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A (não) realização da Copa do Mundo de 1986 na Colômbia

Eduardo de Souza Gomes 21 de maio de 2023

Atualmente, é de conhecimento geral que a Copa do Mundo de futebol masculino no ano de 1986 ocorreu no México. Foi, naquela ocasião, a segunda vez em que os mexicanos organizaram o principal torneio de futebol organizado historicamente pela FIFA.

O que muitos atualmente não sabem, é que tal torneio não estava destinado para, a priori, ocorrer em terras mexicanas. Pelo contrário: desde 1974, a Colômbia já tinha sido escolhida para ser o país sede da Copa de 1986. Com isso, surge a pergunta: por que então os colombianos não foram os organizadores desse referido certame?

É válido relembrar que a década 1980 é marcante na Colômbia, quando se trata de entender os efeitos do narcotráfico no país. Foi nessa década que se materializou o auge dos principais cartéis, como os de Medellín (liderado por Pablo Escobar) e Cali (sob liderança dos irmãos Rodríguez Orejuela), tendo ambos influenciados em diferentes questões políticas, sociais, econômicas e culturais.

Em 1982, ocorreu a Copa do Mundo na Espanha. E foi nessa competição que os colombianos, paulatinamente, desistiram de sediar o torneio seguinte. Apesar de não ter disputado esse mundial (até então o país só havia jogado uma Copa, em 1962 no Chile), os debates acerca da Colômbia se fizeram presentes em 1982, já que seriam os próximos a sediarem o principal torneio da FIFA.

É verdade que os dirigentes envolvidos com a consolidação da Colômbia enquanto sede da competição, estavam até os “45 do segundo tempo” esperançosos em efetivar o torneio mundial no país. Nas páginas de El Tiempo, aproximadamente dois meses antes da Copa na Espanha, foi destacado parte do otimismo colombiano acerca da organização do mundial em 1986:

A realização do Campeonato Mundial de futebol de 1986 na Colômbia foi assegurada ontem com o aceite do Presidente Julio Cesar Turbay Ayala que seja a empresa privada que o financia. Contando que o governo garantirá a segurança do certame.

Turbay Ayala se reuniu com dirigentes empresários ao meio-dia em Palacio, aos quais lhe explicaram os diferentes sistemas de autofinanciamento que poderiam estabelecer para efetivar um Mundial a baixo custo e que utilizaria o máximo de recursos existentes. […]

Nos diferentes círculos desportivos do país, a notícia despertou grande interesse, pois se antes alguns haviam se mostrado contrários a celebração do Mundial, agora com o concurso da empresa privada as coisas estão em outro preço.

Alfonso Senior, presidente da Federação de Futebol e o “pai do Mundial” declarou que “hoje é o dia mais feliz da minha vida. Eu sabia que a Colômbia não podia se colocar mal perante o mundo inteiro”.

Ao concluir a reunião o presidente do grupo Grancolombiano assinalou que se apresentará durante o tempo que dure o Mundial da Espanha uma campanha de tipo publicitário, que releve o nome da Colômbia, especialmente no campo turístico.[1]

Em 30 de maio de 1982, todavia, Turbay não conseguiu levantar o apoio necessário para que um sucessor de seu partido vencesse as eleições, tendo o conservador Belisário Betencur sido eleito, o que efetivou o retorno de seu partido ao poder executivo nacional depois de oito anos afastado.

Meses depois, em outubro de 1982, Betencur proferiu um discurso onde oficializou a desistência da Colômbia no objetivo de sediar a Copa de 1986. Ainda no decorrer da edição de 1982, já era ventilado dentre os dirigentes das federações, a imprensa e a própria FIFA, que a Colômbia tomaria tal decisão. O periódico brasileiro, Folha de S. Paulo, repercutiu a decisão do presidente do país vizinho em suas páginas:

O presidente da Colômbia informou que o país não organizará a Copa ‘devido ao desrespeito à regra de outro pela qual o Mundial deveria servir à Colômbia e não a Colômbia à multinacional do futebol’ (no caso a Fifa). A decisão foi adotada por razões econômicas, depois de uma consulta democrática sobre a realidade do país, que permitiu concluir que ‘o esbanjamento é imperdoável’. Afirmou Betancur que ‘temos muitas coisas a fazer e não temos sequer tempo de nos ocupar com as extravagâncias da Fifa e de seus membros.’[2]

 
Colômbia 1986
 

Betancur, no referido contexto, destacou a relevância da Colômbia em outras esferas culturais, como na literatura, tendo o país no contexto em voga acabado de vencer um prêmio Nobel de Literatura com Gabriel Garcia Márquez. Também foi destacado na imprensa o quanto a decisão de sediar a Copa não era algo tão aceito pelos colombianos, tal como o quanto as exigências da FIFA eram já visualizadas como absurdas:

Belisário Betancur concluiu seu breve discurso afirmando que Gabriel Garcia Márquez, escritor colombiano recém-premiado com o Prêmio Nobel de Literatura, ‘compensa totalmente o que, eventualmente, possamos perder em prestígio com a renúncia à sede do Mundial de Futebol’. […] A distância entre as exigências da Fifa e as propostas da Colômbia permitiu prever que a próxima Copa não seria na Colômbia. […] vale lembrar que pesquisas de opinião revelaram que cerca de 70 porcento dos colombianos não concordavam com a Copa em seu país por questões econômicas. A Colômbia, no entanto, sente-se “traída” pela Fifa por causa das exigências, que foram consideradas absurdas e até mesmo como “ingerências em assuntos internos da Colômbia”.[3]

A verdade é que, dentro de um parâmetro mais amplo da organização da Copa do Mundo, a FIFA exigiu da Colômbia um maior investimento público, para além daquele que a priori foi destinado por empresas privadas. Como entrou no poder já destinado a questionar alguns dos caminhos outrora estabelecidos pelo governo Turbay, Betancur se negou a ceder aos interesses da entidade maior do futebol internacional, desistindo de sediar a Copa de 1986.

De imediato, os periódicos colombianos e brasileiros, no calor do ano de 1982 quando ocorreu a Copa na Espanha, destacaram a possibilidade do Brasil se tornar a sede da próxima copa. Senior reivindicou até o final que seria uma vergonha a Colômbia não conseguir se manter como sede da Copa de 1986, destacando ser uma oportunidade única para o país sediar o torneio.

Parte da imprensa colombiana, inclusive, destacou a proposta de Senior de estabelecer uma ‘troca’ com a Colômbia, deixando a Copa de 1994 para os colombianos sediarem, enquanto os brasileiros organizariam a de 1986. A questão é que a definição da sede de 1994, que depois seria confirmada para os Estados Unidos, nunca havia sido destinada ao Brasil.

Mesmo assim, os rumores de uma possível sede brasileira no evento ficaram marcados, inclusive na imprensa brasileira:

O Brasil começa a receber apoio como candidato a promover a Copa do Mundo de 1986, depois que o presidente Belisário Betancur anunciou oficialmente a desistência da Colômbia, anteontem à noite, através de uma cadeia de rádio e televisão. A Federação Colombiana de Futebol estará reunida nos próximos dias para elaborar um documento a ser entregue à Fifa, o que poderá acontecer dia 5, em Acapulco (México), quando o presidente da entidade internacional, João Havelange, lá estiver para assistir à inauguração de um campeonato de seleção de juniores em sua homenagem, com a participação de vários países.

As principais manifestações a favor do Brasil partiram do peruano Teófilo Salinas, presidente da Confederação Sul-americana de Futebol; do alemão Hermann Neuberger, vice-presidente da Fifa e presidente da Federação de Futebol da Alemanha Ocidental e do argentino Júlio Grondona, presidente da Associação de Futebol da Argentina. A afirmação de Salinas é categórica: “O Brasil sediará o Mundial de 86, pois já conta com oito votos da América Latina e quase igual número de votos de um total de 21 que integram o Comitê Executivo da Fifa.[4]

 

Portanto, se torna possível identificar que muitos dos problemas sociais, políticos e econômicos pelos quais vivenciava a Colômbia, influenciaram diretamente no fato do país não realizar da Copa de 1986. Em um cenário marcado pelo narcotráfico, inclusive no futebol como já aqui demonstrado, tal situação se fez mais ainda marcante, tendo em vista que o país reconhecia com essa recusa, dentre outros fatores, as questões internas que tinha para resolver.

A verdade é que a organização da Copa do Mundo de 1986 na Colômbia, definida ainda em 1974, tinha tudo para ser uma virada no futebol do país dentro do cenário nacional e internacional. Tal virada até ocorreu, notadamente pela visibilidade que os clubes do país passaram a ter nos anos 1980 e 1990. Mas, obviamente, não se deu pela Copa que o país não realizou, mas sim pelo investimento do narcotráfico em alguns clubes, como foi aqui demonstrado em alguns casos.

Desde 1982, no calor da copa da Espanha, a temática já se aflorava, sendo a violência e o envolvimento político marcas que caracterizaram a realidade do país. No fim, a Colômbia ganhou o direito de realizar um mundial, mas acabou por não efetivá-lo por questões que iam muito além das quatro linhas, como aqui foi demonstrado, deixando explícito para os leigos o quanto o futebol é “muito mais que um jogo”.


[1] El Tiempo, 22 de abril de 2023.

[2] Folha de S. Paulo, 26 de outubro de 1982, p. 28.

[3] Folha de S. Paulo, 26 de outubro de 1982, p. 28.

[4] Folha de S. Paulo, 27 de outubro de 1982, p. 28.

 

Artigo publicado originalmente em História(s) do Sport.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Edu Gomes

Historiador, professor e pesquisador do esporte. Doutor e mestre em História Comparada, com ênfase em História do Esporte, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com período sanduíche na Universidad de Antioquia (UdeA), Colômbia. Graduando em Educação Física (Claretiano). Atua como pesquisador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer (UFRJ). Professor na Educação Superior e Básica. Editor e colunista de esportes do Jornal Toda Palavra (Niterói/RJ), além de atuar como repórter e comentarista da Rádio Esporte Metropolitano. Autor dos livros intitulados "A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) e na Colômbia (1948-1954)" (Ed. Appris, 2019) e "El Dorado: os efeitos do profissionalismo no futebol colombiano (1948-1951)" (Ed. Multifoco, 2014). Organizador da obra "Olhares para a profissionalização do futebol: análises plurais" (Ed. Multifoco, 2015), além de outros trabalhos relacionados à História do Esporte na América Latina.

Como citar

GOMES, Eduardo de Souza. A (não) realização da Copa do Mundo de 1986 na Colômbia. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 22, 2023.
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