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A luta Alto-Xinguana em luto: Etekeha, Mestres!

Carlos Eduardo Costa 14 de agosto de 2020

É difícil afastar alguma imagem idílica quando se é estudante de antropologia chegando a um dos últimos lugares alcançados pelo “homem branco”. Conhecer pessoas fantásticas, apenas reforça essa dificuldade quando se tem interesse por viagens, desbravamentos, pescarias, em suma, a “natureza” de um lugar como o Alto Xingu. Sobretudo, quando se chega a tal lugar com o intuito de estudar uma das mais fascinantes manifestações da “cultura” indígena, o ritual pós-funerário egitsü (na língua karib), mais conhecido como kwarup (em tupi).

Efígies ornamentadas que são os chefes falecidos homenageados. Foto: Carlos Eduardo Costa

Celebração em homenagem aos grandes chefes falecidos, o kwarup é tema de dedicado interesse não apenas pela antropologia, mas para a literatura, jornalismo e pesquisas audiovisuais que são impactadas pela opulência das imagens, das cores, músicas, da intensidade das atividades realizadas. A beleza cenográfica é potencializada pela tensão que paira no ar nesse momento definidor das relações interétnicas, ocasião única em que os nove povos que compõem esse complexo regional multiétnico e multilinguístico estão em um mesmo lugar ao mesmo tempo. Kalapalo, Kuikuro, Matipu, Nahukua (karib); Wauja, Mehinaku, Yawalapiti (aruak); Kamayurá, Aweti (tupi) celebram através de danças, cantos, oferendas alimentares, trocas matrimoniais, comerciais e discursos rituais proferidos em ocasiões específicas e determinadas.

Tensão e expectativa que emanam emoções coletivas naquele que é o ápice do evento: a luta ritual (kindene), popularmente conhecida como huka-huka. Os confrontos ocorrem entre os anfitriões, aqueles que homenageiam seus entes falecidos, contra os povos convidados, separados entre si. Os combates corporais são intensos, um tipo de luta agarrada em que o vencedor é aquele que toca a parte de trás da perna do adversário ou aplica algum golpe de arremesso. Apesar dessa aparente simplicidade, uma enormidade de golpes, técnicas e táticas são decisivas para o desenvolvimento dos combates, algo que só é conseguido por poucos lutadores dispostos a enfrentarem longos períodos de isolamento e privação, de treinamentos físicos, espirituais, cosmológicos.

Luta ritual popularmente conhecida como huka-huka. Foto: Wikipédia

Os anfitriões se posicionam ao centro da aldeia e os convidados, separados entre si, formam um semicírculo no entorno do pátio aguardando o começo das refregas. Devido à importância do olhar, do ser visto e apresentado, que compreende diversas etapas do ritual, os primeiros a lutar competem individualmente, uma luta de cada vez. Esses campeões são os potenciais futuros chefes, estão sendo apresentados como “substitutos” dos chefes atuais e dos homenageados falecidos. Encerradas essas primeiras 10-15 lutas, os lutadores “comuns” partem para o enfrentamento, com blocos de mais de 20 lutas acontecendo ao mesmo tempo. Após esse confronto, a dinâmica se repete: lutadores anfitriões ao centro, apresentação dos campeões e novo confronto com o próximo povo convidado.

E, como em toda arte marcial, é fundamental para essa ascese na formação dos grandes campeões a existência de mestres – que no passado foram eles mesmos grandes campeões. Infelizmente, nessa época de intensos ataques sofridos pelas populações indígenas do Brasil, de desmonte institucional dos órgãos competentes para o auxílio dos povos, em meio a uma pandemia que se sabe vitimar mais essas populações vulneráveis às “doenças de branco”. Nesse panorama assustador que assola as mais diferentes regiões e populações indígenas, o Alto Xingu perde dois de seus maiores mestres daquela que, sem dúvida, é uma de suas principais especificidades étnicas. Hekine Kalapalo, tido regionalmente por ser o maior lutador da kindene, faleceu numa noite do mês de julho e Aritana Yawalapiti, reconhecido como “chefe dos chefes”, numa manhã de agosto.

Foto: Reprodução

Hekine era impetuoso, disposto e empolgado, principalmente quando se tratava da luta. Aritana, preparado desde muito novo para ser o grande líder conciliador alto-xinguano, não apenas na relação com os brancos, mas para consolidar o sistema regional interétnico, baseado na calma, generosidade, em suma, no típico comportamento da “vergonha” (ihütsu), era sereno e tranquilo. Apesar dessas diferenças, foram campeões de luta, adversários em suas épocas, que não conheceram derrotas na carreira – o empate é o resultado mais comum, embora, são raríssimos os casos de invencibilidade como o de ambos. Mais que isso, transformaram as inimizades entre povos de outrora em competições esportivas. Principalmente a luta, modalidade que, em conjunto com as trocas matrimoniais, consolidou a pacificação das relações, instaurando o convívio regional marcado pela variedade étnica e linguística, cujos combates rituais eram o idioma comum, a língua franca – não por acaso, um dos símbolos dos lutadores campeões é o pássaro xexéu empalhado amarrado na parte de trás do cinto, pássaro este símbolo da comunicação multilinguística.

 

Foto: Reprodução

Nesse momento em que o luto, o silêncio e a tristeza tomam conta das aldeias e nem mesmo os rituais do kwarup podem ser realizados, sendo adiados como medida de isolamento para conter o corona-vírus, uma notícia como essa impacta decisivamente, ainda mais por não serem os primeiros casos. Pior ainda, esvanecem conhecimentos e tradições. Aritana, um dos últimos falantes da língua yawalapiti, fez de tudo para conter o avanço da covid-19 em seu território e, embora tenha sido um guerreiro a acumular vitórias em nome dos povos indígenas de todo o Brasil, ao lado de figuras como Raoni Metuktire e Davi Kopenawa, não suportou longo período de intubação em hospital. Era um poliglota, não apenas em idiomas indígenas. Conhecedor da história de seu povo e suas tradições, era um dos últimos grandes chefes Yawalapiti, povo que sofreu devastações até se estabelecerem no Alto Xingu. Toda preparação para assumir tal liderança, herdada de seus pais e avós e construída durante uma vida de imposições e privações, gerou um acúmulo de conhecimento, do qual fazem parte discursos rituais, cosmológicos, técnicos, enfim, algo extremamente complexo e difícil de ser substituído, para além da figura humana ímpar – tão destacada nos inúmeros obituários daqueles que o conheceram de perto.[1]

Quando alguém como Hekine se vai, novamente, não se perde apenas um grande ser humano, uma figura caricatural, no melhor sentido que a expressão poderia assumir. Um senhor imponente, que na aldeia evitava ao máximo usar roupas de caraíba, falava alto e incisivo, contrastando com o tipo ideal calmo e resiliente alto-xinguano. Esse seu diferencial era exatamente por conta daquilo que não se repõe: seu conhecimento, sua experiência, sua capacidade de transmitir aos mais novos tudo aquilo que viveu e aprendeu ao longo de uma existência dedicada ao seu povo e modo de vida. Hekine era uma enciclopédia, o verdadeiro kindoto, isto é, um “dono de luta”, um campeão, um mestre sempre disposto a ensinar os mais jovens. Sua generosidade em passar os conhecimentos técnicos, golpes e táticas da luta não exigia contrapartida. Uma roda de homens para fumar no centro da aldeia já bastava para que ele chamasse os atuais lutadores e demonstrasse as aplicações dos golpes mais decisivos. Costumeiramente, rodava todos os lutadores apresentando movimentos que pareciam não se esgotar. Cansavam os jovens que se revezavam, o que parecia apenas recuperar o fôlego e disposição para continuar a demonstração. Não sem a admiração incontida dos que estavam presentes: “Mestre!”.

Luta entre os campeões. Foto: Carlos Eduardo Costa

Em meio a ataques que parecem efetivar o desejo manifesto do atual governo de destruição dos modos de vida tradicionais, do “ódio aos povos indígenas”,[2] de vetar acesso a água potável, atendimento de saúde diferenciado e mesmo cestas básicas para as populações indígenas.[3] Na valência de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) na Amazônia, que viu o desmatamento e as queimadas aumentarem em níveis ainda não registrados.[4] Na manutenção de trabalho escravo e sem as menores condições sanitárias mesmo em tempos de pandemia.[5] Na tentativa absurda da recriação de um “gueto de Varsóvia”, proibindo a população indígena de adentrar na cidade mais próxima.[6] Na boiada que vai passando conforme deixa em seu rastro destruição e mortes.[7] No andamento desse genocídio programado, que retira nosso fôlego, a morte de grandes líderes como Hekine e Aritana são perdas difíceis de se mensurar.

Kwarup, celebração em homenagem aos grandes chefes falecidos. Foto: Marcello Casal Jr. – Agência Brasil / Wikipédia

Nesta conjuntura de luta dos povos indígenas, o Alto Xingu está em luto por seus maiores lutadores. Algo como, numa analogia futebolista, que tão bem adentrou ao cotidiano nativo, Pelé e Maradona se fossem no prazo de menos de um mês. Os maiores da história, que viveram em rivalidades, mas em conjunção, em nome do amor e de uma vida dedicada ao desenvolvimento de uma prática esportiva. O que se agrava ao saber que nem mesmo os rituais funerários essenciais para os familiares, momentos em que os jovens lutam em homenagens aos chefes falecidos, deverão ocorrer – o que seria a atitude prudente a ser tomada, muito embora isso deva ser decidido pelas próprias famílias.

Fica, então, aquele que tive como maior ensinamento de Hekine, expandindo sua força nesse momento em que se desenha institucionalmente o genocídio indígena em todo o Brasil. O ensinamento de uma luta que não apenas metaforicamente se transfere para o contexto político, mas na demonstração em sentido próprio do sentimento de permanência do modo de vida indígena: “nhaheni agike, telo bala elei!” (lute forte, eles são outros!).

Etekeha, Mestres! Adeus, Mestres!

 

Notas

[1] Conferir “Obituário: Morreu Aritana Yawalapíti! Silêncio, choro e o luto com o Xingu” e “Aritana Yawalapiti, grande lutador e articulador de mundos“.

[2] “Weintraub: Odeio o termo “povos indígenas”; Quer, quer. Não quer, sai de ré”.

[3] Conferir “Bolsonaro veta obrigação do Governo de garantir acesso à água potável e leitos a indígenas na pandemia” e “Mourão diz que indígenas não precisam de água potável porque ‘se abastecem dos rios’”.

[4] Conferir “Governo decide prorrogar até novembro presença das Forças Armadas na Amazônia Legal” e “Desmatamento na Amazônia aumenta 34% em maio, diz Inpe“.

[5] “Sem máscaras e endividados: 24 indígenas guarani são resgatados de trabalho escravo em fazenda do MS“.

[6] Para combater Covid-19, cidade de Tocantins monta barreira racial contra índios“.

[7]Salles vê “oportunidade” com coronavírus para “passar de boiada” desregulação da proteção ao meio ambiente.


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Como citar

COSTA, Carlos Eduardo. A luta Alto-Xinguana em luto: Etekeha, Mestres!. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 33, 2020.
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