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A “rambomania” e as arquibancadas

José Paulo Florenzano 24 de fevereiro de 2023

No início de agosto de 1985, os jornais de São Paulo começaram a anunciar o novo filme da série Rambo, estrelado pelo ator Sylvester Stallone. A estreia de Rambo II: a missão, mobilizava uma ampla rede de cinemas espalhados pela metrópole, prometendo ao público muita ação de guerra, entretenimento cinematográfico e propaganda política.[1] Tratava-se, com efeito, da longa jornada de um ex-soldado estadunidense, cuja missão consistia em redimir o país das derrotas e humilhações experimentadas no Terceiro Mundo, a começar pela da guerra do Vietnã. O fato de Sylvester Stallone ter driblado o serviço militar nos Estados Unidos para escapar do conflito na Indochina, preferindo, em vez disso, lecionar em segurança a disciplina de educação física em uma escola particular na pacata Suíça -, parece não ter abalado em nada a sua reputação de justiceiro implacável, herói anticomunista.

O “filme-epígrafe” da era Ronald Reagan, corporificava uma mescla de ideais conservadores, sentimentos xenófobos e valores patrióticos.[2] Não por acaso, o próprio presidente dos Estados Unidos, após a libertação dos reféns do Boeing 727 da TWA, sequestrado em Atenas e desviado para Beirute por militantes xiitas, declarava em tom jocoso aos repórteres que, após ter assistido ao filme Rambo II, compreendera como deveria agir “da próxima vez” que cidadãos estadunidenses caíssem nas mãos dos inimigos.[3] A “rambomania”, porém, ensejava apropriações inesperadas. De fato, no mesmo momento em que o velho ator de Hollywood brincava com a proposta de enviar a personagem ao Oriente Médio em missão de resgate dos prisioneiros estadunidenses, jovens militantes muçulmanos, rechaçando, obviamente, a mensagem político-patriótica veiculada pelo filme, afluíam em peso ao cinema Estral, na rua Hamra, em Beirute, atraídos pela perfomance do ex-soldado que acreditava no poder de sua arma em promover a justiça, destroçando os adversários.[4]  

Com efeito, o sucesso de bilheteria de Rambo contribuía para alavancar a venda de armas nos Estados Unidos, cujo porte por cidadãos comuns era arduamente defendido pelo presidente Ronald Reagan. Automóveis circulavam por uma paisagem social impregnada de um patriotismo renascido, exibindo adesivos com a frase de combate: “Rambo: a nova arma norte-americana”.[5] Nos cinemas do país, à medida que os “agentes do mal” iam sendo abatidos pela violência da personagem central do filme, jovens em transe saltavam das cadeiras, gritando a plenos pulmões: “USA! USA!”[6]

Conforme salientava o crítico de cinema Sérgio Augusto, Rambo se caracterizava como a soma das figuras míticas representadas por Rocky, o lutador, John Wayne, o cowboy, e Super-Homem, o herói de quadrinhos.[7]

Rambo
Fonte: divulgação

Em meados dos anos oitenta, no Brasil, esta mistura tornava a personagem bélica sedutora para as frações das torcidas organizadas mais diretamente envolvidas com a  espiral de violência que explodia dentro e fora dos estádios. Para estas últimas, as questões da vida social, os problemas do time de futebol ou os conflitos com os agrupamentos rivais se resolviam à base da “força bruta”.[8] Não por coincidência, o lema de Rambo II, “nenhum homem, nenhuma lei, nenhuma guerra pode detê-lo” – estampado nos anúncios do filme publicados nos jornais – transfigurar-se-ia pouco depois na divisa das torcidas organizadas, destinada a ecoar até a fatídica Batalha do Pacaembu, ocorrida em meados dos anos noventa: “Sou/Independente (ou Gaviões, Torcida Jovem etc.), eu sou! Vou dar porrada eu vou! Ninguém vai me segurar; nem a PM”.[9]  Encarnação da masculinidade viril, agressiva e violenta com a qual muitos setores das arquibancadas se identificavam, Rambo expressava, nos bíceps de um corpo hipertrofiado, a representação idealizada do combatente das arquibancadas.[10]

A influência da personagem, contudo, não se limitava às torcidas organizadas. Ela se mostrava presente também entre os atletas de futebol, abrangendo os polos opostos de um universo social extremamente heterogêneo e contraditório. De fato, Casagrande, líder político da Democracia Corinthiana, recomendava o filme para os leitores da Folha de S. Paulo,[11]ao mesmo tempo em que Muller, jovem expoente dos Atletas de Cristo, declarava-se “fã dos filmes da série Rambo”.[12]

Símbolo da extrema direita estadunidense, a personagem estrelada por Sylvester Stallone era apropriada pelos radicais muçulmanos, pelos torcedores organizados, e, ainda, pelos políticos populistas, como, por exemplo, Jânio Quadros, que em sua campanha eleitoral para a prefeitura de São Paulo convertia-se, na observação mordaz do filósofo José Arthur Giannotti, em uma espécie de “Rambo”, cuja missão histórica consistia em salvar a cidade da ameaça “comunista”.[13]

A “rambomania” tornara-se onipresente. Mas, no que concerne especificamente ao  campo do futebol, não resta dúvida, ela forneceria material altamente explosivo para a violência nas arquibancadas.


Notas

[1] “Rambo II: a missão” (First Blood, Part 2), roteiro de Sylvester Stallone e James Cameron, direção de George Cosmatos, EUA, 1985, ver por exemplo a edição da Folha de S. Paulo, 6 de agosto de 1985.

[2] “Rambo, o herói da era Reagan”, Pepe Escobar, Folha de S. Paulo, 8 de agosto de 1985.

[3] “Popularidade de Rambo cresce junto com comércio de armas”, Folha de S. Paulo, 15 de setembro de 1985.

[4] Cf. “Rambo, herói anticomunista, é ídolo dos xiitas em Beirute”, Folha de S. Paulo, 6 de agosto de 1985.

[5] Cf. “O polêmico Rambo chega a São Paulo”, O Estado de S. Paulo, 8 de agosto de 1985.

[6] Cf. “O polêmico Rambo chega a São Paulo”, O Estado de S. Paulo, 8 de agosto de 1985.

[7] “O herói Rambo, na vida real, fugiu do Vietnã”, Sérgio Augusto, Folha de S. Paulo, 5 de setembro de 1985.

[8] “Rambo, herói anticomunista, é ídolo dos xiitas em Beirute”, artigo da Reuter, republicado pela Folha de S. Paulo, 6 de agosto de 1985.

[9]Cf. Toledo, Luiz Henrique de. Torcidas Organizadas de Futebol. Campinas, SP. Autores Associados/ANPOCS, 1996, p.65.

[10] Cf. “Um sucesso perigoso e sintomático”, Rubens Evald Filho, O Estado de S. Paulo, 8 de agosto de 1985.

[11] “Casagrande”, Miguel de Almeida, Folha de S. Paulo, 6 de setembro de 1985.

[12] “Müller: o craque do futuro”, José Antonio Ribeiro e Nelson Urt, revista Placar, nº 804, 18 de outubro de 1985.

[13] Cf. “Personalismos na política municipal”, José Arthur Giannotti, Folha de S. Paulo, 29 de setembro de 1985.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A “rambomania” e as arquibancadas. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 26, 2023.
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