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A tradição varzeana em risco: o Santa Marina Atlético Clube pede socorro

Gabriel Yukio Shinoda Oliveira 23 de julho de 2021

Mais uma vez o futebol varzeano está a ponto de perder para a gentrificação na disputa por espaços nas cidades. Neste momento, o centro do conflito acontece no bairro da Água Branca, Zona Oeste da cidade de São Paulo, com o time Santa Marina Atlético Clube. Sua história é construída e mantida por seus associados há mais de um século e, agora, está prestes a ser interrompida pelo pedido de reintegração de posse da multinacional Saint Gobain. Infelizmente, a justiça já negou inúmeros recursos emitidos pelo clube para tentar evitar o despejo e só resta apenas acionar o Superior Tribunal de Justiça como última esperança pelo caminho jurídico. 

No final de maio de 2021, fui à sede do clube conversar com os associados para conhecê-los. Rose, atual secretária, que passou boa parte de sua vida com a “família Santa Marina”, me recebeu e contou sobre os tristes acontecimentos recentes, certamente agravados também pela pandemia de Covid-19. Depois, fui ainda recepcionado por Chiquinho – o presidente -, por Dodô – o vice-presidente -, e por Gui – associado do clube. Sentamos todos em uma mesa, onde eles puderam me relatar a situação e a história do Santa Marina Atlético Clube.  

Santa Marina
O Santa Marina Atlético Clube possui um riquíssimo acervo, composto por fotos, atas e troféus conquistados ao longo de sua história. Foi nesta sala que nossa entrevista foi realizada. Foto: Gabriel Yukio Shinoda Oliveira

Ele foi fundado no ano de 1913 pelos próprios operários e funcionários da vidraria Santa Marina, que se reuniram na casa de Madame Grané e Pedro Grané para regulamentá-lo. Desde o início, foram os funcionários que construíram os espaços da sede e organizaram o clube, “fazendo tudo por conta”. Não demorou para ter seu próprio time de futebol, que frequentemente participava dos variados campeonatos varzeanos da capital paulistana. As fotos do time nas primeiras décadas, mostradas a mim pelos associados, nos aproximam de seus primeiros jogadores e de seus primeiros uniformes. 

Santa Marina
Segundo quadro Santa Marina Football Club em 1916. Foto: Acervo Santa Marina
Santa Marina
Primeiro quadro do clube Santa Marina Football Club em 1930. Foto: Acervo Santa Marina

Como o clube tinha a função de acolher todos os funcionários da fábrica, outros esportes passaram a compor seu cotidiano. Nos jornais da Gazeta e na conversa com os associados, registrei a prática de vôlei, basquete, boccia, dama, ciclismo, remo, atletismo e boxe. Este último ainda se destaca no clube pela formação de pugilistas de relevância nacional durante a década de 1950. O Santa Marina Atlético Clube fez parte da história da formação esportiva na cidade de São Paulo. 

Por ser um clube de várzea, sua função social para com a comunidade do bairro e para  a família Santa Marina não se resumia à prática esportiva. Em diversos trechos das edições da Gazeta da década de 1920 são anunciados convites para as festividades e saraus que aconteciam dentro de seu salão de festa da sede. Esses eventos, onde os associados expressavam sua sociabilidade, foram presentes ao longo de toda a história do clube, desde seu início até anos mais recentes. Há alguns anos, o salão de festas foi demolido pela própria Saint Gobain. 

Anúncio no jornal A Gazeta para a realização de um sarau organizado pelo clube em 26 de outubro de 1922.

Os entrevistados ainda contaram sobre suas épocas de infância, quando a sede lhes proporcionava um local para o lazer, para a brincadeira das crianças e para as relações sociais entre famílias e amigos. Os finais de ano eram marcantes aos associados desde o início de sua história, sobretudo na época do natal, quando as crianças recebiam o Papai Noel na sede. Há alguns anos, um pouco antes da pandemia, eram realizadas confraternizações, com a doação de presentes para serem entregues às famílias de baixa renda da região.

Santa Marina
Papai Noel entrega presentes às crianças na sede do clube na década de 60. Foto: Acervo Santa Marina

As confraternizações são momentos especiais para os associados, quando eles podem “continuar aquelas amizades de 50, 60, 70 anos atrás.”, como relata Dodô. “A gente não pede nada demais. É dois refrigerantes, um quilo de carne… se você quiser trazer mais, traz. Mas é um quilo de carne, dois refrigerantes. Quem bebe cerveja, traz a caixinha de cerveja. E faz uma bela festa.”. Essa sociabilidade dentro do clube fez com que ele se tornasse um elemento fundamental para seus associados. “Minha vida é o Santa Marina!”, declara Rose. 

Desde a compra da vidraria pela Saint-Gobain, essa convivência passou a sofrer cada vez mais limitações – não sem a resistência dos associados, certamente. A multinacional começou a comprar ações da Santa Marina já na década de 1960 e foram cada vez mais tomando os espaços da fábrica, comprando um terreno aqui, outro ali, até a compra completa da antiga vidraria e de seu espaço. Durante a década de 1990, os entrevistados relatam que os símbolos associados à Santa Marina começaram a ser apagados pela Saint-Gobain, sendo proibidas inclusive vestimentas com o logo da antiga empresa: “até uma época, os caras viam com aquele emblema da fábrica Santa Marina no seu uniforme e eles mandavam você tirar.”, relata Chico.

Foram cada vez mais minando a Santa Marina daquele espaço, o que certamente incluía o time. Os associados, ao longo de todo esse tempo, ainda conseguiram negociar para tentar manter seu lugar, mas gradativamente foram perdendo mais terreno. Seu Chico relata que o pequeno estádio e o salão de festas que possuíam foram todos demolidos “enquanto eu tava viajando de umas férias, chegaram aqui e quebraram nossos muros lá por trás, entraram com maquinário e destruíram tudo”. Cada centímetro do terreno foi sendo dominado pela Saint-Gobain: 

Esse último diretor, que fez o negócio do comodato, ele fez de tudo pra pegar aquele pedacinho aqui na frente aqui ó, bem onde está escrito… ali no muro… ele fez de tudo pra fazer o muro encostado à quadra. Aí os caras fizeram o muro ali e ainda puseram um tratamento de esgoto atrás de nós. E agora tiraram a empresa que fazia o tratamento pra eles e tá lá um belo de um buraco lá, largado lá atrás. Só dá rato aí dentro! Mandamos foto até pro juiz. Só dá rato. É uma criação que nós temos que ficar matando o que é deles. Eles tinham um negócio pra vir aqui e olhar – negócio da dengue – mas agora está tudo abandonado aí.

Os espaços da sede, que são e foram parte da longa história do clube, foi gradativamente sendo tomados pela multinacional. Certamente a Saint-Gobain, que é dona de grandes empresas como Brasilit, Telhanorte, Tekbond e Carburundum, tem terrenos e mais terrenos no mundo inteiro. “Não custava nada os caras falarem: ‘pera um pouco, os caras estão há 108 anos aqui, velho’. Eles podiam falar ‘pega esse pedaço de terra aqui pra vocês’, passa tudo direitinho, dá pro clube e aí eles fazem o que eles quiserem com o resto, pô.”, diz Dodô. Mas nós sabemos que, no mundo da especulação imobiliária e da gentrificação, não é assim que funciona. Histórias e identidades são marginalizadas e destruídas em prol da maior circulação de capital. 

O futebol varzeano no Brasil infelizmente vive isso constantemente. Os trabalhos de Raphael Rajão mostram como clubes varzeanos de Belo Horizonte disputam cotidianamente seus terrenos e campos com empresas maiores. São várias as estratégias adotadas para conseguir resistir e, em alguns casos, eles até conseguem manter sua sede, pelo menos por um tempo, mas sabemos que é uma disputa desigual de poder, entre clubes que se sustentam com um baixos orçamentos contra empresas bilionárias. 

No final das contas, os associados do Santa Marina são tratados como se fossem invasores dessa terra, sendo que, na verdade, eles nasceram e cresceram neste espaço. “Não é que nem os caras agora estão falando que a gente invadiu. Como invadiu? Moramos aqui, nascemos aqui!”, diz Dodô. Uma ação civil popular junto ao Ministério Público já está correndo para tentarmos salvar este clube centenário. Ajude-o se inscrevendo neste link aqui! Todas as histórias criadas e vivenciadas pelos associados passaram pela sede e, por isso, ela é essencial para a vida do Santa Marina Atlético Clube. Sem ela, o time perde grande parte de sua essência, de sua tradição e de sua história.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Yukio Shinoda Oliveira

Amante dos esportes desde criança, principalmente do futebol e do vôlei, que sempre pratiquei. São Paulino de coração, corpo e alma. Jogo futebol pelo clube LGBT+ Natus F.C. Atualmente, sou mestrando em História Social pela Universidade de São Paulo, com pesquisa sobre o Campeonato Varzeano de 1924. Na graduação, finalizada em 2023, pesquisei, durante a IC, o clube de várzea e de fábrica Santa Marina Football Club. Ainda durante a graduação, tive o privilégio de realizar estágio de pesquisa na Freie Universität Berlin, onde pesquisei sobre o clube berlinense de trabalhadores A.S.V. Fichte.

Como citar

OLIVEIRA, Gabriel Yukio Shinoda. A tradição varzeana em risco: o Santa Marina Atlético Clube pede socorro. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 44, 2021.
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