vídeos, fotografia, informações), ponderações e críticas.

O Podcast45 é apenas um caso num universo inteiro que vem em mutação para atender os anseios da sociedade. A singularidade na forma como o projeto faz-se apresentar é o que lhe torna diferenciado a ponto de ser uma referência para a região onde está situado.

Notas

[1]Também conhecidos como “Assuntos do Momento” do Twitter ou TTs, são os temas mais falados no momento na rede num determinado instante.

Referências bibliográficas

LEAL, Daniel. Noticiabilidade na Placar: a mutação dos valores-notícia em três décadas de cobertura do futebol de mulheres (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil, 2020.

MESQUITA, G. Intervenho, logo existo: a audiência potente e as novas relações no jornalismo. (Tese de Doutorado). PPGCOM, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil, 2014.

PATRÍCIO, Edgard; BALACÓ, Bruno. As apropriações das redes sociais no processo de interação com a audiência no radiojornalismo esportivo: a experiência das emissoras de Fortaleza. Revista Pauta Geral-Estudos em Jornalismo, Ponta Grossa, v.8.e2119583, p.1-17, 2021.

RECUERO, Raquel. Redes sociais na Internet. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2009.

UPADHYAY, Shalabh. Can journalism survive in a post-news world?. Nieman Lab. Disponível em: https://www.niemanlab.org/2021/12/can-journalism-survive-in-a-post-news-world. Acesso em 19 de fev 2022.

ZAFFARANO, Francesco. Data’s not enough: It’s time to meet with your community. Nieman Lab. Disponível em: https://www.niemanlab.org/2021/12/datas-not-enough-its-time-to-meet-with-your-community/. Acesso em 19 de fev. 2022.

ZIRULNICK, Ariel. Audience engagement ≠ community engagement. Nieman Lab. Disponível em: https://www.niemanlab.org/2021/12/audience-engagement-%e2%89%a0-community-engagement. Acesso em 19 de fev 2022.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Leal

Jornalista pernambucano com mais de dez anos de atividade como repórter esportivo. Mestre e doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Pernambuco (UFPE). Especialista em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais, pela Faculdade Estácio de Sá, e graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo, pela Universidade Católica de Pernambuco. Membro do Observatório de Mídia: gênero, democracia e direitos Humanos (OBMIDIA UFPE) e da Rede nordestina de estudos em Mídia e Esporte (ReNEme). Pesquisador das temáticas ligadas ao Futebol, Jornalismo, Audiência e Comunicação. E-mail: [email protected]

Como citar

LEAL, Daniel. A interferência da audiência na construção da notícia: o caso do Podcast 45 minutos. Ludopédio, São Paulo, v. 153, n. 3, 2022.
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