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A Supernova Azul-Celeste (ou Cruzeiro Supernova)

O que é uma supernova? A primeira resposta que encontramos no Google é de uma “estrela maciça que, num estágio avançado de sua evolução, explode, passando repentinamente a brilhar de modo muito intenso, para depois ir perdendo lentamente o seu fulgor”. Baseando-me no vídeo do canal Ciência Todo Dia, que despertou esse meu interesse que eu nunca imaginaria que um dia viria à tona, peço licença aos colegas da área (e ao autor do vídeo) para tentar ir um pouco além, colocando em prática meu interesse repentino no assunto.

Uma estrela é um equilíbrio, quase como uma dança. Por um lado, temos as fusões nucleares ocorrendo dentro da estrela. Essas fusões nucleares geram pressão enquanto tentam expandir. Na “dança da estrela”, essa é a força “para fora”. Do outro lado, temos a força da gravidade, tentando levar tudo para dentro. Essa dança entre a pressão das fusões nucleares tentando expandir e a gravidade, de certa forma, impedindo a expansão descontrolada das fusões nucleares é o que mantém uma estrela estável. 

As fusões nucleares mencionadas são de elementos leves, geralmente hidrogênio e hélio. Mas o “estoque” de tais elementos uma hora acaba, e as fusões nucleares passam para elementos mais pesados. Quando a fusão nuclear chega ao ferro é que a coisa complica – sua fusão custa mais energia do que gera, causando um desequilíbrio das forças da “dança”. A gravidade começa a “ganhar a batalha”, os átomos começam a ser comprimidos para cada vez mais perto e a estrela começa a entrar em colapso.

Esse desequilíbrio leva o núcleo a uma densidade altíssima. Prótons e elétrons se combinam e a estrela vira um amontoado de nêutrons. Os nêutrons por sua vez também vão sendo amontoados e o núcleo é comprimido até atingir seu limite, sendo impossível comprimi-lo mais que isso. É quando a proximidade entre os nêutrons passa a gerar pressão no sentido oposto da gravidade. Mas se o núcleo parou de ser comprimido, o mesmo acontece em relação às camadas externas da estrela, que continua sendo comprimida e jogada em direção ao núcleo de nêutrons.

Até que acontece o que todos nós já estávamos esperando: o colapso das camadas sobre os núcleos. Uma “explosão” que chega próxima a 25% da velocidade da luz – cerca de 74.948.114,5 metros por segundo. Acompanhamos então uma supernova, a morte de uma estrela.

Ok, e onde é que o futebol entra nessa história? Claro, pensando nisso, a supernova ganhará aqui outros contornos. Isso porque, se estamos relacionando a morte de uma estrela com futebol, o que poderia ser mais simbólico do que relacioná-la então com a situação do gigante clube celeste, que carrega cinco estrelas no brasão e que, parece, lentamente perder seu fulgor? Com direito à licença poética, seria o Cruzeiro uma supernova?

A década do Cruzeiro (2009-2019)

Passando por três presidentes, e considerando que cada mandato é formado por um triênio, houve a gestão de Zezé Perrella, a de Gilvan de Pinho Tavares (sendo o único a ficar por dois mandatos seguidos) e a de Wagner Pires de Sá, que não terminou o seu mandato. Durante esses 10 anos, podemos dividir as campanhas do clube mineiro em três fases: os vices (Libertadores 2009, Brasileirão 2010); o bi de pontos corridos (Brasileirão 2013 e 2014); e o bi do mata-mata (Copa do Brasil 2017 e 2018). 

Apesar de alguns bons times terem aparecido durante esses anos (Santos de 2011, Corinthians de 2012 e Atlético Mineiro de 2013, como exemplos), creio não ser nenhum exagero apontar o Cruzeiro como o time de melhor desempenho durante a década. Isso porque, ao longo de 10 anos, foram pelo menos seis elencos de alto rendimento e competitividade que foram montados pelo clube. Mas, apesar de raras exceções, hoje podemos concluir que, para manter um desempenho de alto nível, é preciso fazer investimentos.

Nesse ponto, o clube parece não ter poupado esforços. Isso fica evidente quando nos deparamos com o fato de que, das 15 contratações mais caras da história do Cruzeiro, 13 se encaixam no nosso recorte temporal de 2009 a 2019. Se refinarmos um pouco mais, veremos que o buraco fica mais embaixo. Das 10 contratações mais caras dessa lista, oito foram de 2009 para cá. E agora o bicho pega: até o ano de 2020, o time tinha pendências milionárias em relação a seis desses oito jogadores.

Cruzeiro tetracampeão brasileiro
Fonte: divulgação / Metro

A conta não fecha

Fazer as pesquisas para esse texto, para mim, foi como assistir a filmes apocalípticos – aqueles em que desde o início você logo percebe que está tudo muito errado. E realmente: a conta não fecha. A situação financeira do Cruzeiro não é um segredo. Uma lida rápida na sessão de esportes em qualquer portal de notícias te passará uma ideia do quão profundo é o problema que o clube enfrenta. Mas uma recapitulação específica precisa ser feita: a administração do Cruzeiro virou caso de polícia em 2019 – focado, entre outros, nos então presidente Wagner Pires de Sá, vice de futebol Itair Machado, e diretor-geral Sérgio Nonato. As acusações vão de falsidade ideológica a lavagem de dinheiro.

Para além dos casos de polícia mencionados acima, as pendências em relação às grandes contratações feitas, principalmente de 2013 para cá, parecem não ter fim. A soma das pendências, somente dos seis jogadores mencionados, é por volta de R$ 66 milhões. Algumas foram pagas ou acordadas durante os anos de 2020 e 2021, algumas não foram. Outras não chegaram nem sequer a ser negociadas, nem existe um prazo para isso.

Em 2020, o time chegou a um acordo com o Tigres, do México, pela contratação de Rafael Sóbis em 2016. O valor total devido era de R$ 17 milhões. No mesmo ano, o clube pagou suas dívidas referentes às contratações de Willian Bigode (2013) e de Ramón Ábila (2016), que somadas davam um pouco mais de R$ 10 milhões. No ano de 2021, o acordo foi relacionado a um processo movido pelo atleta Dedé contra o clube, cobrando salários atrasados e direitos de imagem. O valor acordado foi de R$ 16,6 milhões parcelados em 60 vezes – esse valor corresponde a pouco mais da metade do que o atleta cobrou inicialmente do clube

Entre as dívidas que se encontram ainda sem perspectiva de pagamento, estão R$ 16 milhões devidos ao clube egípcio Pyramids pela compra do atleta Rodriguinho em 2019, e R$ 7 milhões devidos ao clube uruguaio Defensor, pela transferência de Arrascaeta em 2015. Os mais atentos ou familiarizados com a situação do time devem ter percebido que, entre todas essas dívidas, sequer mencionamos a responsável por fazer com que o time iniciasse a disputa da Série B de 2020 com -6 pontos. Realmente, todas essas dívidas são somente sobre as maiores contratações do clube. Mas, para além disso, há diversas dívidas com ex-atletas e ex-treinadores. E até o filho do ex-presidente, que renunciou após acusação de lavagem de dinheiro, está cobrando salários atrasados do clube!

A Supernova Azul-Celeste

Se o delicado processo de equilíbrio entre a pressão oriunda das fusões nucleares tentando expandir contra a força gravitacional tentando comprimir o corpo celeste é o que rege a vida de uma estrela, como mencionado no início do texto, as cinco estrelas do clube azul-celeste têm também sua própria “dança”. 

O que impede que o corpo celeste seja comprimido totalmente pela força da gravidade até que vire um buraco negro, um possível desdobramento de uma supernova, é a fusão nuclear dentro da estrela, que está constantemente tentando expandir. O que impede que um clube tenha o mesmo destino é o seu bom desempenho em campo, ou uma boa gestão fora dele. O futebol de alto rendimento que acompanhamos hoje depende, salvo raros casos, de grande e organizado investimento fora de campo para que o time “cresça” dentro de campo.

A desorganização de investimentos, o desequilíbrio da dança, é frequente. Na conta de clubes que fizeram extravagantes investimentos e pagaram a conta dentro de campo, podemos pensar nos rebaixamentos de Palmeiras pós-Parmalat e de Corinthians pós-MSI. Em casos menos “trágicos”, que não contaram com rebaixamento, somente com baixo rendimento e campanhas decepcionantes, casos do Santos após a saída de Neymar, e Fluminense após o fim da parceria com a Unimed.

O caso do Cruzeiro foi extremo. A dívida do clube chegou perto do R$ 1 bilhão, e o dinheiro praticamente não entra. Basicamente, o clube está vendendo o almoço para pagar o jantar, e assim vem desde 2020. Os gastos do clube, as polêmicas extracampo, uma extrapolação da imagem e dos cofres do clube sem precedentes na história do mesmo, foi pressão demais. As fusões nucleares, ou o futebol, perderam essa batalha por muito. O caos estava escrito, e o milagre não aconteceu. Se a explosão de uma supernova é de 74.948.114,5 metros por segundo, a do Cruzeiro foi de R$ 803.486.208.

Cruzeiro 100 anos Foto Reprodução site oficial do Cruzeiro
Cruzeiro 100 anos. Foto: Reprodução site oficial do Cruzeiro

Há vida depois da supernova?

Somente uma supernova tem condições de gerar átomos mais pesados que o ferro, como ouro, chumbo e urânio. E quando ocorre uma supernova, sua matéria é ejetada pelo espaço, gerando nebulosas. Elas são, basicamente, o nascimento de uma nova estrela. Para além da visão de certa forma trágica que podemos ter da “morte de uma estrela”, isso não é o fim. Uma supernova significa o nascimento de outras estrelas, e, de certa forma, um sopro de vida.

As crises assustam, e não são fáceis de lidar. A dor do torcedor em ver seu time do coração nessa situação chega a ser inexplicável. Mas elas passam. Após suas crises, o Corinthians foi campeão da Libertadores e do Mundial de Clubes de 2012, e o Palmeiras campeão do Campeonato Brasileiro e da Copa Libertadores de 2020. O Santos disputou uma final de Libertadores, e o Fluminense fez boa campanha na Libertadores deste ano. A vida continua.

Comparar uma crise de um time de futebol com a morte de uma estrela pode parecer preocupante, e até chocante, para o torcedor. Nós realmente não digerimos bem a ideia de morte, qualquer que ela seja. Mas apesar do tom trágico que ela parece carregar, na realidade, quando pensamos em uma supernova, estamos lidando também com o início de novas vidas. Há vida após uma supernova. Pela famosa declaração do astrônomo Carl Sagan, no primeiro episódio da série Cosmos, “somos todos poeira de estrelas”. Talvez o Cruzeiro também seja.


Sobre o LELuS

Aqui é o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade. Mas pode nos chamar só de LELuS mesmo. Neste espaço, vamos refletir sobre torcidas, corporalidades, danças, performances, esportes. Sobre múltiplas formas de se torSER, porque olhar é também jogar.

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Thales Zolli Gaberz

Torço até pra futebol de botão.Graduando em Ciências Sociais pela UFSCar, com ênfase em Antropologia, e integrante do LELuS.Gosto do futebol caipira. Pesquisei em Iniciação Científica o futebol profissional de São Carlos, interior de São Paulo.

Como citar

GABERZ, Thales Zolli. A Supernova Azul-Celeste (ou Cruzeiro Supernova). Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 15, 2021.
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