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A macumba virou maldição – Apontamentos sobre ritos religiosos de matriz africana em uma matéria da revista Placar

Durante uma incursão nas páginas da revista Placar[1][2], acessei uma matéria que me chamou a atenção, com o título “A Macumba virou maldição (…) Era trabalho forte demais: o Santa não resistiu” que abordava a derrota do Santa Cruz (PE) para o Bahia (BA)[3] em partida válida pela Taça de Prata[4] do ano de 1981, pela segunda fase da competição e daria acesso às oitavas de final daquele campeonato. O time baiano havia perdido o jogo de ida por 4 x 0, resultado que dava ao time pernambucano a oportunidade de perder por até de 3 gols de diferença, além da vantagem do empate, mas ocorreu uma vitória histórica na partida da volta e o Bahia conseguiu a classificação ao vencer por 5 x 0.

Os contornos deste jogo (volta) contêm ares místicos, segundo parte dos envolvidos. Neste recorte da revista nos é informado que naquela peleja, no vestiário do Santa Cruz havia um despacho feito por Lourinho[5] em favor do Bahia, onde deu tão certo que afetou o clube pernambucano para além daquele resultado, segundo a matéria outros desdobramentos podem ser citados, não somente a eliminação, afirmando que “milhares de sócios abandonaram o clube, a arrecadação mensal caiu e o time ainda não se refez do trauma.[6]

É necessário destacar que a publicação traz a palavra “Macumba” para se referir ao despacho deixado no vestiário do Santa, contudo, na história das religiões de matriz africana não existia uma base em nível nacional do culto com este nome e tão pouco os trabalhos/despachos recebem esta denominação[7]. O termo Macumba foi utilizado para tratar de forma genérica tais religiões, como o Candomblé e a Umbanda, inclusive, em certa medida, de forma pejorativa[8]. A utilização do termo faz parte de um processo complexo da própria História das religiões de matriz africana no Brasil, e por este motivo, quando olharmos o termo Macumba devemos sempre historicizar seu uso, onde, como, porque, por quem, motivações e afins, conforme indica Amorim (2013).

Em minha perspectiva existe de um determinado “receio” quanto as religiões de matrizes africanas, seus símbolos, seus rituais, suas canções etc. elevaram aquele despacho a um patamar de responsável pela vitória do Bahia, ao passo que pessoas envolvidas no episódio como alguns jogadores, dirigentes, técnico do Santa Cruz, juiz da partida e o próprio Lourinho vão relatar os efeitos do trabalho. Este imaginário se reflete nos discursos destes personagens, exemplificarei a seguir.

Dadá Maravilha
Foto: Wikipédia

Hilton Chavez, técnico do time pernambucano, relatou que “a macumba influiu, de fato, no rendimento de alguns jogadores”, já Dario (Dadá Maravilha) narrou, em relação ao trabalho, “encarei tudo aquilo como uma catimba válida e não me senti afetado por ela. Celso Augusto, por exemplo, ficou tão impressionado que desmaiou. Pior de tudo é que no campo ninguém conseguia acertar uma jogada.” Por fim, Carlos Martins Rosa (juiz da partida) afirmou

“pareceu-me que havia forças estranhas impulsionando o Bahia e forças mais estranhas ainda amarrando o Santa Cruz”.

Nestes trechos temos um apontamento sobre a existência, em certo sentido, de um pensamento/crença coletivo/a sobre valor dos despachos, indo ao encontro das afirmativas de Zanatta at. al. (2021) sobre a percepção e efeitos da fé sobre aqueles que creem nas forças metafísicas, inclusive no caso deste jogo, a crença sobre os efeitos do uso de tais forças para o mal. Ademais, podemos incluir neste ponto um aspecto próprio do Ser, ao passo que existem indivíduos que não consideram a vida dissociada ao poder metafísico em suas diversidade expressiva (pluralidade de crenças) conforme indica Oliveira (2016). Para estes indivíduos, o encontro com o desconhecido, representado fisicamente pelo despacho, teve efeito direto na performance esportiva dos atletas do Santa Cruz e em continuidade virando uma “maldição” que afetou o clube como um todo em curto prazo.

Nem todos acreditavam que a derrota se deu pelo despacho, a exemplo o lateral Joãozinho ao narrar sobre o técnico e as táticas adotadas pelo Santa Cruz na partida: “Hilton mandou o time jogar para ganhar e este foi nosso grande erro. De- veríamos ter entrado para empatar” e nesta mesma linha de pensamento, o ex-vice-presidente do Santa, José Nivaldo de Castro, apontou que todos os jogadores daquele elenco tinham Q.I abaixo de zero, excluindo o goleiro. Infiro que estes trechos demonstram a pluralidade de opiniões e crenças num grupo social, no nosso caso um clube de futebol. A medida em que não creem nos efeitos “negativos” do despacho, contra o tricolor de Recife.

A fala de Dadá citada nas linhas anteriores que é parte do jogo, ou seja, estes rituais religiosos são na visão do ex-jogador parte do futebol. Mas por quais motivos são, ainda hoje, pouco conhecidos outros rituais fora das religiões cristãs no futebol? Qual a visão das pessoas ligadas ao futebol quando se deparam com rituais de religiões fora do cristianismo? Quantas comemorações de gols como a de Paulinho, ex-Vasco, em reverência à Oxóssi o leitor e a leitora se lembram[9]?

Paulinho
Foto: reprodução redes sociais

Reconheço que no mundo do futebol é possível percebermos diversos ritos, simpatias, rituais e afins, independente da matriz religiosa e até mesmo fora desta esfera. Todavia, é um vetor inserido no esporte e sua raiz e heterogênea não o contrário. Quando voltamos nossos esforços em ver a história de como é encarado pela impressa os debates religiosos, e adicionando a este o filtro das religiões de matrizes africanas, perceberemos traços de elementos como o medo do desconhecido e por vezes manifestações de um racismo histórico, estrutural, religioso e sociocultural, ou seja, o racismo nas suas mais nefastas faces de modernização pela sobrevivência perversa. Nas falas usadas no texto é notório a diversidade de sentido sobre um mesmo trabalho/despacho. Fato é que não deu certo, pois, no jogo seguinte o Bahia foi eliminado pelo Flamengo, segundo Lourinho neste jogo seu trabalho/despacho “só não deu porque não me deixaram entrar no vestiário deles e nem no campo. Aí quebrou a corrente[10]” e destas mesmas mãos dizem que veio a ajuda para o título brasileiro do Bahia em 1988…

Referências

AMORIM, M. P. Macumba no imaginário brasileiro: a construção de uma palavra. II Simpósio de Pesquisa da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo , São Paulo, 2013.

OLIVEIRA, C. V. D. A Metafísica do Ser: um estudo filosófico para a vida. Saber Humano – Revista Científica da Faculdade Antonio Meneghetti, Rio Grande do Sul, 2016. 291-298.

ZANATTA, C. et al. O PAPEL DA FÉ E CRENÇAS NO SENTIDO DE VIDA. REVISTA RELEGENSTHRÉSKEIA, 2021.

Revista

Revista Placar, 1981, n. 574, p.31-32.

Notas  

[1] Uma das maiores revistas de publicação esportiva do país, com início na década de 70, sendo editada até o presente momento. É uma fonte importante para estudo da história do futebol, base para diversos trabalhos acadêmicos a exemplo a dissertação de Renato Machado Saldanha intitulada “Placar e a produção de uma representação de futebol moderno” e disponível em https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/21358.

[2] A revista está disponível em diversos repositórios como o Google Livros (acesse: https://books.google.com.br/books/about/Placar_Magazine.html?id=L5CwOs59tV8C&redir_esc=y), Ludopédio (acesse: https://ludopedio.org.br/biblioteca-categoria/revistas/) e outros. 

[3] Os gols da partida do jogo de ida podem ser acessados em https://www.youtube.com/watch?v=kqeMTiXN2lw.

[4] Um dos nomes que recebeu o que hoje conhecemos por Campeonato Brasileiro de Futebol.

[5] Torcedor do Bahia que aparece em diversos momentos na história do clube.

[6] Revista Placar, 1981, n. 574, p.31

[7] Existem relatos de cultos de matriz africana que eram conhecidos por Macumba no Rio de Janeiro, mas somente lá, ou seja, uma variação regional específica. Não que isto tire seu mérito e sua resistência histórica, pelo contrário.

[8] Veja vídeo sobre as diferenças em https://www.geledes.org.br/o-que-e-macumba/.

[9] Veja a comemoração de Paulinho em https://globoplay.globo.com/v/9716817/

[10] Revista Placar, 1981, n. 574, p.32

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Danilo da Silva Ramos

Secretário do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer - PPGIEL da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional - EEFFTO da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG desde 2017 e mestrando deste mesmo programa (turma 2020). Concluiu o ensino médio no Colégio Estadual Américo Pimenta (2006). Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Geraldo di Biase - UGB (2011), Membro dos Grupos de Pesquisa: História do Lazer (HISLA), Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade (NEPGRES) e Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).

Como citar

RAMOS, Danilo da Silva. A macumba virou maldição – Apontamentos sobre ritos religiosos de matriz africana em uma matéria da revista Placar. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 15, 2022.
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