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A rivalidade fundacional: Argentina x Uruguai dentro e fora de campo

Fabio Perina 10 de outubro de 2021

Mesmo diante das grandes partidas Brasil x Argentina ou Brasil x Uruguai, a história prova que são rivalidades “apenas” futebolísticas. Contudo, a rivalidade entre as cidades de Buenos Aires e Montevidéu remete aos tempos coloniais, portanto antes do futebol e antes mesmo de serem países independentes. Argentina e Brasil se beneficiaram ao longo do século XX com a massificação do futebol diante da maior facilidade em formar bons jogadores em uma grande população para disparassem em vitórias nos confrontos diretos e títulos ao longo dos últimos tempos entre os três países. Ainda assim, as conquistas uruguaias por serem mais raras deixaram uma percepção épica até hoje.

Os vizinhos celestes e albicelestes que compartem o Rio da Prata são como irmãos siameses de tantas semelhanças que os aproximam e ao mesmo tempo os negam. Alguns dos melhores “produtos de exportação”, como o tango, o doce de leite, a erva mate e a carne bovina, são associados aos argentinos. Mas até hoje são disputados pelos uruguaios visando desde os superarem em qualidade a até mesmo um revisionismo histórico que os reconheça como os criadores.

Com o futebol “criollo” não poderia deixar de ser diferente. Ou seja, por serem os países sul-americanos com maiores vínculos comerciais com a Inglaterra no final do século XIX, foram também os de penetração mais rápida do futebol através da intensa migração. Mas rapidamente foram os primeiros a adaptar a forma de jogar mais rígida dos ingleses para inserir as “gambetas” (dribles) e os “amagues” (fintas).

Naquela virada de século o futebol se tornou o principal elemento de contrapor uma identidade local ao cosmopolitismo inglês. A disputa em torno do futebol fez com que nos primeiros anos do século XX a cada confronto entre seleções se alternasse qual cor de camisa era usada. Dos dois países de bandeiras com faixas verticais azul e branco (com listras de diferentes grossuras), foi a Argentina quem ganhou “no grito” o direito de vestir a Albiceleste. E imediatamente o Uruguai adotou a Celeste. E assim continuaram nessa rivalidade centenária.

ANOS 30, 40 e 50

Se nas primeiras décadas daquele século ambos os países dividiam a maioria dos títulos do Campeonato Sul-Americano (hoje conhecido como Copa América), o episódio transcendental dessa rivalidade veio na final da primeira Copa do Mundo. O Uruguai foi escolhido pelo motivo diplomático de país neutro, diante de uma Europa polarizada no período entreguerras. Pelo motivo esportivo de ser atual bicampeão olímpico. E por fim pelo motivo histórico de em 1930 completar os 100 anos de sua independência, quando desde então resistiu a ser reanexado por Brasil ou Argentina.

Tanto é que em homenagem o principal estádio construído para aquela Copa do Mundo foi o Centenário, e inclusive com os setores atrás dos gols chamados Colombes (em Paris) e Amsterdam em homenagem às cidades das medalhas de ouro. Com bola rolando na final, os uruguaios viraram uma partida que perdiam de 2 a 1 para 4 a 2. O fato da decisão ser por uma instância maior do que o de costume incitou a caravana de milhares de argentinos para cruzarem o rio até Montevidéu torcer na partida. Os efeitos colaterais da derrota foi uma curta crise diplomática, com a embaixada uruguaia apedrejada em Buenos Aires.

Além, é claro, de acusações mútuas nos meios de comunicação, seja de motivos imediatos quanto a quem naquela partida jogou com mais violência ou provocou mais, seja de motivos históricos para além de disputas territoriais no século XIX. (Obs: se dentro de campo o clássico platino é considerado o fundador do futebol “criollo”, fora de campo essa sequência de incidentes pode ser pensada como os antecedentes da fundação das barras bravas nos clubes argentinos e uruguaios; e que depois se difundiram por toda a América Latina).

A Copa do Mundo de 1950 implica tratar da ausência da Argentina e da glória do Uruguai. A narrativa épica do Maracanazzo se encaixa perfeitamente: 11 guerreiros envergando a Celeste precisando virar uma partida contra um ótimo “escrete” brasileiro e ainda uma multidão de 200 mil pessoas. Foi então que Obdulio Varela, seu lendário volante e capitão, soltou sua frase mais “obdulista” para a eternidade: “los de afuera son de palo”.

O que poucos sabem que pouco antes do torneio mundial tanto o futebol argentino quanto o uruguaio estiveram por meses paralisado pela maior greve dos jogadores da história do futebol por melhores condições de trabalho. O que também poucos sabem é que o ‘carrasco’ Obdulio foi uma das principais lideranças políticas entre os jogadores. Conhecido como “el Negro Jefe”, foi na cancha um caudilho tal qual Artigas na pampa no século anterior conquistando a independência.

Já sob o lado argentino, uma ironia que uma das suas melhores seleções, reinando absoluta nos Campeonatos Sul-Americanos dos anos 40, ficou sem desfilar seu talento em uma Copa do Mundo. (Vide o uruguaio Eduardo Galeano comentar com uma licença poética que a “Máquina” do River Plate de Labruna, Di Stefano e Pedernera mereceria uma alcunha mais criativa e menos mecânica que combinasse com seu estilo de jogo).

É possível especular que a greve geral dos jogadores teve influência da forte efervescência de mobilização popular em toda a sociedade desde a ascensão do Peronismo, em 1946. Em ambos países a atividade sindical e partidária de esquerda já vinha de longa tradição, vide felizmente terem sido os primeiros países sul-americanos a profissionalizarem os jogadores de futebol, no início dos anos 1930.

Uruguai 1950
Time do Uruguai que enfrentou o Brasil na final da Copa do Mundo de 1950. Foto: Wikipédia

ANOS 70 e 80

Na virada dos anos 70 a 80 os destinos do futebol de Argentina e Uruguai novamente estiveram cruzados pela política quando ambos padeceram de ditaduras militares. É então que apenas dois anos separam dois episódios cruciais desse tema da politização do futebol (Embora seja um termo traiçoeiro pois sugere que antes não havia nada entre futebol e política mas de repente passou a ter tudo a ver!). Se a tentativa de interferência de militares no futebol chegou a sua expressão máxima com a Copa do Mundo de 1978 na Argentina, pouco depois veio o pouco conhecido Mundialito de 1980 no Uruguai.

Tratarei agora do segundo por ser bem menos conhecido. Para isso será preciso deixar de lado o “resultadismo” diante do abismo de importância que cada torneio possui e passar a ver alguns sentidos mais sutis entre futebol e política que estiveram em disputa EM JOGO. Pois foi quando a Celeste também venceu um torneio organizado pelos militares, porém o tiro saiu pela culatra com a enorme soberba dos ditadores: sonhavam com um Mundialito depois do plebiscito para consagrar em campo uma suposta vitória nas urnas.

Porém, nem sequer lhes passou pela cabeça ocorrer algo desfavorável nos dois eventos. No fim das contas perderam primeiro o plebiscito, o marco inicial da lenta abertura democrática, e logo depois foram vaiados no estádio Centenário invadido pelos torcedores ao quebrarem qualquer protocolo. Uma lição profunda que o futebol não pode ser facilmente manipulado pela política como muitos ingênuos ou mal-intencionados pensam.

Embora com um grande paradoxo pelo qual por muito tempo cronistas e jogadores uruguaios comemoraram pouco a conquista, certamente com receio que fosse feita uma associação direta. Como se isso fosse legitimar a ditadura, tal qual uma acusação similar pesava sobre os jogadores argentinos diante do caso recente de 78. Por um capricho do destino a final foi justamente contra o Brasil, alimentando a crença de um futuro melhor ao se reencontrar com o passado 30 anos depois.

“La intención oficialista, en una lectura compartida también por quienes se encontraban en condiciones de presos políticos o proscriptos, era poder exhibir el mundialito como ritual consagratorio de la segura victoria electoral en el plebiscito, con el antecedente de lo ocurrido en Argentina dos años antes. Sin embargo, la imprevisibilidad del juego, la constante mutación de los patrones de interdependencia, resultaron en que el mundialito resultase un gran “tiro por la culata” para la dictadura y una “fiesta compensatoria” para la población uruguaya”. (MANEIRO, 2013)

Mundialito 81
O arqueiro e capitão da seleção do Uruguai, Rodolfo Rodríguez, a erguer a taça do Mundialito. Fonte: Wikipédia

Coincidindo com a mesma época em que Brasil e Argentina mais se enfrentavam em Copas do Mundo (74/78/82/90), foi em 86 que a Argentina finalmente teve a chance de uma pequena revanche contra o Uruguai daquela final de 1930. O olhar a posteriori evidentemente ofuscou o clássico platino nas oitavas justamente porque na fase seguinte das quartas havia uma revanche ainda maior à espera: Argentina contra Inglaterra por conta do contexto da Guerra das Malvinas ser tão recente.

A Argentina vinha bem desacreditada pela classificação agônica nas Eliminatórias com gol apenas nos últimos minutos. Já o Uruguai vinha mais desacreditado do que nunca, com 2 empates e 1 derrota por 6 a 1 para a Dinamarca. Até que conseguiu fazer um clássico equilibrado perdendo de 1 a 0 (gol de Pasculli em jogada truncada). O futebol uruguaio teve na época ótimo desempenho na Libertadores e na Copa América, porém desde então retornou o fracasso na Copa do Mundo ou em suas Eliminatórias e a narrativa do fundo do poço foi ficando mais frequente e dramática.

Ciladas da nostalgia: certamente “se ilusionando” com o sonho de repetir o Maracanazzo de 50 e como se nada aquém servisse! A Celeste, que já vinha das ausências em 1978 e 1982, na Copa do Mundo seguinte de 1990 novamente teve uma má campanha e depois em 1994 e 1998 também esteve ausente. (Detalhe: é possível especular que justamente na pior época dos resultados da seleção celeste, na virada dos anos 80 a 90, foi quando mais lhe tocou fundo a crise identitária, diante da evidência simbólica quando trocou a cor dos calções e das meias do tradicional preto para o novo azul).

Já a Argentina certamente sonhava bem menos por estar vivendo sua melhor realidade futebolística.Uma partida de 86 nesse clássico platino que foi um divisor de águas, já que pelo contrário a Argentina esteve em seu auge, chegando às finais de Copas do Mundo de 86 e 90 e ganhando duas Copa América de 91 e 93.

DE LÁ PARA CÁ

Por fim, depois de 86 o Uruguai ainda teve um gosto especial nessa rivalidade pela Copa América em 87 e 2011 ao eliminar a Argentina em sua própria sede e deslanchar para o título. Em ambos os casos foi ainda mais celebrado por em cada momento ultrapassar o rival no número total de títulos pela competição.

Curiosamente nessas três partidas mais importantes dos últimos 35 anos nenhuma seleção envergou sua cor de uniforme tradicional: a Celeste de branco e a Albiceleste de azul escuro. (O que talvez seja um sintoma de cada país buscar reencontrar sua identidade assim como o próprio futebol nas últimas décadas como um todo). Já nos últimos meses a Argentina com Messi empatou novamente esse pódio ao erguer a taça no Brasil e superando o Uruguai na fase de grupos.

Em partida agônica (como sempre se espera de uma grande rivalidade) por um gol solitário quebrando uma “racha” seguida de vários empates (e dessa vez ambas as equipes platinas novamente com seus uniformes tradicionais). Afinal, mesmo diante de um roteiro por mais modesto que aparente para a visão dos “neutros”, ainda assim todo clássico desata uma série de lembranças épicas de sua profundidade. Agora no presente o clássico platino se reencontrará pelas Eliminatórias no tradicional Monumental de Nuñez.

Ambas as seleções parecem sólidas para confirmarem a classificação sem sustos para a Copa do Mundo no Catar 2022. Já para o futuro, felizmente a aproximação dos dois países poderá ser ainda mais intensa do que já foi em tantos períodos da história caso se confirmem os rumores que dividirão a sede da Copa do Mundo em 2030. Mas infelizmente essa oficialização de sede certamente irá impactar ainda mais o processo de elitização do futebol no continente liderado pela Conmebol e por governos neoliberais.

 

Leituras de Apoio

A rivalidade Argentina-Brasil-Uruguai no futebol

https://globoesporte.globo.com/blogs/latinoamerica-futbol-club/post/2019/06/20/este-ceu-nem-sempre-foi-celeste.ghtml

#MeuRival: Celestes y Blancos

#MeuRival: Ode ao uruguaio

https://globoesporte.globo.com/blogs/meia-encarnada/post/2019/03/12/o-parque-onde-pulsa-a-historia.ghtml

“Foi o Obdulio”

http://globoesporte.globo.com/blogs/especial-blog/latinoamerica-futbol-club/post/o-uruguai-x-brasil-esquecido.html

Blog FP – Uruguai: muito mais que um título futebolístico

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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. A rivalidade fundacional: Argentina x Uruguai dentro e fora de campo. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 16, 2021.
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