À sombra do Atlas – Amizmiz, Marrocos
Amizmiz, Marrocos
A paisagem da estrada entre Marraquexe e Amizmiz é digna de ser imortalizada pelo pincel de um pintor famoso. As oliveiras e os cactos que ladeiam a estrada dar-nos-iam a ideia de estarmos num idílico clima mediterrâneo, não fora o contraste oferecido pelos cumes polvilhados de neve da Cordilheira do Atlas, que surgem, altivos, no horizonte. Amizmiz é uma pequena cidade com 11 mil habitantes no sopé do Grande Atlas, a pouco menos de cem quilômetros a sul de Marraquexe. A maioria da sua população é berbere, de origem Chleuh e fala no dialeto Tasheliyt. Foi, assim, com tremendo espanto que vimos um rapaz de 10 anos com a camisa oficial da seleção portuguesa de futebol, com o nome Simão e o número 11 estampados nas costas, enquanto esperávamos pela jovem futebolista Oiudad na praça central. Como se não bastasse, o rapaz, que ainda tinha um fato de treino com o emblema das quinas, sabia a constituição da equipe de Queiroz de trás para a frente e cantava-a com sotaque árabe: Simáo, Cárvalhó, João Mótino, Pipé, Cristianó, Dico…
Ouidad chegou acompanhada de Donniel Silva, uma norte-americana de 23 anos, voluntária pela ONG Peace Corps, que trabalha na cidade e ajuda as meninas de Amizmiz a organizar uma equipe de futebol. “O futebol é o único meio das raparigas participarem no espaço público”, explica Donniel, enquanto os homens assistem na esplanada de um café ao jogo Nigéria-Benin, bebendo café e xarope de menta. O nosso objetivo é finalizar o trabalho que tínhamos começado em Casablanca sobre o futebol feminino em Marrocos, testemunhando, desta feita, a realidade das mulheres marroquinas numa comunidade rural.
Ouidad dirige-se com três colegas de equipe para o campo de Amizmiz, um pelado com paredes cor de rosa, aos pés da grande montanha do Atlas. Usam todas foular, o tradicional véu marroquino, e um equipamento que lhes esconde todo o corpo e que, certamente, as faz suar abundantemente durante jogos disputados a mais de 30º. Mais de cem rapazes dividem-se pelo terreno principal de jogo, pelas bancadas e por várias “peladinhas” à margem das quatro linhas. As meninas jogam num campo de cimento, atrás de uma das balizas. “Gosto de jogar futebol e os meus pais não se opõe. Acham que é bom praticar desporto e pode dar futuro”, diz Ouidad. “Mas quando tiver a minha família não posso ser profissional, vou jogar apenas por desporto”.
Após a partida, sentamo-nos num dos cafés de Amizmiz, a beber um excepcional batido de morango feito com leite fresco. O comércio nas ruas é constante. O souk de Amizmiz reúne na cidade os agricultores berberes das aldeia circundantes, que fazem dezenas de quilômetros montados em burros para aqui venderem os seus produtos ou os trocarem por chá e açúcar vindos de Marraquexe. Apesar de 70% da população marroquina ter origem berbere (nome dado pelos gregos aos habitantes originais de Marrocos, que significa “bárbaros”), este povo ancestral é bastante discriminado no país. Só há cerca de cinco anos, o ensino de dialetos berberes foi autorizado nas escolas e muitos são devolvidos das cidades para as zonas mais remotas do Atlas ou do deserto do Sara. Ainda ontem, em plena praça Jemal El-Fna, um rapaz marroquino intercedeu na conversa que estava a tentar ter com um adolescente berbere: “Ele é berbere, não fala nada, nem árabe, nem francês. Não percas tempo, ele é berbere”, repetiu.
Ouidad e os seus dois irmãos mais novos, são filhos de pai de origem berbere, de Amizmiz, e de mãe árabe, de Marraquexe. No pátio, em frente à sua casa, um grupo de dez mulheres e crianças, sentadas no chão, canta músicas tradicionais ao compasso de palmas. Em redor de uma pequena mesa, com a televisão sintonizada em mais um jogo do CAN, somos servidos pela mãe de Oiudad de um delicioso pão com manteiga e azeitonas verdes temperadas com especiarias. Para acompanhar, o onipresente chá. Há dois pormenores que se devem ter em conta numa mesa marroquina; o primeiro é que se deve levar a comida a boca com a mão direita – a esquerda está reservada à higiene pessoal. O outro é a forma como se serve o chá, que obedece a um ritual preciso. O líquido deve cair do bule para o copo a uma altura razoável, nunca inferior a uns 20 centímetros. Após ser servido a primeira vez, deve abrir-se a chaleira e devolver-lhe o chá que já estava no copo. Serve-se uma segunda vez e, pela segunda vez, o chá volta à origem. Só à terceira, após se ter a certeza de que o açúcar está bem misturado, o chá fica pronto a ser bebido, fumegando e espalhando um odor irresistível.
A voluntária Donniel ofereceu-nos estadia em sua casa, um primeiro andar numa casa antiga de Amizmiz. É um apartamento com duas camas no chão, sem chuveiro e com fossa em vez do vaso sanitário. Para nossa satisfação, o seu computador está ligado à Internet. Na parede de uma das divisões, está um mapa-mundo com pequenos círculos a marcar os sítios por onde Donniel já passou. Locais tão longínquos quão exóticos como a Tailândia, as Ilhas Fiji, o Panamá, a África do Sul e a Nova Zelândia. Donniel foi agora destacada para esta região isolada de Marrocos, onde vai ficar durante dois anos. Sem chuveiro, sem vaso sanitário, à sombra do Atlas. Adormeço a pensar que todos deveríamos fazer o mesmo pelo menos uma vez na vida.