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A tática da tática: poderia o contra-ataque virar um ataque contra?

Fidel Machado 6 de junho de 2020

Um grande volume de manifestações contra o racismo e o fascismo invadiram alguns estados e ganharam força nas redes sociais nos últimos dias pelo mundo. O Brasil, incentivado pelos protestos que tomam as ruas por vários dias consecutivos nos Estados Unidos, desde a morte desumana do segurança George Floyd, adentrou nesse cenário no final de semana passado. As redes sociais além de palco passaram a ser grandes divulgadoras desses movimentos e o debate sobre a desigualdade racial e a defesa da democracia tornou-se pauta em vários espaços digitais.

Mais uma vez, farei uso dos elementos presentes no campo esportivo como ferramenta ilustrativa e argumentativa para ensaiar algumas linhas que se referem aos possíveis (des)usos e desdobramentos das manifestações que ocorrerão no próximo domingo, dia 7 de junho. Adianto que, em hipótese alguma, me coloco contrário a todos esses movimentos extremamente importantes, urgentes e legítimos. Contudo, a discussão aqui levantada não se refere ao conteúdo, mas a forma, ao modo de fazer, a técnica adotada, principalmente, em meio ao cenário que nós estamos inseridos.

Manifestação na Avenida Paulista em São Paulo em 31 de maio. Foto: Pam Santos.

Assumimos a ponta e somos fortes candidatos para protagonizarmos o posto de país com maior número de mortes e casos confirmados de COVID-19. Pelo quarto dia consecutivo, perdemos mais de mil vidas. Vidas essas, em sua grande maioria, de pessoas pobres, negras e periféricas. Vidas essas que, assumidamente, diante de vários planos de governo não são dignas de serem vividas. Passaram a ser, inclusive, privadas do seu direito de respirar. O contexto é delicado e demanda ações extremamente cirúrgicas. O tempo e o placar, definitivamente, não estão ao nosso favor. Parece-me que vidas negras, para as camadas do topo da pirâmide, só importam quando convém.

Com as sucessivas ações e deliberados insultos e apelos do governo federal ao simbolismo extremista, muitos coletivos resolveram se posicionar contra essa marcha fascista em curso no nosso país. Muitas dessas iniciativas foram encabeçadas por torcidas organizadas. Ressalto que o movimento não é homogêneo e não conta, diretamente, com o apoio institucional da direção das torcidas. Porém, os líderes emitiram notas para informar que seus membros eram livres para expressar as suas opiniões. Para esse domingo, dia 7 de junho, novas manifestações estão sendo convocadas e ganharam um caráter mais diversificado e não necessariamente exclusivo de integrantes de torcidas. O que, certamente, resultará em um número ainda maior de pessoas nas ruas.

Diante e em meio a todo esse caldeirão, temos a pandemia e um nível de transmissibilidade do vírus assustador. Para tentar evitar o espalhamento do novo coronavírus, alguns cabeças dos movimentos orientam seus membros a usarem máscaras e álcool em gel. Fora essas medidas, tentarão manter certa distância uns dos outros. Ainda que haja o cumprimento de todas essas recomendações o risco de contaminação é alto.

O grande perigo dos contra-ataques, ainda que sejam bem feitos é não resultar em gol e receber um novo golpe com a defesa desprevenida e, de certa forma, abalada. Talvez, nesse exato momento, a estratégia e a tática (compreendida aqui como as razões pelo fazer – BAYER, 1994) dessa manifestação seja mais um impulso volitivo da emoção e da comoção que teve como estopim a morte de George Floyd. Com a recorrente violência e truculência enfrentada pela população negra, os afetos estão intensificados e a pressão dessa partida pode não resultar em um ataque incisivo, objetivo e eficiente contra essa estrutura que oprime as pessoas negras.

O grande cerne dessa questão é que esse contra-ataque proveniente dos reincidentes ataques consolidados e, de certa forma, normalizados pela estrutura vigente pode culminar em um oportunista ataque contra no sentido de abrir margem para uma culpabilização ainda maior do já existente aumento no número dos casos de COVID-19. Ademais, o fato da reabertura de alguns estados já ser uma realidade pode corroborar para justificar prisões. Outro ponto que porventura pode se desdobrar nesse ataque contra é uma incitação à violência justificada pela desobediência e formação de aglomerações. Isso reforçaria a máxima hegemônica e resultaria nas adjetivações corriqueiras, como transgressores, irracionais o que coadunaria para o uso ainda maior da força em ações desmesuradas pela polícia. De certa forma, o que aqui quero expressar é que facilmente, diante do que tenho visto, esse movimento pode reforçar o discurso do chefe do executivo federal. Para conter os “terroristas”, adjetivo já utilizado por Bolsonaro para se referir às pessoas contrárias ao seu governo e para manter e garantir a ordem, será necessária a utilização de um braço forte, um pulso firme. Cenário ideal para o pseudo-Messias.

Justiça proíbe manifestação na paulista -“Impeço que os grupos manifestantes, manifestamente antagônicos entre si, se reúnam no mesmo local e data Avenida Paulista, capital, no próximo dia 7 de junho. Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas.

Diversos movimentos paralelos têm sido realizados. Vários atletas criaram o grupo “Esporte pela Democracia” que lançou um manifesto em prol dos direitos humanos, da liberdade de imprensa, da multiplicidade e do reforço aos valores democráticos. O documento aponta que os atletas precisam se contrapor aos sucessivos ataques no Brasil. Pelo mundo, vários esportistas se solidarizaram com a causa. O esporte tem sido um potente vetor de combate ainda que, devido ao peso da tradição e da estrutura sólida, rígida e ainda imponente silencie algumas expressões, como o caso do jogador de futebol americano Colin Kaepernick que se ajoelhava durante a execução do hino nacional em protesto contra as abordagens policiais violentas e sofreu reincidentes boicotes por franquias da NFL. Fora esse caso, temos várias narrativas esportivas que endossam essa força física do corpo negro. Tenho uma sensação que, em muitos casos, o negro é, maquiadamente, aceito pela sua performance, pelo seu rendimento esportivo. Talvez o esporte mantenha uma outra roupagem da ideia da adequação desses corpos aos trabalhos físicos. Será?

Retomo o argumento central desse texto para endossar que por mais fundamental e urgente que sejam todas essas manifestações é preciso assertividade em toda ação tática. O jogo jogado é hostil e árduo. Estamos com o nosso elenco comprometido. A necropolítica não é novidade. Há séculos ela é legitimada e autorizada por políticas públicas proibitivas de enfrentamento. O cenário nas periferias é de guerra. O quilo da carne negra ainda é o mais barato e tem assumido uma desumanização ainda maior. Não há sequer um alívio, um suspiro. Independente da idade, todo negro é suspeito, é perigoso, é marginal.

Diante do acirramento das narrativas e da guerra dos discursos, assumir uma postura combativa nas ruas, talvez não seja a melhor tática, a melhor estratégia para o momento atual do jogo. Há situações de guerras que não são vencidas pela força bruta, mas pela organização, coesão e estratégia. Há outras que só o combate físico resolve. A escolha precisa ser precisa. No atual cenário, a munição precisa ser reinventada. Talvez necessitemos de um tempo técnico, um intervalo para organizar o meio de campo, alinhar o discurso e evitar intrusos e penetras que poderiam facilmente, descredibilizar toda a causa. Todavia, a partida segue em andamento. Há quem opte por ir e há quem decida não ir. O intuito dessas linhas não visa estabelecer uma régua julgadora e  binária. Existem inúmeras formas de estar presente e fortalecer os movimentos na rua e de casa. Afinal, ainda que seja extremamente difícil se relacionar com a divergência, a competição esportiva se dá no contraditório, no múltiplo. Ainda que seja extremamente desgastante e esteja cada vez mais raro, a mais saudável maneira de viver… é conviver. Joguemos!


Conversas com:

Bayer, Claude. O ensino dos desportos colectivos. Lisboa: Dinalivro, 1994

COVID-19

Secretaria de Saúde

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Atlas da violência, 2019

Hugo Fernandes-Ferreira

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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. A tática da tática: poderia o contra-ataque virar um ataque contra?. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 15, 2020.
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