A potência do encontro (ou o evento estádio como máquina de atualização da identidade torcedora)
É lugar comum a ideia de uma identidade torcedora permanente, constante, imutável, eterna, que vai acompanhar a pessoa torcedora até a morte. Os hinos dos times reafirmam isso e em conversas informais do cotidiano, vez ou outra, repete-se que uma pessoa pode mudar tudo na sua vida, menos do time. Troca-se de família, cônjuge, posição política, orientação sexual, gênero, cidade, Estado, país, mas o time jamais muda. Há até quem diga que a pessoa que troca de time não inspira confiança e possui caráter duvidoso.
Embora sejam mais raros, há casos de pessoas que alteraram o clube do coração e, obviamente, de maneira nenhuma demonstraram falha de caráter. Contudo, o que pretendo trazer não é sobre a mudança de alvo da paixão torcedora, mas sobre a intensidade torcedora e de um mecanismo de atualização ou reforço da identidade torcedora que varia de acordo com o contexto e situações que a pessoa se envolve.
Especificamente vou considerar aqui o ato de ver jogos no estádio como uma máquina de atualização e reforço da identidade torcedora. Desde já, antecipo que não sou um especialista no assunto e para falar sobre isso vou compartilhar minha experiência pessoal de torcedor. Fiquei um tempo sem frequentar estádios de futebol em função de circunstâncias específicas e da pandemia, mas recentemente tenho retomado essa experiência. Isso gerou reflexões que estão em consonância com uma bibliografia já existente sobre o tema. Bibliografia esta que não vou revisar sistematicamente neste momento, apenas farei um diálogo subjetivo com o artigo “Amor (não) se explica: torcida, topofilia e estádio de futebol” de autoria de Phelipe Caldas.
Como dito, estive um tempo afastado dos estádios de futebol. Por razões pessoais, eu, paulista e corinthiano, morei por quatro anos na região do campo das vertentes em Minas Gerais. O acesso ao estádio era complicado, a televisão aberta transmitia poucos jogos do Corinthians e encontrar outros corinthianos para ver jogos juntos era um tanto trabalhoso. Neste cenário, a saída era acompanhar em casa pela internet ou gastar um bom dinheiro com serviços de pay-per-view.
Não bastasse isso tudo, a pandemia de covid-19 nos colocou diante de uma doença que nos fez enxergar os outros como ameaça sanitária e os encontros como burladas perigosas. Neste cenário, os campeonatos foram suspensos por tempo indeterminado e eu fiquei preocupado demais com a saúde e sobrevivência daqueles que amo para pensar em futebol.
Contudo, aos poucos os jogos foram voltando. Permissões controversas e discussões sem sentido se travaram. Comecei a ver os jogos pela televisão. As transmissões com os estádios vazios era como estar no ensino fundamental e assistir a aula de educação física dos alunos do terceiro ano do ensino médio. Havia entretenimento, mas uma ponta de tristeza.

Assim que tomei todas as doses da vacina prometi que uma das coisas que faria assim que fosse possível era voltar a ver jogos do Corinthians no estádio. Acho que todo mundo fez alguma promessa para o pós-pandemia (que nunca vem), algo como os planos que traçamos no ano novo, mas com uma carga mais existencial e com flertes hedonísticos.
Pois bem, por motivos outros, após as doses da vacina e permissão de público nos jogos, calhou de eu voltar a morar em São Paulo. O que facilitou cumprir a promessa e reencontrar a sensação de torcer junto, torcer sem estar na frente de uma televisão, com desconhecidos, com amigos em no evento estádio de futebol.
Este evento envolve comprar ingresso, pegar transporte público, a cerveja nos arredores do estádio, os cheiros dos churrasquinhos e sanduíches, a decoração criada pelos ambulantes que junto com as camisetas dos outros torcedores pintam com as cores do clube uma região toda da cidade; os sons de anúncios de promoções dos vendedores, das vaias, dos aplausos, dos gritos de gol e xingamentos, cantos, batucadas, análises táticas especializadas por um amigo que você acabou de fazer na arquibancada; os bandeirões das organizadas, o mar de gente saindo rapidamente para pegar o último metrô praguejando no puro suco do ódio por perder uma partida de virada e ainda ter que encarar a volta para casa e o próximo dia útil.
Este acontecimento é como uma máquina, um mecanismo de atualização ou reforço da identidade torcedora. Assim como relações com pessoas podem ser mais fortes ou mais fracas em função da constância, frequência e compartilhamento de experiências em comum, a experiência torcedora também oscila. É possível que não se troque de clube, mas se é mais ou menos torcedor em determinados momentos. Uma das coisas que potencializa, estreita a relação e intensifica a identidade torcedora é o evento estádio, ou melhor, assistir jogos no estádio.
Phelipe Caldas ao analisar a relação dos torcedores do Belo (Botafogo da Paraíba) com o Estádio José Américo de Almeida Filho, carinhosamente chamado pela torcida de Almeidão, mostra “como essa relação não segue nenhuma lógica aparente, nem considera questões práticas, supostamente racionais, como estética, modernidade e facilidades técnicas”. (Carvalho, 2021: 55). Além disso aciona o conceito de “topofilia” de Yi-Fu Tuan, para refletir sobre a relação afetiva que os seres humanos possuem com o meio ambiente material e, no caso, dos torcedores do Belo da Paraíba, com o Almeidão.
Considerando que a cidade não existe anterior às pessoas, mas que é nas relações, memórias, práticas e elaborações dos citadinos que a cidade é construída, é possível pensar em um movimento dialético dos torcedores que inventam um estádio e um estádio que inventa, atualiza e intensifica uma identidade torcedora.
Nesse sentido, Phelipe Caldas afirma
É no ritual de se ir ao estádio semana após semana, jogo após jogo, portanto, que as identidades torcedoras são retroalimentadas. […] É nesse ritual contínuo, insisto, que têm a oportunidade de exercerem essa coletividade em sua amplitude máxima.
É óbvio que o estádio não é o único desses lugares afetivos para o torcedor, mas em regra é aquele de maior potência coletiva. (Carvalho, 2021: 57).

Os torcedores podem ressignificar e dar uma miríade de sentidos para os espaços de encontro e, sobretudo, para o estádio. Nesses processos os lugares e os estádios também criam identidades torcedoras. Mais do que um evento, ir ao estádio se apresenta como um ritual de retroalimentação torcedora, uma vez que o lugar estádio é, por excelência, o lugar afetivo de maior potência coletiva.
Em um raro momento de otimismo nessa quadra miserável da história em que estamos vivendo, é possível pensar que mesmo diante da arenização dos estádios, da propaganda de uma lógica individualizante e personalizada de torcer, ainda nos encontramos no coletivo, no compartilhamento de afetos, pois “não existe estádio sem torcida e não há torcida sem um “ambiente comum, de convergências, que os una em torno de afetos e dramas a serem compartilhados” (Carvalho, 2021: 61). Seguindo nessa dialética, podemos pensar de forma otimista na força dos encontros e na potência criativa e produtiva que eles apresentam.
Referência bibliográfica
Carvalho, P. C. P.. Amor (não) se explica: torcida, topofilia e estádio de futebol. FuLiA / UFMG, 5(2), 52–78, 2021 https://doi.org/10.35699/2526-4494.2020.22131