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A mitificação de Pelé

Clayton Denis Alino da Silva 10 de março de 2023

Dizem que a aposentadoria dos gramados já é a primeira morte para um jogador de futebol; porém alguns craques conseguem prestígio suficiente para durarem até sua morte física, mas outros se perpetuaram na história e no imaginário coletivo para nunca serem esquecidos.

Um atleta de futebol é lembrado por suas performances, pelos seus títulos conquistados e por suas histórias dentro de campo; alguns se tornam figuras públicas constantemente lembradas, mas ainda há aqueles que são eternizados pela mística que envolve seu nome e seu talento.

Edson Arantes do Nascimento é um nome que qualquer brasileiro entusiasta do futebol conhece, mesmo sem que seu apelido, nome qual é mais famoso, seja colocado em uma frase. Nascido em 1940 e aposentado em 1977, Pelé nunca deixou-se morrer, tornando-se uma figura pública bastante presente na vida da população brasileira, e faz-se sinônimo de excelência, mesmo para aqueles que nunca o viram jogar.

Pelé
Fonte: divulgação

Tricampeão da Copa do Mundo com a seleção canarinho, bicampeão da Copa Libertadores da América e de mundial de clubes por sua única equipe brasileira, o Santos Futebol Clube, Pelé sempre foi exemplo de vitória e admiração pelos seus feitos em campo e pela epopeia de protagonizar as alegrias de uma nação em seu esporte favorito. Pelé é não só o nosso símbolo de vitória, mas também a esperança de que esta vitória viria propriamente por sua causa.

Seu nome sempre foi associado à perfeição e à glória, pela mística que foi adquirida por sua carreira vencedora e que perpetuou seu nome e sua imagem na história e no consciente coletivo nacional.

Enquanto figura pública, Pelé foi ministro dos esportes, fez diversos filmes longas metragens, propaganda publicitária para diversas marcas, comentou partidas de futebol, participou de muitos programas de televisão, gravou discos musicais, foi personagem de desenhos animados, histórias em quadrinhos, jogos de videogame e até mesmo menções internacionais já que sua fama alcançou o mundo todo. Foi também garoto-propaganda brasileiro do governo Médici, durante a ditadura militar.

Édson, figura pública, foi diversas vezes contestado, alguns escândalos abalaram sua vida: o não reconhecimento de uma filha, problemas com um fundo de investimento financeiro em Angola e, principalmente, por ser omisso ao comentar sobre racismo e ditadura militar. Pelé é uma personalidade negra, mas que nunca se vinculou à questão racial no Brasil, chegando em certos momentos a relativizá-la.

Pelé tornou-se símbolo que representava a identidade nacional e popular, a hegemonia e a invencibilidade do país em tempos de glórias esportivas.

A criação de mitos e heróis pelo rádio esportivo, e posteriormente pela imprensa em geral, ajudou a formatar o caráter nacionalista e épico atribuído ao futebol. A seleção brasileira começava a representar a pátria, e o futebol, em geral, era uma robusta manifestação de brasilidade. A união destes dois fenômenos da história brasileira – o futebol, que mobilizava a massa de brasileiros cada vez mais urbanos, e o rádio, que cumpria o papel de levar a essa massa todo tipo de informação e entretenimento, ao vivo e com emoção – gerou enormes possibilidades políticas, como Getúlio, com sua 63 impressionante capacidade de adaptação, não tardou a perceber. (GUTERMAN, 2014, p. 75).

Em uma carreira multi-vencedora e meteórica, Pelé é protagonista de um esporte-mercadoria que fez-se fenômeno cultural no mundo inteiro, que atraía multidões aos estádios e milhões de ouvintes de rádio e de espectadores pela televisão.

A imagem de um jovem negro e pobre que brincava com a bola sem medo frente aos adversários que eram envergonhados pelos dribles admiráveis em jogadas de diversas vezes resultaram em gols transcendeu o imaginário e foi mostrada nas telas de milhões de pessoas enquanto Pelé jogava, mesmo depois de sua aposentadoria e agora mesmo depois de seu falecimento.

Sua glória rompeu o tempo-espaço de suas apresentações, imortalizado nas lembranças e nos vídeos dos seus feitos, tendo seu simples nome, de quatro letras, se tornado uma representação realçada do efetivo e de excelência no imaginário social brasileiro e que perdura até hoje.

Pelé foi alçado à figura de monarca, como “Rei do Futebol” por Nelson Rodrigues quando tinha apensa 17 anos, apelido este que o ajudara em sua ascensão a mito ao incumbir no jogador uma soberania absoluta, seu futebol-arte.

Para ser um mito é necessário que outros creiam em suas façanhas, que seja compartilhado essa construção, que foi reiterado a Pelé graças às mídias e as histórias orais, que não hesitavam em apontá-lo como um jogador fora do normal, extraordinário.

Pelé não foi o primeiro jogador de futebol brasileiro a ter uma fama. Sem a mesma proporção, seu precursor também foi um jovem negro, Leônidas da Silva – o “Diamante Negro” que ganhou popularidade com a invenção do gol de bicicleta e habilidade futebolística. Houve também a outra face da moeda: o goleiro Barbosa, que foi um bode expiatório, covardemente rebaixado ao título de vilão nacional, após tomar um gol em final de Copa do Mundo no Maracanã em 1950.

A consideração de mito de alguns jogadores de futebol devem corresponder aos anseios da sociedade no tempo que viveram, assim, houveram outros jogadores que também tiveram apelidos que os ressaltaram ou os desmereceram, mas nunca houve um outro Pelé – o atleta insuperável;  e cada jogador que desponta como um provável craque é logo comparado ao rei, que ainda não teve um sucessor a alcance, mesmo que Robinho e Neymar, jogadores também revelados pelo Santos Futebol Clube, tenham obtido o apelido de príncipes, mas não conseguiram coroar em campo, ou mesmo fora dele, desempenhos majestosos a nível de corroborar com a titulatura.

Ainda em vida, Pelé se tornaria “Pelé Eterno”, em um documentário de 2004, um título que apontava que sua influência vai além do reinado de qualquer outro rei no mundo, já que não condiciona sua supremacia a um tempo de vida tangível.

A mídia tradicional e, nos últimos anos, também a mídia online sempre foram presentes nesse processo de mitificação da figura de Pelé, que além de introduzir e solidificar o prestígio do atleta, também consagraram o seu legado, além do produto que a imagem/história de Pelé se edificaram para além de uma condição humana.

Para Levi-Strauss (1970), os mitos são capazes de promover compreender a sociedade em que eles se perpetuam. Se o futebol continua enraizado na cultura brasileira, então, na mitificação de Pelé está a expressão da demandas de uma sociedade, dos seus sentimentos fundamentais, suas interpretações e ressonancias da realidade: a de um jovem negro e pobre que encantou uma país escravista e racista através do seu talento e formou uma equipe tão forte que foi campeã mundial três vezes. Um jogador que não só reverteu a estrutura do jogo, mas também da sociedade em que estava inserido.

Pelé é uma figura que representa o Brasil desportivamente e socialmente. Sua morte não é o encerramento da sua história ou da sua importância, tampouco da representação social que endossa. Foi peça fundamental na construção da cultura e identidade da nação, tornou-se um símbolo que representa o Brasil e uma categoria ideal de magnanimidade de um cidadão brasileiro, portanto, seu nome nos convida à diversas reflexões.

Referências

DURKHEIM, Émile. Sociologia e filosofia . Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1970.

GUTERMAN, Marcos. O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país. São Paulo: Contexto, 2010.

LÉVI – STRAUSS, Claude. A estrutura dos Mitos. In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro , 1970

VAZ, Alexandre Fernandez. Pelé (1940-2022): o melhor, o maior. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 31, 2022.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Clayton Alino-Silva

Fanático por jogos e esportes, tradicionais e eletrônicos - Pesquisa performances e rituais em atividades lúdicas como brincadeiras, jogos e torcer. Bacharel e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina e especialista em Antropologia Política pela FLACSO-Argentina. Pesquisador do Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidades (LELuS/UFSCar) desde 2020.

Como citar

SILVA, Clayton Denis Alino da. A mitificação de Pelé. Ludopédio, São Paulo, v. 165, n. 10, 2023.
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