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A origem do futebol na cidade de São Paulo: de Miller ao The São Paulo Athletic Club

Felicce Fatarelli Fazzolari 31 de janeiro de 2023

Vamos trocar de roupa, rapazes, e mesmo que o tempo esteja inclemente e vocês caírem, tem coisa pior na vida do que um simples tombo na grama, e a vida é mesmo um jogo de futebol. (SCOTT apud MILLS, 2005, p. 15).   

Segundo Antunes (2013, p. 70), a cidade de São Paulo viveu um intenso movimento esportivo entre os últimos anos do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Verificou-se uma sucessão de modismos, por determinadas modalidades importadas da Europa, em geral, de caráter elitista e de inspiração amadora. A modalidade com maior durabilidade foi o futebol, que ultrapassou as barreiras dos elegantes clubes da elite paulista e virou cultura popular.

No Brasil, de modo preciso na cidade de São Paulo, no ano de 1895,  aconteceu a primeira partida de futebol. Paulistano de origem, Charles William Miller, filho de engenheiro ferroviário escocês e de mãe brasileira, de acordo com a F. P. F. (KUSSAREV, 2021, p. 19), “ao retornar da Inglaterra em 1894, após concluir os estudos, trouxe consigo uma bola, um livro de regras, dois jogos de camisas, duas bolas usadas e uma bomba para enchê-las. Nascia assim, o país do Futebol”. No dia 14 de abril de 1895 aconteceu a primeira partida de futebol, sobre a qual se tem notícia, organizada em solo brasileiro. (KUSSAREV, 2021, p. 19).

Charles Miller
Charles Miller em 1893 no St. Mary’s (Southampton F.C.). Foto: Wikipédia

Duarte (2003, p. 215.) registra que no Brasil o futebol chegou por intermédio de marinheiros de navios ingleses, holandeses e franceses que vinham até o nosso país, na segunda metade do século XIX. Eles jogavam em nossas praias, durante as paradas dos seus navios, iam embora e levavam as bolas. (DUARTE, 2003, p. 215). Os brasileiros admiravam o jogo e nem sequer sonhavam que esse seria o nosso esporte nacional, a paixão de todos, chegando aos títulos mundiais[1]. (DUARTE, 2003, p. 215).

Amigos do São Paulo Atlhetic Club, funcionários da The São Paulo Gaz Co., do London Bank e da São Paulo Railway formaram dois times e na várzea do Carmo disputaram a partida. (KUSSAREV, 2021 p. 19). O time da São Paulo Railway venceu o jogo por 4 a 2. “Miller jogou pela equipe vencedora e marcou dois gols”. (TREVISAN, 2019, p. 15). Após o jogo, Miller concedeu um depoimento ao jornalista Thomaz Mazzoni, destacando como foi a primeira partida de futebol no Brasil:

Realizamos o primeiro ensaio em terras brasileiras no ano de 1895, precisamente na Várzea do Carmo, nas proximidades da Rua do Gasômetro e da Rua Santa Rosa. Para isso, reuni um grupo de britânicos da Companhia de Gás, London Bank e São Paulo Railway. É interessante lembrar que essa primeira tentativa foi presenteada por um companheiro de seleção do Condado de Hamphsire, que mais tarde presidiu a Liga de Futebol da Inglaterra.

Logo que nos sentimos mais traquejados, e que o número de praticantes do jogo tinha crescido, convoquei a turma para o primeiro cortejo regulamentar: “The Gaz Work Team”, que era integrado por empregados da companhia, contra “The São Paulo Railway Team”, formado por funcionários dessa ferrovia. Foi em 14 de abril de 1895. Ao chegar ao capinzal, a primeira tarefa que realizamos foi enxotar os bois da Cia. Viação Paulista, que tosavam a relva pacificamente. Logo depois iniciamos nosso jogo, que transcorreu de forma interessante, sendo que alguns dos companheiros jogaram mesmo de calças compridas, por falta de uniforme adequado. Venceram os da São Paulo Railway por 4 a 2, entre os quais eu me encontrava.

Quando deixamos o campo já havíamos assumido o compromisso de promovermos um segundo jogo. A exclamação geral dos que tinham disputado esse jogo histórico, entre eles Willian Snape, Wood, Sparks, Taylor e seus dois filhos, Blacklock, Crewe, Bley, Carter e outros, foi esta: “Que ótimo esporte, que joguinho bom.” (MILLS; MILLER apud CUNHA, 2005, p. 73-74).

É provável que os jogadores de cada uma das equipes integradas por funcionários da Gas Company e da São Paulo Railway não tivessem chuteiras nem uniformes apropriados, artigos ainda inexistentes no Brasil. (ANTUNES, 2013, p. 78).

O primeiro campo de futebol da cidade de São Paulo foi instalado na Chácara Dulley, no Bom Retiro, para os treinos do SPAC, onde já se praticava o críquete. (MILLS apud ANTUNES, 2013, p. 78).

Na década de 1880 as atividades esportivas dos funcionários da São Paulo Railway e outros britânicos que chegavam à Companhia de Gás, Bancos, Telégrafos e outras empresas, foram transferidas para a Chácara da Família Dulley. Charles Dulley[2], de nacionalidade americana, tinha se estabelecido na província de São Paulo, e casou-se com Ana Fox, da numerosa Família Fox. Ofereceram sua chácara no Bom Retiro para as primeiras atividades esportivas dos britânicos, assim tornando-se o berço dos esportes paulistas. (MILLS, 2005, p. 7).

Miller encontrou uma São Paulo com imigrantes europeus e negros libertos pela recente Abolição, empregados em diversas fábricas. O café e a sua exportação trouxeram para a cidade ricos fazendeiros para tramitarem a venda de suas safras. Chácaras tornaram-se loteamentos, bondes cruzavam a cidade e, rapidamente, antigos casarões tornaram-se cortiços. Assim, pouco a pouco, os esportes ganharam admiradores, que logo se tornaram adeptos de diferentes modalidades esportivas:

Lá pelos lados da Luz, do Bom Retiro, um grupo de ingleses, maníacos como eles só, punha-se, de vez em quando, a dar pontapés em algo parecido com a bexiga de boi, dando-lhe grande satisfação e pesar quando essa espécie de bexiga amarelada entrava por um retângulo formado de paus. (Carta enviada de São Paulo para o Rio, a 16 de agosto de 1896, pelo jornalista Celso de Araújo ao jornalista Alcino GUANABARA apud SILVA, 2017, p. 12).

Nos úlitmos anos do século XIX, o futebol chamava a atenção da juventude paulistana, que logo substituiria os pedais das bicicletas[3] pela bola e pelo gramado. De acordo com Sevcenko:

é preciso considerar simultaneamente o poderoso atrativo exercido pelos esportes sobre as várias comunidades, para se poder avaliar a magnitude do seu impacto cultural. Independente do que as autoridades públicas ou desportivas pensassem ou pretendessem a partir dele, a prática ou mesmo a contemplação do esporte traziam uma gratificação instantânea para seus aficcionados. (SEVCENKO, 1992, p. 48).

O desenvolvimento da vida esportiva e econômica paulistana teve contribuição de diversas famílias, entre elas, a família Prado. Segundo Mills (2005, p. 48), os Prado, comandados por Dona Veridiana Prado, exerceram grande influência na construção de ferrovias, na fundação de bancos e empresas, e principalmente na criação de praças esportivas. Também se revelaram fundamentais na obtenção de terreno na Consolação onde hoje está situado o Clube Atlético São Paulo, o SPAC A cidade, portanto, teve patronos precoces na introdução dos esportes modernos, representados, por exemplo, pela comunidade inglesa – intimamente envolvida com os vários aspectos financeiros, econômicos e tecnológicos da metropolização da cidade – e por figuras demiúrgicas como o conselheiro Antonio Prado[4]. (SEVCENKO, 1992, p. 52).

Segundo Cunha (2019, p. 9), a primeira notícia escrita e publicada de um jogo de futebol no Brasil aconteceu em 10 de julho de 1898 em uma nota no jornal Correio Paulista, na página 2, na “Secção Sportiva”, categoria “Athletismo”, que discorreu:

S. Paulo Athletic Club

Hoje ás 4 horas da tarde effectua-se na chácara Dulley, uma interessante partida de foot-ball entre os sócios do S. Paulo Athletic Club e os socios do São Paulo Railway Association. Gratos pelo amável convite que nos foi dirigido. (CUNHA, 2019, p. 9).

Seis anos após a primeira partida de futebol no Brasil, Miller criou a Liga Paulista de Futebol, precursora da atual FPF, e em 1902 aconteceu o primeiro campeonato oficial. (TREVISAN, 2019, p. 15).

Depois da primeira partida de futebol, diversos clubes foram fundados na cidade de São Paulo, os quais foram criados também para a prática de outros esportes, caso do São Paulo Athletic Club, adaptando-se aos poucos à prática do futebol. O esporte, que em seu início era praticado pelas elites da cidade de São Paulo, aos poucos espalhou-se para as demais classes sociais.

Em 13 de maio de 1888, depois de algumas conversas em uma mesa de bar, na rua São Bento, engenheiros britânicos que trabalhavam na primeira estrada de ferro paulista, a São Paulo Railway, inicia a história do São Paulo Athletic Club. Segundo Silva (2017, p. 11), a ideia de fundar um clube social e esportivo nasceu de Willian Fox Rule, Charles Wlker, Willian Speers, Percy Lupton, Willian Snap e Peter Miller, onde poderiam disputar o seu jogo predileto, o cricket, bem como compartilhar horas de lazer com suas famílias.

Dona Veridiana
Chácara Dª Veridiana. Fonte: Wikipédia/José Rosael/Hélio Nobre/Museu Paulista da USP

Dona Veridiana Prado era conhecida dos primos Charles Miller e Willian Fox Rule, desde o tempo em que os dois estudaram em Southampton. Dona Veridiana pediu ajuda dos nobres senhores para resolver uma questão familiar que envolvia seu filho, Eduardo Prado. Com a resolução do problema, Dona Veridiana queria recompensar os primos Rule e Miller pelo apoio ofertado. Eles recusaram a recompensa, porém, perguntaram à boa senhora se ela estaria disposta a vender o terreno na Consolação, que o São Paulo Athletic Club tinha arrendado em 1899, e no qual a sede e campos esportivos estavam instalados. (MILLS, 2015, p. 78).

As duas equipes que disputaram a primeira partida de futebol no Brasil, em um terreno da Companhia Viação Paulista, na Várzea do Carmo, Bom Retiro, eram formadas por associados do SPAC, entre eles, Charles Miller, o seu sócio mais ilustre. Em 1899, com o futebol difundido na cidade, o SPAC disputou três jogos amistosos[5] contra os clubes Hans Nobiling Quadro e a Associação Athletica Mackenzie College, sendo vencedor em todas as partidas.

A vida do SPAC em competições oficiais foi curta e durou apenas 11 anos (de 1902 a 1912), disputando a Liga Paulista de Foot-ball. Conquistou-a quatro vezes, sendo o primeiro tri-campeão do torneio (1902, 1903 e 1904). O último título só aconteceu em 1911. Foram nove partidas disputadas, com sete vitórias, um empate e uma derrota. (SILVA, 2017, p. 14).

Notas

[1] Duarte (2003) afirma que o futebol começou a ser jogado em Jundiaí, por funcionários da São Paulo Railway, em 1882, e no Rio de Janeiro, por funcionários da Estrada de Ferro Leopoldina, no mesmo ano. Acontece que essas estradas de ferro foram construídas por ingleses, que adoravam o seu esporte e tratavam de praticá-lo longe da pátria. (DUARTE, 2003, p. 215).

[2] Charles D. Dulley, engenheiro americano que chefiou a construção da ferrovia entre São Paulo e Rio, aberta em 1877.

[3] Dos esportes introduzidos desde o final do século XIX, o ciclismo foi um dos esportes que mais empolgaram a juventude paulistana, praticados por rapazes de famílias abastadas que haviam estudado na Europa. (ANTUNES, 2013, p. 74-75).

[4] O conselheiro Antônio Prado foi pioneiro na criação de um velódromo na cidade, em terrenos de sua propriedade.

[5] Os resultados dos jogos foram: 3 x 0 Mackenzie, em 12 de março de 1889; depois em 29 de junho, 1 x 0 Hans Nobiling Quadro; e 4 x 1 Hans Nobiling Quadro. O terceiro destas pelejas com data desconhecida. (SILVA, 2017, p. 13).

Referências

ANTUNES, Fatima Martin Rodrigues Ferreira. São Paulo: das tribos indígenas às tribos urbanas/coordenação Ana Maria de A. Camargo. São Paulo: CIEE, 2013.

CUNHA, Moisés. Os primeiros jogos de futebol brasileiro – de 1895 a 1902 – 3º edição. Campinas, 2019.

CUNHA, Moisés. Jornal A Província de São Paulo. p. 59, 2019

DUARTE, Orlando. Histórias dos esportes / Orlando Duarte. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003

KUSSAREV, R. 125 anos de história: A enciclopédia do futebol Paulista. São Paulo: Campo de Ação, 2021

MILLS, John. Charles Miller: O pai do futebol brasileiro. São Paulo: Panda Books, 2005.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SILVA, Sidney Barbosa. Clubes do Futebol Paulista 1888-1909. Itapevi: SP, 2017.

TREVISAN, Márcio. A história do futebol para quem tem pressa. Rio de Janeiro: Valentina, 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Felicce Fatarelli Fazzolari

Graduado em História pela Universidade Guarulhos (2003), Graduado em Filosofia pela Universidade Camilo Castelo Branco (2007), Graduado em Pedagogia pela FALC (Faculdade Aldeia de Carapicuíba), Especialista em Sociologia pela Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores do Estado de São Paulo Paulo Renato Costa Souza (2012), e Mestre pela Univesidade Presbiteriana Mackenzie no Centro de Educação, Filosofia e Teologia, no Programa de Educação, Arte e História da Cultura, com o tema: O FUTEBOL PAULISTANO COMO PRÁTICA CULTURAL: Um estudo sobre a violência no futebol paulistano e a sua convergência para a rede social Instagram. Sou Professor de História, Filosofia, Sociologia, disciplinas Eletivas, Tecnológicas e Projeto de Vida, para os ensinos Fundamental, Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA) da rede pública e particular de São Paulo. Tive experiência como Professor-Coordenador do Ensino Fundamental e Médio da Rede Estadual de São Paulo. Pai do Giuseppe, esposo da Patricia e amante de futebol e Rock'n roll.

Como citar

FAZZOLARI, Felicce Fatarelli. A origem do futebol na cidade de São Paulo: de Miller ao The São Paulo Athletic Club. Ludopédio, São Paulo, v. 163, n. 28, 2023.
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