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A solidão dos mortos e dos vivos. Futebol, necropolítica e a pandemia, no Brasil

Leda Costa 4 de junho de 2020

O que as pessoas podem fazer para assegurar umas às outras maneiras fáceis e pacíficas de morrer ainda está por ser descoberto. A amizade dos que continuam vivendo e o sentimento dos moribundos de que não causam embaraço aos vivos são certamente um meio. E o constrangimento social, o véu de desconforto que frequentemente cerca a esfera da morte em nossos dias é de pouca ajuda. Talvez devêssemos falar mais aberta e claramente sobre a morte, mesmo que seja deixando de apresentá-la como um mistério. A morte não tem segredos. Não abre portas. É o fim de uma pessoa. O que sobrevive é o que ela ou ele deram às outras pessoas, o que permanece nas memórias alheias (Norbert Elias. A Solidão dos moribundos)

No momento em que escrevo este texto, temos 32. 548 mortos, no Brasil, vitimados pela Covid-19. É muito provável que quando este texto for publicado, aquele número tenha aumentado significativamente. E isso não é uma questão de pessimismo. Temos exemplos concretos do quão perigosa e mortal tem sido essa pandemia. Segundo dados da Universidade Johns Hopkins são mais de 385 mil mortos no mundo e o Brasil, por enquanto, ocupa a quarta posição em quantidade de óbitos. Temos forte potencial para subir nesse ranking, afinal, mesmo sem ter obtido controle da pandemia e que os leitos de UTI venham se tornando escassos a cada hora que passa, ainda assim cogita-se o afrouxamento das medidas de quarentena.

É nesse ambiente de morte e medo que se investe em uma movimentação para o retorno dos jogos de futebol. Foi emblemática a reunião dos dirigentes de Vasco e Flamengo, com o presidente da república, ocorrido dia 19 de maio. Um dos objetivos desse encontro foi traçar planos para a volta dos campeonatos de futebol, ainda no mês de junho. É importante lembrar que naquele 19 de maio, o país registrou 1.179 mortes em apenas 24h, totalizando 17.983 até aquele momento. Como já disse, esse número aumentou.

Rodolfo Landim (Flamengo) e Alexandre Campello (Vasco) encontram o presidente da República para conversar sobre o retorno do futebol brasileiro. Foto: Reprodução.

A atitude dos representantes de dois clubes extremamente populares e que, aliás, contam com o apoio de muitos outros – tem demonstrado que está havendo uma perigosa desconexão entre o futebol e importantes demandas de parte significativa da sociedade brasileira.

A antropóloga Débora Diniz foi ao ponto quando afirmou que os corpos mais vulneráveis à Covid-19 seriam os dos negros, da mulher negra, dos indígenas e dos trabalhadores informais, e todos outros corpos perpassados e fragilizados pela imensa desigualdade social. A primeira vítima de Covid-19, no Rio de Janeiro, foi uma empregada doméstica cujos patrões haviam chegado da Itália contaminados pela doença e sequer a comunicaram desse fato. Ao contrário, a chamaram para seguir trabalhando normalmente em seu apartamento no alto Leblon. O resultado foi a perda de uma vida.

Ficar em casa nem sempre é uma possibilidade. São milhares de pessoas que precisam sair às ruas e se expõem ao risco do contágio diariamente. Muitos são trabalhadores que atuam diretamente no combate à pandemia, como é o caso dos profissionais da saúde. Outros são trabalhadores do comércio e tantas outras atividades que os obrigam a não ter escolha.  

Os clubes de futebol, no Brasil, são compostos por funcionários diversos e não somente atletas milionários que entram em campo. Inúmeros desses funcionários provavelmente estão com medo de perder seus empregos e vários já perderam. O Flamengo, por exemplo, demitiu mais de 60 nos últimos dois meses.

O retorno dos campeonatos implica obrigar diversos trabalhadores – de áreas variadas, como mídia esportiva, pessoas que cuidam dos estádios etc. – a voltarem a frequentar os espaços físicos dos clubes e a circular diariamente pelas cidades, expondo-os ao risco de se contaminarem e contaminarem outras pessoas.

Existem soluções temporárias e solidárias para a minimização de problemas desse tipo. Temos exemplos no Rio de Janeiro de clubes que promovem campanhas para arrecadação de dinheiro visando o pagamento do salário dos funcionários. O Fluminense vendeu ingressos virtuais para o jogo da conquista do tetracampeonato e que passou em TV aberta no domingo dia 31 de maio.

 

A opinião dos jogadores e jogadoras

Em relação aos jogadores e jogadoras, recorro a uma recente pesquisa realizada pela Fenapaf (Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol) e pela SIAFMSP (Sindicato dos Atletas de Futebol do Município de São Paulo). 734 atletas foram perguntados se eram contra ou a favor do retorno dos campeonatos de futebol e o resultado foi.:

GloboEsporte/Reprodução.

Esses dados são bastante interessantes. Notem que na medida em que a pesquisa vai avançando para as séries B, C e D, o número de atletas que são favoráveis ao retorno aumenta consideravelmente como podemos ver no caso da série D e dos estaduais. É justamente nessas séries que se encontram os clubes como menor poder aquisitivo e os atletas financeiramente mais vulneráreis. Muitas dessas instituições têm um curto calendário de competição e sua sobrevivência é mantida a duras penas. Sem jogos, essa manutenção se torna ainda mais difícil.

No caso do futebol feminino, há de se considerar que essa modalidade ainda está em processo de construção no Brasil, apresentando uma estrutura ainda marcada pela precariedade em diversos níveis. Muitas jogadoras devem estar com medo de perder o pouco que possuem. O Atlético Mineiro já anunciou que as categorias de base dos times femininos foram desativadas.

Em relação a série A, é válido mencionar que é equivocado imaginar que todos e todas atletas de futebol ganham milhões de reais. O abismo financeiro tem se agravado nos últimos anos, assim como o endividamento de clubes. É válido lembrar que 55% dos atletas profissionais de futebol recebem em média R$ 1 mil, 33% ganham entre R$ 1.001 a R$ 5.000, ou seja, 88% ganha em média 5 salários mínimo. Esses dados incluem a série A.

O temor da perda de contratos e de empregos parece ser um dos fatores que explica os 68% favoráveis ao retorno do futebol. Esse medo não é exclusivo ao futebol. Instigar esse sentimento nas pessoas é uma das armas usadas por quem defende o retorno às atividades cotidianas. O termo arma tem aqui uma dimensão literal, porque o afrouxamento da quarentena é potencial promotor de mais mortes. Em Blumenau, por exemplo, a reabertura do comércio e dos shoppings fez aumentar 173% dos casos de Covid-19 no mês de abril.

Futebol e necropolítica

Quando dirigentes de futebol pedem pelo retorno das atividades em um momento em que o número de mortos cresce de modo assustador no país, eles estão assumindo um papel de protagonismo da necropolítica que tem sido promovida – ou mesmo diria reforçada – com a pandemia no Brasil.

As inúmeras mortes – que tem atingido sobretudo a população mais vulnerável economicamente – parece que não causam espanto aos dirigentes de alguns clubes. E diria o mesmo em relação a muitos jogadores que poderiam se movimentar contra o retorno, pois financeiramente estão bem assentados.

O futebol tem andado de mãos coladas com o capitalismo extremo e predatório. Um capitalismo sem fundo, também, já que clubes milionários tem se mostrado incapazes de ficarem parados enquanto se faz necessário. E o que dizer em relação à rica CBF que pouco demonstra disposição para ajudar aos clubes mais pobres nesse momento de exceção.

No Brasil, o futebol – ou uma significativa parcela desse universo – pouco tem se importado com os mortos pela Covid-19. Mortos verdadeiramente solitários, pois que têm pouco ou nenhum significado para os que ficaram. Muitos desses mortos, aliás, quando vivos já tinham sua existência compreendida como indiferente.

A relação do futebol com o corpo, promotora de tantos estudos e de grande parte do nosso encantamento estético pelo esporte pode ganhar uma outra dimensão: talvez pela primeira vez o futebol se transforme em agente de mortes em massa. Em agente da necropolítica na pandemia de covid-19 no Brasil. E tinha que ser justamente no país do futebol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leda Maria Costa

Professora visitante da Faculdade de Comunicação Social (UERJ) - Pesquisadora do LEME - Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte -

Como citar

COSTA, Leda. A solidão dos mortos e dos vivos. Futebol, necropolítica e a pandemia, no Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 8, 2020.
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