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A repressão começa pela arquibancada

Má interpretação das regras censura a manifestação de torcedores em estádios

Era dia três de outubro deste ano, no acesso da torcida botafoguense no Estádio Nilton Santos para o jogo contra o Bahia pelas oitavas-de-final da Copa Sul-Americana. A proximidade do primeiro turno das eleições majoritárias (presidente, governador e senador) e proporcionais (deputados federais e estaduais) davam ao ambiente, que já era decisivo pela natureza da competição, um ingrediente a mais de tensão. Bandeiras com as cores do Botafogo e números de candidatos estavam espalhadas pelas entradas do Nilton Santos. Adesivos deixavam as estrelas das camisas de torcedores menos solitárias. Enquanto determinados adesivos de candidatos tinham passe livre outros eram impedidos de entrar, uma ação arbitrária dos agentes de segurança.

O Maracanã recebeu um Flamengo x Fluminense no dia 22 março, quando uma bandeira com o rosto de Marielle Franco, vereadora carioca assassinada com seis tiros não muito longe do estádio, foi recolhida pela segurança da arena. O que aconteceu mesmo após sua liberação ter sido concedia pela Polícia Militar do Rio. Pouco antes, em 17 de março, o Mineirão foi palco de uma ação similar. O comando da Polícia Militar mineira no estádio tomou à força uma faixa com os dizeres “#MariellePresente” da torcida Comando Rasta Cruzeiro, organizada responsável por ações na periferia de Belo Horizonte. A ação em homenagem à vereadora, morta três dias antes, talvez tenha sido a primeira a ser censurada nos estádios do Brasil.

Torcida do Cruzeiro exibe faixa em homenagem à vereadora Marielle Franco durante partida pelo campeonato mineiro. Foto: reprodução.

A questão se instaura quando os agentes de segurança dos estádios/policiais militares locais confundem a regra da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) com o Estatuto do Torcedor, e vice e versa, e as interpretam de forma arbitrária e distante do que determina a Constituição Federal.

Do controle à repressão

Desde que torcedores começaram a se organizar em arquibancadas de jogos de futebol, é impossível dissociá-los de algum tipo de manifestação política. Não se trata simplesmente de política partidária, pois o ato de apoiar um grupo escolhido como representante naquela metáfora de batalha sobre o gramado, o jogo em si, é uma atividade política por si só. Cantos de guerra, de amor e de ódio, ostentação de símbolos em bandeiras e camisas só confirmam isso. O cantar e o gosto por estarem todas e todos juntos naquele mesmo lugar denota a combinação do político e o estético nessa ação (DAMO, 2014).

Essas manifestações de uma incompreendida cultura popular, que talvez possa ser chamada de cultura torcedora, trazem em si uma vontade de representação e procura de espaço para se expressar (HOLLANDA, 2012). Seguindo uma movimentação internacional, capitaneada pela Fifa para controlar as ações de torcedores e torcidas nas arquibancadas, foi promulgado em 2003 o Estatuto do Torcedor, que já passou por três alterações desde sua entrada em vigor. Além disso, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) redefiniu algumas de suas regras para 2018/2019, tentando proibir a utilização de termos políticos pelos jogadores. Cabe o destaque para o seguinte trecho, retirado do site oficial da CBF:

Interpretando a Regra

Ao interpretar se um slogan, declaração ou imagem é permissível, deve-se levar em conta a Regra 12 (Faltas e Incorreções), que exige que o árbitro tome medidas contra um jogador que seja culpado de:

  • Usar linguagem e / ou gestos ofensivos, insultantes ou abusivos

Gesticular de maneira provocativa, irrisória ou inflamatória

  • Qualquer slogan, declaração ou imagem que caia em qualquer uma dessas categorias não é permitida.
  • Enquanto ações “religiosas” e “pessoais” são relativamente fáceis de definir, as “políticas” são menos claras. Assim, os slogans, afirmações ou imagens relacionadas ao seguinte, não são permitidas:
  • Qualquer pessoa(s), viva ou morta (a menos que seja parte do nome oficial da competição)
  • Qualquer partido / organização / grupo político local, regional, nacional ou internacional, etc.
  • Qualquer governo local, regional ou nacional ou qualquer um dos seus departamentos, escritórios ou funções
  • Qualquer organização que seja discriminatória
  • Qualquer organização cujos objetivos / ações possam ofender um número notável de pessoas
  • QUALQUER ATO / EVENTO POLÍTICO ESPECÍFICO
  • Ao comemorar um evento nacional ou internacional significativo, as sensibilidades da equipe adversária (incluindo seus apoiadores) e do público em geral devem ser cuidadosamente consideradas.
  • As regras da competição podem conter restrições / limitações adicionais, particularmente em relação ao tamanho, número e posição dos slogans permitidos, declarações e imagens. Recomenda-se que as questões relativas a slogans, declarações ou imagens sejam resolvidas antes de uma partida / competição iniciar.

Grifos nossos, acesso em 17 de novembro de 2018, https://www.cbf.com.br/a-cbf/arbitragem/aplicacao-regra-diretrizes-fifa/modificacoes-das-regras-do-jogo-2018-2019 .

A título de comparação, o Estatuto do Torcedor, por sua vez, traz em seu artigo 13-A:

“Art. 13-A.  São condições de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo, sem prejuízo de outras condições previstas em lei:  (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

I – estar na posse de ingresso válido; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

II – não portar objetos, bebidas ou substâncias proibidas ou suscetíveis de gerar ou possibilitar a prática de atos de violência; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

III – consentir com a revista pessoal de prevenção e segurança; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

IV – não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, inclusive de caráter racista ou xenófobo; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

V – não entoar cânticos discriminatórios, racistas ou xenófobos; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

VI – não arremessar objetos, de qualquer natureza, no interior do recinto esportivo; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

VII – não portar ou utilizar fogos de artifício ou quaisquer outros engenhos pirotécnicos ou produtores de efeitos análogos; (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

VIII – não incitar e não praticar atos de violência no estádio, qualquer que seja a sua natureza; e  (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

IX – não invadir e não incitar a invasão, de qualquer forma, da área restrita aos competidores. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

X – não utilizar bandeiras, inclusive com mastro de bambu ou similares, para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável. (Incluído pela Lei nº 12.663, de 2012).

Parágrafo único.  O não cumprimento das condições estabelecidas neste artigo implicará a impossibilidade de ingresso do torcedor ao recinto esportivo, ou, se for o caso, o seu afastamento imediato do recinto, sem prejuízo de outras sanções administrativas, civis ou penais eventualmente cabíveis. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).

Fica evidente que embora seja dito pelos agentes de segurança – onde observamos repressão – o poder normativo ainda não é tão eficaz no que tange às manifestações políticas em estádios.

Confusão entre agentes na busca por um espaço “seguro”

A apreensão da bandeira em homenagem à vereadora assassinada levada pela torcida do Flamengo mostra falhas de comunicação entre os agentes. Materiais como bandeiras e faixas passaram a necessitar de permissão expressa por parte do Grupamento Especial de Policiamento de Estádio (Gepe), da Polícia Militar, para entrar no Maracanã. A bandeira não pertence a uma torcida organizada específica, mas a um movimento ‘supra-torcida’. Então, foi solicitado à torcida organizada Nação 12 que fizesse o requerimento. O aceite foi dado pelo Gepe para o setor leste, fora da área das organizadas, onde o rosto de Marielle Franco foi exposto com os dizeres “Marielle presente”. No entanto, agentes de segurança do estádio a retiraram antes dos dez minutos do primeiro tempo.

Também nesse dia, a Nação 12 levou uma faixa onde se lia “Nada nos para” em substituição à oficial que estava inacabada. Por julgar que a mensagem incitaria a violência, agentes recolheram o material e o levaram, junto com componentes da Nação 12, para o JECRIM (Juizado Especial Criminal). Antes desse dia, houve também a apreensão de outra faixa. A mesma torcida levara outro pedaço de tecido pedindo a fidelização do programa de sócio-torcedores do clube, quando os agentes se aproximaram e puxaram o material das mãos dos torcedores. A torcida pegou 60 dias de punição por esses atos, ficou proibida de levar bandeiras e banda para os jogos.

Seguindo nessa confusão entre as normatizações, voltamos ao caso citado no Nilton Santos, um agente da segurança do estádio, arrancou o adesivo portado por uma torcedora. Enquanto aqueles de candidatos de outro viés político eram permitidos. Ao ser questionado sobre a ação, o agente argumentou usando de maneira equivocada o Artigo 16 do Estatuto do Torcedor, que supostamente a impediria de assistir ao jogo dessa maneira. A torcedora mostrou que o artigo não oferecia essa orientação, no entanto policiais militares haviam sido acionados e sustentaram a proibição. Sugeriram levar o caso para o JECRIM, que tem plantão durante os jogos, mas desistiram ao perceber que a torcedora em questão era advogada e por isso tinha conhecimento da legislação. Ela entrou com o adesivo embora os policiais tenham apreendido seis outros adesivos, sem alusão a quaisquer candidatos, mas escrito “Marielle Presente”.

Esses são relatos de apenas alguns dos casos que aconteceram pelas arquibancadas de estádios de futebol pelo país. Na verdade, punições aos torcedores cujo comportamento está fora do que se espera, aqueles apontados como transgressores, violentos e infratores se articulam, se somam outras voltadas à uma constante vigilância com suporte da tecnologia. A meta é fazer dos estádios lugares “seguros para o consumo”, o preço a ser pago é justamente a exclusão desses personagens capazes de oferecer perigo. “O espaço não expressa a liberdade ou a expressão, mas condiciona práticas sociais que as determinam”. (CAMPOS, 2014, p. 359).

Além das referências à Marielle Franco, tivemos, por exemplo, as faixas expostas pela Gaviões da Fiel, tradicional torcida corintiana, onde se lia: “Quem vai punir o ladrão de merenda?”, “CBF e Federação Paulista, vergonha do futebol”, “Ingresso mais barato” e outras que são constantemente reprimidas. Isso se deve porque fica a cargo da Polícia Militar/agentes de segurança dos estádios definir o que se enquadra artigo 13-A do Estatuto do Torcedor.

Em partida pela Libertadores, a torcida do Corinthians protesta contra a Globo, CBF e FPF. Na faixa maior, acima das propagandas pede CPI DA MERENDA JÁ. Foto: Fábio Soares/futeboldecampo.net.

E ao observar as torcidas com mais proximidade, é possível notar que, muitas vezes, significados políticos são esvaziados ou embaralhados (TOLEDO, 2012), como por exemplo o rosto de Che Guevara, usado em bandeiras e camisas de diversas torcidas pelo país, como, por exemplo, na torcida Máfia Azul, do Cruzeiro, de Belo Horizonte. Em resposta, a Galoucura, torcida organizada do Atlético Mineiro, clube rival, passou a ostentar o rosto de René Barrientos, ditador boliviano de viés fascista que assassinou Guevara na década de 1960. Nesse momento, não importa os referenciais políticos que cada um dos dois têm.

Ou seja, a despeito da tentativa dos últimos anos de reprimir manifestações políticas, muitas vezes se reprime o que tem fundamento político e que seria totalmente permitido com base no preceito maior da liberdade de expressão e se permitem manifestações que supostamente seriam politizadas mas que já esgotaram todo seu sentido e qualquer paralelo com ideais políticos, sociais e econômicos.

O Brasil, por conta dos grandes eventos que recebeu recentemente, assistiu estádios antigos serem adaptados e novos serem construídos seguindo um modelo de arena. Essa proposta de praça esportiva tem no seu âmago a busca por torcedores que sejam economicamente mais interessantes, com maior poder aquisitivo. E, por conta disso, torna-se inevitável a exclusão de públicos com menor capacidade de compra ou indesejáveis por seu discurso com fundamentação política. A substituição do público, por sua vez, leva às arquibancadas não só um novo comportamento, mais padronizado com o que se entende ser “civilizado”, mas culmina num “esfriamento” do ambiente festivo dos estádios. De lambuja, põe-se para fora também os discursos políticos capazes de criticar essa mesma questão da arenização.

Essa constante exclusão do povo mais vulnerável ou daqueles que propõem manifestações críticas não é novidade e não está restrita aos estádios. Legislações recentes, que não possuem o caráter temporário no que diz respeito às sanções e repressões, como a Lei da Copa, foram promulgadas e desenham uma nova onda de aparatos legais com o intuito de operacionalizar a repressão, o que, no que tange às expressões políticas em estádios pode significar impedimentos maiores.

Atualmente, por exemplo, é permitido que torcedores entrem com adesivos e afins, desde que não se enquadre no exposto no artigo 13-A do Estatuto do Torcedor. No entanto, muitos são barrados quando estão indo assistir o jogo e, como o direito é um sistema de manutenção do status quo, poucos sabem que não podem ser impedidos de assistir os jogos somente por estarem com um adesivo “Marielle Presente”.

Torcedores, principalmente os organizados em agremiações, surgem como “classes perigosas” contemporâneas. São organizações capazes de arregimentar muitos em razão de se apresentarem como representantes de determinado clube, logo, possuem uma certa legitimidade e ressignificam até mesmo o lugar de fala daqueles que entendem que esporte e política não devem se misturar. Afastá-las não só do ambiente asséptico dos estádios, mas também do campo de visão do telespectador tornam-se ações necessárias dentro do atual modelo que busca mostrar o futebol como um simples jogo com 11 jogadores de cada lado.

Parece que se esquecem de que todo ato é político – o jogador Sócrates faz muita falta nesses momentos. Portanto, vale destacar que os que acreditam que silenciar não é um ato político e sim uma mera determinação de espaços e permissões, ou aqueles que enxergam na palavra ideologia um verdadeiro xingamento estão também cometendo atos políticos, por mais que assim não enxerguem.

A ação do Estado, na figura dos agentes de segurança, como repressor das ações desses grupos indesejados busca formatar o torcer, enquadrando entendidos como inofensivos à ordem vigente. Assim como ocorrido na década de 1940, no surgimento do primeiro recorte de torcidas organizada, pelo menos no Rio de Janeiro, como a Charanga Rubro-negra, assim como outras torcidas, com sua proposta “civilizadora” (HOLLANDA, 2012). Só que toda essa ação de repressão não leva em conta a capacidade de articulação e sobrevivência desses grupos. Agrupamentos marginalizados, cujas culturas são minoritárias, mantêm suas memórias, suas histórias, seus pensamentos no subterrâneo, em uma verdadeira subversão no silêncio (POLLAK, 1992), resistindo, mesmo quando isso é impensável.


Referências bibliográficas:

BRASIL. Estatuto de defesa do torcedor e legislação correlata [recurso eletrônico]. – 3. ed. – Brasília : Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2013

CAMPOS,  Flávio de. Arquitetura da exclusão: apontamentos para a inquietação com o corto. In: ______; ALFONSI, Daniela (Org.). Futebol, objeto das Ciências Humanas. 1a. ed. São Paulo: Leya, 2014.

Confederação Brasileira de Futebol. Modificações das regras do jogo 2018/2019. Disponível em: https://www.cbf.com.br/a-cbf/arbitragem/aplicacao-regra-diretrizes-fifa/modificacoes-das-regras-do-jogo-2018-2019 . Acesso em: 17 nov. 2018.

DAMO, Arlei. O espetáculo nas identidades e alteridades: as lutas pelo reconhecimento no espectro do clubismo brasileiro. In: CAMPOS, Flavio de; ALFONSI, Daniela (Org.). Futebol, objeto das Ciências Humanas. 1a. ed. São Paulo: Leya, 2014.

HOLLANDA, Borges Buarque. A festa competitiva: formação e crise das torcidas organizadas entre 1950 e 1980. In: ______ et al, A torcida brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

TOLEDO, Luiz Henrique de. Políticas da corporalidade: socialidade torcedora entre 1990-2010.In: HOLLANDA, Borges Buarque et al, A torcida brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

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Vicente Magno Figueiredo Cardoso

Um jornalista que leva seu bairro de origem, Bangu, do subúrbio carioca para todos os cantos. Além de ser um devotado amante do futebol e do samba. Já andou no universo torcedor de França e Estados Unidos, além do brasileiro.

Como citar

MARTINS, Lorena; CARDOSO, Vicente Magno Figueiredo. A repressão começa pela arquibancada. Ludopédio, São Paulo, v. 113, n. 31, 2018.
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