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A relação de trabalho no futebol feminino: perspectivas pós Reforma Trabalhista

Luciane de Castro 15 de julho de 2017

Considerado amador, o futebol feminino sempre teve suas relações de trabalho permeadas pelo amadorismo no sentido pejorativo da palavra. Poucos foram e são os clubes que dão às suas atletas a condição de profissional no que diz respeito ao registro em carteira e recolhimento de obrigações como INSS e FGTS, benefícios a que muitas sequer tem ou tiveram conhecimento como direito.

Também são raros os que disponibilizam às suas atletas, estrutura digna da prática em alto rendimento. São vários os que, mesmo com toda boa vontade do mundo, estão aquém do necessário para uma disputa igualitária e interessante em campo.

Comuns são os contratos “de gaveta”, em que garantias mínimas, mesmo que expressas, não são cumpridas e atletas sequer tem uma via do documento para se defender. Comuns são as promessas de salário e estrutura adequada e mais comuns ainda são as atletas frustradas com promessas que nunca iriam ou foram cumpridas.

Apostando na lisura dos gestores ou qualquer coisa que o valha, meninas viajam milhares de quilômetros em busca do sonho da bola, da visibilidade, do reconhecimento pelo esporte que amam e de uma vida melhor. Entregues às promessas, não obstante o desejo de ganhar a vida através do esporte, saem da situação desiludidas, sofrem retaliações e permanecem dentro do ciclo perverso do amadorismo em sua pior concepção.

Este é o cenário de muitos clubes que atuam com o futebol feminino brasileiro. Ainda que tenhamos clubes trabalhando dentro de parâmetros profissionais, de responsabilidade e compromisso com o desenvolvimento da modalidade, é preciso checagem constante das condições das jogadoras em todo território nacional.

Mas como aplicar regras e fiscalização para garantia do cumprimento mínimo das exigências, se à modalidade, mesmo que entendida como “futebol”, se refutam a aplicação das regras?

Há tempos abordamos a questão da profissionalização. Há tempos sublinhamos a necessidade de aparelhamento no que diz respeito à garantia dos direitos. Há atletas que atuaram por mais da metade de suas vidas, que em momento algum, dentro da prática como atleta, teve sua carteira assinada ou recolhimento de INSS e FGTS.

Santos – SP – 13/07/2017 – BRASILEIRÃO CAIXA 2017 – ESPORTES – Jogo 125, Grupo 09 da Série A1 do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino “Brasileirão Caixa 2017”, primeira partida da final entre, Santos F.C. X S.C. Corinthians Paulista/Audax, realizado no estádio da Vila Belmiro em Santos, SP; válido pelo grupo 09 do Brasileirão Feminino 2017 A1. Foto: LEANDRO MARTINS/ALLSPORTS
O que representa essa reforma trabalhista para as jogadoras de futebol? Foto: Leandro Martins/ALLSPORTS.

Essas, como tantas outras, perderam – muito mais do que nós, trabalhadores “comuns”, boa parte de suas vidas profissionais para o descaso e a leviandade.

Se antes da famigerada Reforma Trabalhista a modalidade já sucateava os direitos das atletas como trabalhadoras do futebol, prevejo, para grande parte de equipes, um aprofundamento do abismo nessa relação, claro que em detrimento das atletas.

No sentido contrário – reforma que ataca ferozmente a CLT e expõe o trabalhador ao que bem entender o empresário – o futebol feminino vem se destacando pela presença do público em alguns jogos, pelas competições e suas transmissões e pelo interesse de outros públicos em razão do cansaço com o futebol dominante. Não que estejamos vivendo o boom que tanto desejamos, mas no comparativo direto, demos alguns passos importantes na questão da visibilidade.

Dentro deste cenário de crescimento do interesse do público pelo jogo das mulheres, naturalmente crescerão outras demandas, logo há grandes chances das relações entre clubes e atletas tomarem como base os aspectos próprios do futebol masculino.

A dúvida que me acomete neste momento é: Será o registro em carteira uma praxe? E os direitos de imagem? Terão as mulheres do futebol alguma equiparação aos homens neste sentido? Ou as antigas práticas continuarão vigentes isolando as jogadoras de futebol do mundo das relações trabalhistas reguladas?

Numa perspectiva realista – alguns dirão pessimista, mas o cenário é desolador no que diz respeito à garantia dos direitos da classe trabalhadora brasileira sem contar o amplo campo aberto para qualquer prática empresarial – vejo a maioria das jogadoras de futebol do país ainda mais inseridas e sujeitas às práticas pré celetistas.

Num momento em que o futebol feminino desperta mais interesse, não há como duas situações tão distintas comungarem. Ou os clubes nos surpreendem e adequam as condições de trabalho das jogadoras às demandas que estão surgindo -ignorando solenemente as alterações bizarras que as relações trabalhistas sofreram- ou abuso será pouco perto das várias rasteiras que as atletas já tomaram e continuam tomando.

Se as mudanças que estão em trâmite – e as já sancionadas –  na Câmara e no Senado no que diz respeito à vida de cada brasileiro que não nasceu em berço de ouro não for motivo de preocupação real por parte das atletas, o futuro que vejo é desolador.

Enquanto isso, nas semifinais e final do Brasileiro Feminino A1

O Iranduba levou mais de 25 mil pessoas para a partida da semifinal contra o Santos na Arena Amazonas. Recorde de público para um jogo de futebol feminino em arenas. No jogo de volta, na Vila Belmiro, as Sereias da Vila foram recepcionadas por mais de 7 mil pessoas.

No jogo de ida da final entre Santos x Corinthians/Audax, o público presente na Vila foi de mais ou menos 15 mil pessoas. Há agora uma convocação por parte da torcida corintiana e das próprias atletas para que o público compareça ao jogo derradeiro.

Seria espetacular se não fosse patética, a hora e o dia definido para a finalíssima: quinta-feira, às 16h30. Alguém me explica, como se eu tivesse uns 4 anos, como é que se pretende estimular a presença do público colocando o jogo FINAL num dia e horário tão tosco?

E não é só isso! Por determinação do MP – Ministério Público, torcida única vale também para os jogos de futebol feminino. Repito: não será pelo caminho já trilhado e experimentado que teremos sucesso no desenvolvimento da modalidade.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. A relação de trabalho no futebol feminino: perspectivas pós Reforma Trabalhista. Ludopédio, São Paulo, v. 97, n. 15, 2017.
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