77.10

A nova arquibancada

Michele Tainá Macena de Carvalho 23 de novembro de 2015

Desde a reinauguração dos estádios de futebol no Brasil para a Copa do Mundo de Futebol de 2014 que tem sido frequentes as discussões sobre as dificuldades enfrentadas pelos torcedores [1] para acompanhar seu time do coração em campo. Essas questões também me incomodam, mas eu também me pergunto para onde foram os antigos frequentadores que hoje, principalmente por questões financeiras, não conseguem mais ir ao estádio em todos os jogos. Sim, porque aqueles fanáticos torcedores que iam ao estádio em todos os jogos e que hoje compram um ingresso com a mesma quantia de dinheiro que compravam quatro ou cinco, não deixaram de acompanhar o time. Fico me perguntando onde é a nova arquibancada dos torcedores com poder aquisitivo limitado para as arenas.

Pensando nessas questões, me veio a mente uma peça publicitária de operadora de TV que vendia pay per view de futebol. Essa propaganda é particularmente interessante devido ao seu conteúdo, que buscava exaltar o hábito de torcer em casa. A propaganda chamava os torcedores de “sofanáticos” e não se limitava a mostrar as vantagens de se assistir os jogos no conforto de casa, mas atacava a preferência pelo estádio. Logo no início da canção que embala toda a peça, um homem canta “Sem essa de ir para o estádio, nosso orgulho é torcer no sofá”. E a canção segue mostrando muitos dos problemas relatados por frequentadores dos estádios e contrapondo isso com o conforto da casa: “Sem essa de ir pro estádio, nosso orgulho é torcer no sofá. Na nossa casa, não tem perrengue, cabeção na frente ou fila pra comer. Nosso banheiro é cheirosinho, o drinque é geladinho e o replay em HD…Torcedores de sofá nós somos por mais que possam nos criticar. Pausamos, gravamos e vemos de novo, quem fala mal quer o nosso lugar. Avante, torcida gigante! Raça, glória e determinação. Sem mexer o traseiro um instante, solta o grito de ‘É Campeão’!”

Imagem da propaganda “sofanáticos”
Imagem da propaganda “sofanáticos”. Foto: reprodução.

Essa propaganda causa um profundo estranhamento para quem tem um mínimo de convivência com tipo específico de torcedores de futebol. Passei toda a minha adolescência ouvindo torcedores do Atlético-MG ofendendo torcedores do Cruzeiro ao chama-los de “torcedor de sofá” ou “torcedor de controle”, numa tentativa de mostrar que o rival não tinha “torcedores de verdade”. Por outro lado, os cruzeirenses atacavam os atleticanos ao dizer que o único orgulho do rival era a própria torcida. Embora ficasse evidente que um ganhava títulos e o outro não, os atleticanos não se rebaixavam por isso. Pelo contrário, se orgulhavam sempre que alguém de fora reconhecia que a torcida atleticana era especial por lotar estádios mesmo com o time numa fase tão ruim.

Disputa discursiva sobre qual time leva mais torcedores ao estádio são sempre comuns e presentes no cotidiano da torcidas. Vez por outra alguém se vangloria de seu time ter batido recorde de público do estádio ou do campeonato. Por outro lado, também se destaca o subir ou descer na tabela dos clubes que mais vendem pay per view. Essa ambiguidade parece conviver relativamente bem, exceto no campo discursivo. Poucos querem admitir que preferem torcer em casa ao invés de ir ao estádio. A propaganda citada anteriormente causou revolta e notas de repúdio nas redes sociais. As discussões eram acaloradas, sempre opondo aqueles que acreditam que não se pode abrir mão da presença no estádio, com aqueles que justificavam dizendo que nas atuais condições era impossível continuar frequentando tal espaço.

Imagem disponível na página das Torcidas Organizadas Brasil no Facebook. Acesso em 17/11/2015. https://www.facebook.com/Torcidas.Organizadas.Brasil/photos/a.181590298558648.63311.154479007936444/742924942425178/
Imagem disponível na página das Torcidas Organizadas Brasil no Facebook. Foto: reprodução.

Na pesquisa realizada pelo GEFuT nos últimos anos é possível ouvir relatos de torcedores que concordam que o estádio Mineirão se tornou mais confortável e que melhorou a visibilidade do campo, mas isso não minimiza a revolta pelos altos preços dos ingressos, do estacionamento, da alimentação e as diversas proibições a manifestações antes comuns das torcidas organizadas.

BELO HORIZONTE / BRASIL - 15.11.2015 - Cruzeiro x Sport, no Mineirão, em Belo Horizonte-MG, pela 34ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2015 © Fred Magno/Light Press/Cruzeiro
Arquibancada do Mineirão com muitos lugares vazios para a partida entre Cruzeiro e Sport pela 34ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2015. Foto: Fred Magno/Light Press/Cruzeiro.

Além desses fatores, também é importante lembrar que os estádios comportam um número cada vez menor de frequentadores. A importância do espaço nas arquibancadas não é novidade para ninguém. O lugar do torcer, a relação com outros torcedores e com os jogadores, a rivalidade e a possiblidade de se conectar a outros através das canções são alguns dos sentimentos experimentados em campo que explicam muito da mágoa daqueles que não conseguem mais acessar esse lugar. Quem já foi ao estádio torcer pelo seu time sabe que não é fácil ficar no sofá, apesar das muitas vantagens. Mas o torcedor fanático se reinventa. Torcer no estádio, em casa, no sofá do amigo ou no boteco da esquina… não importa! Ficar sem acompanhar o time é que não dá.

Referência Bibliográfica

Ribeiro, L. (7-9 de Setembro de 2015). “Sofanáticos”: o hábito de torcer e a privatização do espaço comum1. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

[1] Não ignoro aqui que existem vários perfis de torcedores e que nem todos consideram a frequência ao estádio algo central na prática do torcer. No entanto, nesse momento discuto principalmente aqueles que tinham esse hábito antes da reforma dos estádios e que hoje encontram dificuldades para continuar assíduos.

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Michele Tainá Macena de Carvalho

Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisadora do Observatório da Justiça Brasileira (OJB) e integrante do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcida (GEFuT).

Como citar

CARVALHO, Michele Tainá Macena de. A nova arquibancada. Ludopédio, São Paulo, v. 77, n. 10, 2015.
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