140.58

A pandemia do racismo e o futebol

Marcel Diego Tonini 27 de fevereiro de 2021

Embora ela tenha começado no ano anterior, 2020 está e estará sempre marcado pela pandemia do Covid-19. Até este momento, foram mais de 113 milhões de casos e 2,5 milhões de óbitos em todo o mundo, dos quais mais de 10 milhões de infectados e 250 mil falecidos somente no Brasil, o que nos coloca em terceiro lugar deste pódio mundial criminoso da incompetência no combate ao novo coronavírus. Não bastasse o luto pelos milhares de mortos, há ainda a luta pela vida, seja para os infectados curados nessa crise sanitária, seja para os impactados pela crise econômica que se sucedeu e se alastrou por todos os setores, com inúmeras empresas fechadas, desempregados e famílias sem renda.

Capa do jornal The Washington Post, em abril de 2020, com destaque para foto aérea de mais de cem covas abertas em cemitério de São Paulo e com legenda crítica ao menosprezo do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do Covid-19. Foto: Reprodução.

O futebol, como se sabe, não escapou dessa avalanche. Os maiores campeonatos estaduais do Brasil, praticados por homens, foram interrompidos em março e retomados, indevidamente, em julho do ano passado. Meses sem futebol somado à proibição de torcedores nos estádios abalaram as fontes de receita dos pobres e mal geridos clubes brasileiros. Salários foram atrasados, jogadores negociados e empréstimos contraídos para tentar tapar os buracos. Nada, porém, capaz de diminuir a escalada vertiginosa das dívidas já antes milionárias.

Se jogos com torcida única anunciavam a morte de um futebol que um dia foi popular e encheu estádios para além do que devia, partidas sem torcedores tiraram a graça do esporte nacional e a alma até mesmo das arenas fabricadas. Ao menos, poderia imaginar o progressista, mas ingênuo amante ludopédico, não teríamos casos de racismo com as arquibancadas (ou as cadeiras) vazias. Ledo engano daqueles que ainda acham que o fenômeno se resume a insultos raciais e que parte única e exclusivamente de torcedores “apaixonados” em direção a corpos negros adversários nos gramados.

Convém reforçar, de antemão, que essa camada do racismo no futebol é apenas a ponta do iceberg, a porção mais gritante dele, na maioria das vezes literalmente, seja por brados individuais, cânticos coletivos, urros simiescos, faixas estendidas, seja, ainda, por bananas atiradas. Há que se considerar, também, que a presença ou não desses sujeitos nos estádios não impede a ação criminosa deles em outros meios, em especial nas redes virtuais e, supostamente, sociais. Se isso já acontecia antes da pandemia, não seria durante ela que deixaria de existir no.[1]

Além dessa enfermidade epidêmica disseminada em escala mundial, o ano de 2020 está marcado por outro fato de suma importância para os direitos civis, para os movimentos sociais e, claro, para o debate aqui proposto. O genocídio negro, historicamente ignorado pela população branca, pelos meios de comunicação brancos e pelos políticos brancos, ganhou uma proporção mobilizadora internacional com a morte filmada do afro-americano George Floyd pelo policial branco Derek Chauvin, em Minneapolis, Estados Unidos, no dia 25 de maio.

Cabe lembrar as circunstâncias cruéis desse crime: a causa da morte por asfixia, após longos 8 minutos e 46 segundos, com os joelhos do perpetrador no pescoço e nas costas da vítima, e as mãos de Chauvin nos bolsos, por motivo torpe (suposta tentativa de troca de nota falsa de 20 dólares), sem que Floyd tenha resistido à prisão, mesmo após ele dizer que não conseguia respirar e implorar para não fosse morto, e depois de espectadores alertarem e interpelarem o policial devido ao estado físico do acusado.

Tributos a George Floyd ao lado de fora da loja de conveniência Cup Foods, onde ele morreu. Foto: Wikipedia.

Embora o assassinato de George Floyd não tenha sido o primeiro evidentemente, e está longe de ser o último nessas condições infelizmente, gerou revolta social e uma onda de protestos antirracistas contra a violência policial, primeiro no município onde ocorreu, logo depois em vários estados do país e em pouco tempo em inúmeras cidades pelo mundo.[2] A expressão Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português), fruto do movimento homônimo iniciado em 2013 nos Estados Unidos, estampou milhares de cartazes nas sucessivas manifestações, bem como as manchetes de jornais nos mais variados países, tornando-se cada vez mais popular. Outro desdobramento foi a derrubada ou a ressignificação de estátuas e monumentos de personagens associados à escravidão, ao colonialismo e ao racismo.[3]

No Brasil, não foi diferente. Diversos militantes de movimentos sociais e negros saíram às ruas para protestar contra o fato de uma das maiores expressões das desigualdades raciais existentes no país ser a forte concentração dos índices de violência letal na população negra.[4] Algo que ficou imortalizado na versão cantada por Elza Soares em 2002: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Os manifestantes lembraram, em especial, os assassinatos da vereadora Marielle Franco (março de 2018), da menina Ágatha Vitória Sales Félix (setembro de 2019), de David Nascimento dos Santos (abril 2020), do menino João Pedro Mattos Pinto (maio de 2020) e de João Vitor da Rocha (maio de 2020). Com a derrubada de estátuas no exterior, reacendeu o debate e a vigia de monumentos e figuras daqui, tais como: Borba Gato, Fernão Dias, Pedro Álvares Cabral, Joaquim Pereira Marinho, Monteiro Lobato e Monumento às Bandeiras.

Personalidades do universo esportivo aderiram rapidamente ao movimento e passaram a usar a própria imagem e voz populares em prol da luta por justiça e igualdade raciais. No basquete, diversos atletas protestaram nas redes sociais e juntaram-se às manifestações nas ruas ainda durante a pausa esportiva por causa da pandemia do Covid-19.[5] Se entre as mulheres o destaque fica todo para Maya Moore, que interrompeu sua carreira no auge para se dedicar às ações de sua comunidade e à reforma do sistema de justiça norte-americano, entre os homens LeBron James há anos vem se manifestando e atuando dentro e fora das quadras. Ao retornarem para o restante da temporada, os atletas exigiram um apoio institucional da National Basketball Association à causa.

Após o policial branco Rusten Sheskey disparar sete tiros em direção às costas do afro-americano Jacob Blake, diante de seus filhos, na cidade de Kenosha, Estados Unidos, em 23 de agosto, os protestos voltaram a se intensificar. Liderados por atletas do Milwaukee Bucks, vários times anunciaram boicote a jogos dos playoffs da NBA. Equipes da Women’s National Basketball Association, da Major League Soccer, da Major League Baseball e do National Hockey League seguiram o mesmo caminho. Na Nascar, o piloto Bubba Wallace usou camisetas, repintou seu carro e solicitou que a categoria proibisse a entrada de bandeiras confederadas, símbolo racista, nos autódromos.[6]

 

Antes mesmo do início da temporada, em setembro, a National Football League, por meio de seu comissário, Roger Goodell, também se pronunciou sobre o assunto. Após décadas de discussão, a tradicional franquia Washington Redskins mudou de nome e logotipo, uma vez que ambos reforçavam estereótipos racistas contra os nativos americanos.[7] A despeito da grande presença negra, a liga sempre foi reticente à causa antirracista, mas nesse ano de 2020 teve de ser tolerante em relação às inúmeras manifestações de atletas por meio de gestos, mensagens e entrevistas.

Influenciado pelas manifestações antirracistas em esportes americanos, atletas de outras modalidades também protestaram. No tênis, sobressaiu Naomi Osaka, que boicotou a partida semifinal no WTA de Cincinnati e usou sete diferentes máscaras, cada uma com o nome de uma pessoa negra vítima do racismo e da brutalidade policial, até ser campeã do Aberto dos Estados Unidos. Já na Fórmula 1, Lewis Hamilton, único negro da modalidade, também esteve em protestos públicos, assim como deu visibilidade para o movimento ao ajoelhar, usar camisetas e capacetes em homenagem a negros assassinados e levantar a voz em cada corrida de que participava.[8] Mais do que isso, conclamou os demais pilotos a apoiarem o Black Lives Matter e fez duras críticas à entidade por ele estar sozinho e não haver esforços para aumentar a diversidade nesse esporte elitista.

No futebol, também houve adesão. Nas mais variadas ligas do mundo, jogadoras e jogadores escreveram textos em suas redes sociais, ajoelharam-se em campo, mostraram camisas homenageando negros assassinados e pediram justiça, tal como fizeram atletas de outros esportes.[9] O apoio deu-se de forma institucional também, fosse em clubes europeus como Arsenal, Liverpool e Bayern de Munique, fosse em agremiações brasileiras como Corinthians, Náutico e Vasco, fosse, ainda, por entidades como a Premier League, que adotou o Black Lives Matter no lugar do nome dos atletas nas camisas, e a Confederação Brasileira de Futebol, que de modo muito aquém postou em suas redes sociais o próprio logotipo em preto e branco seguido da hashtag Vidas Negras Importam.

 

Essas atitudes, convenhamos, são o mínimo que qualquer instituição com tamanha importância e responsabilidade sociais tem de tomar publicamente. A questão é que elas acham que isso basta para dar uma resposta ao clamor social; que movimentos e ativistas vão se deixar enganar por esse tipo de atitude inócua. A CBF foi incapaz de iniciar o Campeonato Brasileiro de Futebol Masculino 2020 sem fazer uma única ação ou mesmo menção ao movimento. Que dirá esperar dela qualquer ação com o intuito de abalar a estrutura racista do esporte. Pior do que isso, essas instituições utilizam a causa para agregar valor à própria marca e imagem.

Vejamos, nesse sentido, o pronunciamento da FIFA tão logo a temporada europeia 2019/2020 foi retomada e os primeiros protestos políticos feitos nos gramados. Como é notório, na ordem do discurso, a entidade máxima do futebol sempre demonstrou grande preocupação com qualquer aproximação entre essa condição natural humana e o esporte que tanto lhe enriquece, embora seja exatamente isso o que ela mais faça. De acordo com ela, as “circunstâncias trágicas do caso George Floyd” deveriam ser levadas em consideração pelas entidades. Nas palavras de seu próprio presidente, Gianni Infantino, “as recentes demonstrações de jogadores […] merecem aplausos e não punição”. A FIFA aproveitou a nota para lembrar que se coloca “repetidamente como resolutamente contra o racismo e a discriminação de qualquer tipo”, tendo promovido “muitas campanhas antirracismo”.

No entanto, a mensagem principal, a meu ver, está contida na seguinte frase: “A aplicação das Leis do Jogo aprovadas pela IFAB (International Board) é deixada para os organizadores das competições”. Ou seja, ao invés de se valer de seu papel regulador e fazer jus à comunidade que representa, a FIFA, mais uma vez, se eximiu da tarefa e transferiu a responsabilidade do julgamento e das sanções para cada federação filiada. Essa autoisenção ou autodesobrigação em relação ao racismo e demais discriminações já havia sido documentada no último (“novo”) código disciplinar, no qual ela incumbiu os árbitros dessa função.

Feitas estas necessárias considerações, sigamos com a lembrança de fatos que, em conjunto, revelaram a “pandemia” do racismo no mundo, transparecida no esporte e, particularmente, no futebol. Diante das manifestações de tantos jogadores, jornalistas esportivos brancos cobraram publicamente o posicionamento de futebolistas brasileiros negros, sem ter postura igual em relação aos atletas e, sobretudo, dirigentes brancos, autoridades que têm muito mais poder para realmente mudar os rumos esportivos.

Neymar, em especial, foi acusado de não assumir seu papel nessa frente antirracista. As críticas sobre ele aumentaram após ele ser xingado por Álvaro González, colega de profissão, no dia 13 de setembro de 2020 e se assumir negro. Imediatamente, lembraram de uma declaração concedida por ele dez anos antes, quando não se identificara etnicamente da mesma forma.

 

 
 
 
 
 
Ver essa foto no Instagram
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma publicação compartilhada por ene10ta Érre ?? ? neymarjr (@neymarjr)

Foi preciso que intelectuais e ativistas negros, como principalmente o diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho, concedessem entrevistas e escrevessem artigos em jornais para que fosse levado em consideração questões históricas, tais como: branqueamento, ideologia da democracia racial, negritude ou mesmo uma longa trajetória na vida e na carreira de tantos atletas relacionada a estereótipos, introjeção, negação, alienação e naturalização do racismo.

Mesmo sem torcedores nas arquibancadas dos estádios, novos episódios continuaram a ocorrer e envolveram muitos outros atores do universo do futebol com o retorno das competições. No âmbito jornalístico, ainda, houve, por exemplo, tanto comentários escancaradamente racistas, como o de Fabio Benedetti em relação ao jogador Marinho, do Santos, no dia 30 de julho de 2020; quanto a naturalização do uso de termos racistas, algo notável na narração de Haroldo de Souza ao se referir ao atleta Lucas Braga, também do alvinegro praiano, em 3 de fevereiro de 2021. Algo ainda mais grave foi a denúncia do ex-árbitro Márcio Chagas em agosto do ano passado, que disse não ter dúvidas de ter sido demitido da rede de comunicação RBS por seus constantes posicionamentos e não conformismo com os recorrentes insultos racistas sofridos, em especial na Serra Gaúcha, durante trabalho.[10]

Juízes, por sua vez, também protagonizaram atos racistas, como pôde ser visto e ouvido na partida entre Paris Saint Germain e İstanbul Başakşehir, válida pela Liga dos Campeões da Europa, no dia 8 de dezembro, quando o quarto árbitro Sebastian Coltescu identificou o assistente técnico e ex-atleta Pierre Webó com termo racista. Liderados pelo jogador Demba Ba iniciou-se uma discussão e, de modo histórico, ambos os times abandonaram o gramado e se recusaram a voltar com a continuidade daquele profissional em campo. O jogo foi reiniciado no dia seguinte com outros árbitros e manifestações antirracistas institucionais por parte da UEFA.

Entre atletas, além do caso envolvendo Neymar, o qual, aliás, também teve importante participação neste último episódio, tivemos muitos outros. Aquele com maior repercussão na imprensa brasileira ocorreu no dia 20 de dezembro, quando Gerson, do Flamengo, acusou o colombiano Ramires, do Bahia. Este, por sua vez, disse ter sofrido xenofobia por parte de outro jogador flamenguista, Bruno Henrique, o qual também teria sido insultado racialmente. O clube baiano, que há alguns anos vem atuando de maneira elogiável, desta vez preferiu utilizar-se do princípio da presunção da inocência, colocou-se ao lado de seu atleta e, indiretamente, desvalorizou e duvidou da versão dada por Gerson ao final do jogo, a qual, de acordo com a agremiação, deveria ser corroborada por outras provas. Uma velha artimanha de quem se ampara na lei para deslegitimar alguém, ainda mais nesse tocante.

Gerson racismo

Considerando a função de treinador, mais uma vez negros tiveram pouquíssimas oportunidades em clubes da Série A do Campeonato Brasileiro de futebol masculino. Mesmo com a tradicional “dança das cadeiras”, Roger Machado, por exemplo, foi sequer cogitado pelas equipes ou esteve em listas de jornalistas após ser demitido pelo Bahia, no início de setembro, apesar de ser técnico da “nova geração” e de seus times atuarem de maneira “propositiva”, como desejo da maioria dos torcedores.

Um dos episódios mais comoventes de racismo no futebol ocorreu com o garoto de 11 anos Luiz Eduardo Bertoldo Santiago, em 18 de dezembro, na cidade de Caldas Novas. Após a partida, o menino foi registrado chorando copiosamente por ter sido chamado com termos racistas durante todo o jogo pelo treinador do time adversário, Lázaro Caiana de Oliveira, o qual, como é costumeiro, negou veementemente.

Outros técnicos brancos, como Mano Menezes, no referido caso Gerson-Ramires, e Cuca, naquele Lucas Braga-Haroldo de Souza, tiveram atitudes reprováveis. O primeiro acusou o atleta flamenguista de “malandragem” após Gerson ter denunciado o episódio ao árbitro da partida; já o segundo, que também teve áudio captado e vazado, minimizou o acontecimento e não entende enquanto “crime” aquele tipo de fala feita pelo locutor.

Em se tratando de minimização e negação do racismo no futebol, não poderiam faltar os dirigentes. Essa tradicional atitude foi escancarada, mais uma vez e em especial, na entrevista concedida pelo presidente da Federação Francesa de Futebol, Nöel Le Graët, ao se referir ao caso Neymar-Álvaro Gonzáles. Pior do que a conivência, certamente, é a ação racista para manter a branquitude no centro do poder. Lembremo-nos, pois, de dois casos envolvendo dirigentes santistas. Primeiro, Adilson Durante Filho foi afastado de cargo público na Prefeitura do município após ter áudio viralizado na internet por generalização racista entre conselheiros do clube. A exclusão do quadro social do Santos deu-se a pedido dele próprio, não por ação resultante de sindicância interna. Segundo, Márcio Antonio dos Santos Rosas foi denunciado pelo Ministério Público por injúria racial ao se referir a uma funcionária do clube.

Casos como esses mostram como campanhas antirracistas promovidas por federações e clubes nas redes sociais ou mesmo em faixas e camisas lançadas, embora válidas, aparentam um real interesse que, por vezes, soa falso, senão marketeiro. Até porque, convenhamos, um problema social desenvolvido ao longo de séculos não será solucionado com uma simples hashtag, slogan ou banner ao redor dos gramados. É preciso um trabalho muito maior.

Cartaz em protesto antirracista em junho de 2020 na cidade de Londres. Foto: James Eades/Unsplash.

Diante desse panorama, a que conclusões podemos chegar? Que balanço podemos fazer desta temporada pandêmica de 2020, a qual ainda nem terminou mesmo estando em fevereiro de 2021? E, o mais importante, o que pode ser feito a fim de combater o racismo no futebol?

A pandemia do novo coronavírus que começou em fins de 2019 impactou diretamente a vida de todos os seres humanos do mundo há cerca de um ano. Para além dos efeitos dela naquilo que mais importa na sociedade, sentimos suas consequências também no campo da cultura. Campeonatos de futebol, por exemplo, foram interrompidos ou encerrados abruptamente a fim de tentar conter a disseminação do vírus tanto quanto porque era necessário parar a vida para procurarmos entender o que era e como combater essa doença. Essa nova realidade de distanciamento e isolamento social, contudo, não significou o fim de práticas seculares. Pelo contrário, é exatamente pela existência do fenômeno do racismo, por exemplo, que negros e indígenas foram e continuam sendo os mais impactados em termos de saúde, mas também na vida social, econômica e cultural.

O assassinato brutal de George Floyd acabou mobilizando negros, brancos e progressistas em geral em manifestações antirracistas ao redor do mundo. Mais do que clamar por justiça por tantos negros exterminados, protestaram contra a perpetuação de práticas racistas e pelo fim do genocídio negro, exigindo, pois, reformas de todas as instituições (polícia, justiça, educação e assim por diante). Celebridades esportivas foram e são, nesse processo, personagens importantes ao se valerem de todo seu capital para dar visibilidade à causa, encorajando, conclamando e chamando a atenção de todos.

Aos que, ingenuamente, acreditavam que o problema do racismo no esporte e, particularmente, no futebol estava restrito aos torcedores presentes nos estádios, a retomada das competições com portões fechados evidenciou que a situação é muito mais dramática e profunda. Inclusive, começando pelos aficionados, porque a impossibilidade de estar presente em praças esportivas não os incapacita nem os inibe de se expressarem no mundo virtual de modo igualmente racista. Em seguida, porque, conforme pôde ser observado, houve a ocorrência de inúmeros episódios envolvendo os demais atores do universo futebolístico: jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes e jornalistas. Isso é revelador da existência do racismo de modo estrutural (ou sistêmico, como preferem os estadunidenses) nesse esporte e, consequentemente, da ineficácia do combate dessa prática por parte das instituições (in)competentes.

Racismo vírus
Um manifestante em Londres conecta duas das questões que a humanidade enfrenta. Foto: John Cameron/Unsplash.

Chegamos, assim, ao complexo desafio de responder a última pergunta. Em primeiro lugar, é preciso que as entidades (clubes e federações) reconheçam este problema social, o racismo. Em segundo, são necessários a abertura e o encorajamento para que negros se manifestem, independente de suas funções dentro da hierarquia do futebol. Dada a ineficácia no combate ao racismo, em terceiro lugar, é essencial que as instituições se associem a coletivos (ONGs) com histórico de atuação no movimento negro. Esses grupos, em quarto, têm de ter autonomia e independência de atuação para apontar caminhos que nos levem a ações antirracistas.

Duas dessas medidas, acredito, são: 1. Capacitação de ex-atletas negros para cargos em comissões técnicas e de gestão esportiva; e 2. Obrigação de registro de pessoas entrevistadas para cargos vagos, incentivando a adoção de políticas de cotas raciais, tal como acontece na NFL, nos Estados Unidos. Certamente, essas medidas ajudariam a combater o racismo institucional em clubes e federações esportivas, e deveriam ser capitaneadas, no Brasil, pela CBF.

Para além disso, sugeriria que uma entidade independente representasse negros na denúncia, na cobrança pública por mudanças no esporte e em ações na justiça, de modo que eles não sofressem represálias por parte de clubes, federações e empresas, tal como vimos acontecer recentemente com Aranha, Márcio Chagas, Cristóvão Borges, Roger Machado e Ângelo Assumpção. Talvez, nas duas primeiras situações, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol seja a organização mais indicada; e, na terceira, o Instituto Luiz Gama. Fato é que a ação coletiva tem um peso muito maior do que ações individuais, as quais são mais suscetíveis ao tempo e ao desenrolar dos fatos, e tendem a perder força e a cair no esquecimento.

No ano pandêmico de 2020, o racismo mostrou-se um “vírus” – tal qual vimos escrito em cartazes em inúmeras manifestações – disseminado tanto quanto o Covid-19. Se ele não é tão perceptível ou impactante quanto o coronavírus na vida de todos os brancos, também tem resultado em mortes de negros, indígenas e demais minorias étnicas em larga escala. Ele, no entanto, tem ocorrido ao longo dos últimos 500 anos pelo menos e com uma naturalidade assustadora. Sua “vacina”, ao contrário, não será encontrada em laboratórios, muito menos com a mesma velocidade. O esforço para combatê-lo deveria ser de igual modo, mobilizando cientistas, políticos, jornalistas, profissionais diversos, bem como instituições e empresas de todo o mundo. Ao largo dessa utopia, vivemos, particularmente no Brasil, muito mais próximos da distopia. Agarremo-nos, pois, na força mobilizadora, unificadora e transformadora dos protestos antirracistas internacionais, com atuação destacada de torcidas antifascistas no Brasil, e torçamos para que muitos outros esportistas, em especial futebolistas, levantem o punho e a voz.


Notas

[1] Para citar apenas dois exemplos, um de cada, temos o lateral Moisés, do Internacional, sendo alvo de xingamentos racistas pelo perfil Maurício Felipe L durante a transmissão de sua coletiva pela internet, no dia 5 de fevereiro de 2020; e o goleiro Hugo Souza, do Flamengo, na noite de 11 de novembro do ano passado, logo após falhar em um jogo, o que motivou alguns torcedores do próprio time (@SerginSFC, Rodrigo Araújo, @Mcdarlanoficial, Josuener Santos) e do rival Vasco (@vascaodazoera, @OAlmirante, Vitor Guimaraes) a insultarem-no. Sempre que possível, nomear o perpetrador significa retirar do apagamento a pessoa que planejou e executou o crime ao mesmo tempo em que se tira da vítima a culpa pela ação abusiva praticada por outrem.

[2] Apenas para mencionarmos quatro casos recentes nos Estados Unidos, citemos aqueles envolvendo as mortes de: Eric Garner, em 2014; Michael Brown, no mesmo ano; Alton Sterling, em 2016; e Breonna Taylor, em 2020.

[3] Como exemplos, podemos citar: Cristóvão Colombo, Robert Lee, Edward Colston e Leopoldo II.

[4] De acordo com o Atlas da Violência 2020, os negros representaram 75,7% das vítimas de assassinatos em 2018 no Brasil, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 37,8. Na comparação, isso significa que, para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram executados. A análise dos dados do último decênio revela o aprofundamento das desigualdades raciais, com uma grande disparidade de violência experimentada por negros e não negros, a ponto de o Atlas destacar: “Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%.”

[5] Entre tantos atletas da NBA como Giannis Antetokounmpo, Russell Westbrook e Stephen Curry, a brasileira Damiris Dantas também protestou na WNBA.

[6] Com seu pedido atendido pela entidade, houve reação contra a proibição. Além de carreatas e de um avião exibindo uma enorme bandeira confederada e a mensagem “pare de financiar a Nascar”, um nó de forca foi deixado dentro da garagem de Bubba Wallace. Era uma evidente ameaça de morte e uma referência à execução de negros provocada pela Ku Klux Klan, grupo supremacista branco.

[7] Pela mesma razão, outra franquia, desta vez da MLB, que mudará de nome por pressão de grupos antirracistas e de patrocinadores é o Cleveland Indians, fundado em 1915.

[8] O gesto de ficar de joelhos como forma de protesto contra a opressão racial ganhou notoriedade a partir de 2016, quando o quarterback Colin Kaepernick, então jogador dos San Francisco 49ers, o fez durante a execução do hino nacional dos Estados Unidos. Embora tenha inspirado muitos outros atletas, Kaepernick caiu no ostracismo, tornando-se agente livre ao final daquela temporada e sendo boicotado desde então pelas demais franquias da NFL.

[9] Aqui no Brasil, muitos futebolistas manifestaram-se na internet como Gabriel Barbosa, Igor Julião e Talles Magno, e nas ruas como Tchê Tchê. Pelo mundo, brasileiros também protestaram, tais como: Gabriel Jesus, Formiga, Ludmila, Marta, Richarlison, Rodrygo e Vinicius Junior. Entre os estrangeiros, Kylian Mbappé usou as redes sociais para se manifestar, já o compatriota Paul Pogba, o cabelo para desenhar um punho cerrado em apoio ao movimento. Na Alemanha, ganhou repercussão o protesto de Marcus Thuram, filho de Lilian Thuram, campeão mundial com a França em 1998, ao comemorar um gol ajoelhado e de cabeça baixa. Na Inglaterra, Raheem Sterling disse que mais importante do que esse gesto era dar aos negros a oportunidade de serem treinadores e gestores esportivos na vida pós-carreira. Kevin-Prince Boateng, então jogador da Fiorentina, por sua vez, publicou um longo texto na The Players’ Tribune dizendo ser este um momento importante da luta antirracista, encorajando outros atletas negros, lembrando da responsabilidade da imprensa e conclamando o apoio de colegas brancos.

[10] Paulo César de Oliveira, também ex-árbitro e comentarista de arbitragem, foi insultado por torcedor não identificado nas redes (antis)sociais, no dia 16 de setembro.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego. A pandemia do racismo e o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 58, 2021.
Leia também:
  • 178.17

    Onde estão os negros no futebol brasileiro?

    Ana Beatriz Santos da Silva
  • 178.15

    Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol

    Camila Valente de Souza
  • 178.14

    Racismo: Vinícius Jr. e a nova fronteira do preconceito no esporte

    José Paulo Florenzano