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A visita de Cristiano Ronaldo a um país recém-independente

João Pedro Neves 11 de outubro de 2021

Era 18 de junho de 2005 quando uma multidão aguardava ansiosamente pela chegada de Cristiano Ronaldo a Díli, capital de Timor-Leste. Este pequeno país asiático divide a ilha de Timor com a Indonésia e foi colonizado por Portugal durante quatro séculos. Para entender o contexto em que ocorreu a visita do craque português ao país e porque ela é tão representativa, é preciso rememorar as três últimas décadas do século XX na história timorense.

Cristiano Ronaldo
Cristiano Ronaldo recebido em Díli pelo presidente Xanana Gusmão. Créditos: Lirio da Fonseca/acervo pessoal

A declaração de independência em relação a Portugal e os anos de ocupação indonésia

Em 1974, eclodiu em Portugal a Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura do Estado Novo. Como desdobramento desse processo, territórios ainda colonizados pelos portugueses tiveram os seus respectivos processos de independência catalisados. Foi o caso de Timor-Leste,  cuja independência foi declarada em 28 de novembro de 1975 por membros da Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (Fretilin). Nove dias após a declaração, no entanto, o país foi invadido e anexado pela Indonésia, à época governada pela ditadura do general Mohamed Suharto. Foi então que iniciou-se um doloroso capítulo na história timorense, marcado por uma intensa repressão e violência contra a população local.

Durante os 24 anos de ocupação indonésia em Timor-Leste, inúmeros casos de abusos contra os direitos humanos dos timorenses foram relatados. Para se ter uma noção, conforme dados da Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação, pelo menos 100 mil timorenses morreram em decorrência da invasão indonésia — cerca de 18 mil assassinatos e desaparecimentos, e as demais mortes causadas por fome e doenças (em função das condições provocadas pela presença do Exército Indonésio).

Nesse período, o Massacre de Santa Cruz, em Díli, tornou-se o maior símbolo da violência sofrida pelo povo timorense. O episódio ocorreu em 12 de novembro de 1991, quando uma multidão realizou uma procissão para homenagear Sebastião Gomes, ativista pró-independência, assassinado por militares indonésios semanas antes. Quando a passeata chegou ao Cemitério de Santa Cruz, onde o corpo do jovem fora sepultado, tropas indonésias abriram fogo contra a população, matando mais de 250 pessoas. Toda a repressão daquele fatídico dia foi registrada em vídeo pelo jornalista britânico Max Stahl, que conseguiu fazer as imagens rodarem o mundo e, assim, denunciar a brutalidade da ocupação indonésia.

Nos anos seguintes ao Massacre de Santa Cruz, o apoio internacional à causa timorense cresceu consideravelmente. Por conta disso, inclusive, o Prêmio Nobel da Paz de 1996 foi entregue a José Ramos-Horta e ao bispo Ximenes Belo, líderes da ala não-armada da resistência em Timor-Leste. Três anos depois, com o fim do regime de Suharto na Indonésia, um referendo organizado pela ONU revelou que 78,5% dos timorenses eram favoráveis à independência do país. O governo indonésio aceitou o resultado das urnas e desocupou o território ainda naquele ano. Antes disso, no entanto, militares e milícias pró-Indonésia destruíram, como forma de retaliação, grande parte da infraestrutura local, com ataques a residências, prédios públicos e igrejas.

Os anos de transição sob coordenação da ONU, a independência e a visita de Cristiano Ronaldo

No mesmo ano da retirada das tropas indonésias, em 1999, uma missão de paz da ONU foi enviada para coordenar a transição da independência timorense. À frente da missão estava o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que na prática era responsável por governar o território enquanto as bases do novo Estado eram estruturadas. Um Conselho Consultivo foi criado a fim de escutar a população nos processos de tomada de decisão.

Formada em 2001 por meio de eleição direta, a Assembleia Nacional Constituinte redigiu e aprovou a primeira Constituição de Timor-Leste no ano seguinte. Com isso, a administração das Nações Unidas teve fim em 20 de maio de 2002, quando a bandeira de Timor-Leste foi hasteada em Díli e o novo país, finalmente, apareceu nos mapas. A data, obviamente, é feriado nacional e chamada de Dia da Restauração da Independência.

Em 2005, no contexto da assinatura de um Memorando de Cooperação entre Portugal e Timor-Leste para o desenvolvimento do esporte timorense, Cristiano Ronaldo visitou o país recém-independente. O jogador foi recebido no Palácio das Cinzas pelo então presidente Xanana Gusmão, um dos principais líderes das Falintil — Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste — durante a ocupação indonésia. Ele chegou a ser capturado por militares indonésios e condenado à prisão perpétua em 1992, mas foi liberto em 1999. Considerado herói nacional, Xanana foi o primeiro presidente democraticamente eleito em Timor-Leste, em 2002.

Na sua breve passagem pelo país, que durou cerca de cinco horas, Cristiano Ronaldo passou pelo Estádio Nacional, onde mais de 20 mil pessoas esperavam para recepcioná-lo e eventualmente conseguir um autógrafo da estrela do Manchester United. O português também foi à residência do primeiro-ministro, Mari Alkatiri, e presenciou a assinatura do Memorando de Cooperação. O governo de Portugal foi oficialmente representado pelo Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, Laurentino Dias.

Cristiano Ronaldo
Timorenses reunidos para recepcionar Cristiano Ronaldo. Créditos: Lirio da Fonseca/acervo pessoal

O esporte em Timor-Leste atualmente

Mais de 15 anos depois da visita de Cristiano Ronaldo e do Memorando de Cooperação, o esporte em Timor-Leste ainda parece incipiente. Nos Jogos do Sudeste Asiático, o país até tem um retrospecto interessante: cinco ouros, oito pratas e 34 bronzes. No entanto, em Jogos Asiáticos são apenas dois ouros e um bronze, e nenhuma medalha em Jogos Olímpicos.

O futebol timorense, longe de quaisquer holofotes internacionais, também está nos primórdios. A principal competição nacional, a Liga Futebol Timor-Leste, foi fundada em 2015 e recebe apoio financeiro do governo para ser realizada. A seleção do país, por sua vez, é apenas a 194º no ranking FIFA. Em 2017, Timor-Leste foi banido da possibilidade de disputar a Copa da Ásia de 2023, devido a um escândalo envolvendo a falsificação de documentos de jogadores brasileiros. Doze atletas tiveram suas certidões de nascimento adulteradas para poder atuar pela seleção timorense.

No futsal, o país têm um lugar (um tanto quanto incômodo) na história da seleção brasileira. Em 2006, durante os Jogos da Lusofonia, o Brasil enfrentou Timor-Leste e aplicou a sua maior goleada até hoje: incríveis 76 a 0. Na ocasião, o pivô Valdin marcou 20 vezes e se tornou o atleta com mais gols em um único jogo na história da modalidade.

A despeito de quaisquer derrotas esportivas, para um país cujo povo lutou tanto pelo direito à autodeterminação, a independência — perto de completar duas décadas de restauração — certamente é a maior vitória.

Agradecimentos ao fotógrafo timorense Lirio da Fonseca, pela gentileza ao disponibilizar fotografias do seu acervo pessoal para a utilização nesta publicação.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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João Pedro Neves

Um soteropolitano fascinado por futebol e política que nutre simpatia por inúmeros times ao redor do planeta. Estudante de História na Universidade Federal da Bahia, mas com um pé no jornalismo.

Como citar

NEVES, João Pedro. A visita de Cristiano Ronaldo a um país recém-independente. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 18, 2021.
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