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A vitória mais cara

Daniel Cabrera 4 de setembro de 2021

Um torcedor uruguaio viajou para a Venezuela para acompanhar o Nacional na estreia da Libertadores. Daniel Cabrera terminou varado por três dias em um país sem luz, sem água e sem comida. Aqui ele nos conta o que viu e passou.

A vitória mais cara

São duas da tarde e subo nessa caminhonete pela enésima vez. É um ritual que sempre tem o mesmo final. Como se fosse um campeonato muito complicado e com a obrigação de ser campeão, troquei de camiseta e me sentei em outro lugar numa tentativa de mudar a minha sorte.

– Você está louco! Como assim, vai viajar para a Venezuela?

Uma semana antes as notícias que circulavam não eram alentadoras. Disseram que o espaço aéreo venezuelano estava fechado, apareciam fotos com pequenos aviões voando sobre um país deserto, onde não era possível aterrissar nenhum voo. O presidente Maduro fechou as fronteiras com Colômbia e Brasil, e gerou o momento de maior tensão na tentativa de um caminhão com ajuda humanitária ingressar no lado venezuelano.

Mas quando a bola começa a rolar, pouco importa o que foi dito durante a semana. A partida precisa ser jogada.

Barinas está uns 500 quilômetros distante de Caracas. Tem uma população que não chega a meio milhão de habitantes e é conhecida por ser a cidade onde nasceu Hugo Chávez. Tamanha força tem este sobrenome, que seus irmãos ocupam cargos importantes. Adelis Chávez é o presidente do clube Zamora, time que recebeu o Nacional.

Sem arranha-céus e nem grandes construções, Barinas é um povoado típico do interior de qualquer país. Mas com uma paisagem diferente, como se uma guerra tivesse arrasado o lugar. É uma pequena cidade que, em cada uma de suas poucas esquinas, mostra esqueletos de edifícios sem terminar e outros vencidos pela decadência, desertos, abandonados, ou vítimas da rentabilidade dos negócios.

Faltando pouco para terminá-lo, ou faltando pouco para começá-lo. Esse é o time do Nacional que viajou para iniciar o sonho copeiro. A ilusão que não se importa com os maus momentos, nem com os times ainda em formação. Ano após ano ela retorna para conquistar cada torcedor.

O estádio Agustín Tovar parece pertencer a outra cidade. Popularmente conhecido como La Carolina, tem, a simples vista, uma infraestrutura que choca por seu contraste. Poucas vezes se encontra, em pequenos povoados, estádios deste tamanho e modernidade. São os ecos da Copa América organizada em 2007 pelo governo chavista, um esforço desmedido no investimento para promover o futebol em um país dominado pelo beisebol.

Dentro de campo, o campeão venezuelano encarava o vice-campeão uruguaio em plena reconstrução e com vários resultados negativos neste começo de temporada. Nas arquibancadas, uns dez mil venezuelanos e cinco uruguaios. Sim, cinco. Havia menos torcedores do que jogadores do clube em campo. Quatro torcedores do Bolso passarão meses quitando o valor da passagem mais cara que se pode pagar na América do Sul. Esses quatro que entregaram tudo por 90 minutos. O quinto é Raúl, um uruguaio que vive há 18 anos em Caracas e dirigiu sete horas para levar sua mulher e filho venezuelanos para ver, pela primeira vez, o time de que tanto lhes contou e acabou contagiando.

Com um sotaque quase caribenho, exceto pela pronúncia do LL e do Y, uma marca que levaremos para o caixão, nesta parte do mundo ele me conta que Barinas é como se fosse um povoado pequeno. Caracas, para ele, é uma cidade avançada e muito moderna em comparação com sua Montevidéu, da qual obviamente sente saudades.

Fim de semana depois de fim de semana, Raúl busca formas de acompanhar o seu time apesar da distância. Paixão que transmitiu ao filho, um adolescente cursando a universidade e que ninguém entende quando responde à pergunta: pra que time você torce? Ele não responde Barça e nem Real Madrid. O dia tinha chegado e agora eles poderão senti-lo mais próximo que nunca. Poderão sentir pela primeira vez um laço entre pai e filho que durante estes dezoito anos nunca experimentaram: o abraço de um gol do Nacional na arquibancada.

A vitória mais cara

O que pode dar errado quando seu time ganha como visitante e tão longe de casa?

Vinte e quatro horas depois os festejos, brindes e conversas sobre futebol com amigos passaram a discussões na penumbra, incertezas, rumores e nervosismo compartilhados com completos desconhecidos.

Um país inteiro estava sem energia. E nós estávamos ali, faltando apenas duas horas para subirmos em um avião e voltarmos para casa. Esse almoço ainda não digeri bem.

As horas passaram e o blecaute não foi solucionado. Tinha acontecido na noite anterior, em Barinas, quando em pleno jogo um apagão interrompeu a partida. O nosso voo foi cancelado e todos fomos para um luxuoso hotel com todas as comodidades que o povo venezuelano havia perdido.

Nossa partida foi reprogramada, então fomos até o aeroporto. Ali, a mochila era o meu travesseiro e a intimidade do meu quarto era um gigantesco aeroporto com centenas de pessoas fazendo longas filas. Todos esperando que a luz voltasse.

A vitória mais caraNo panorama em que a esperança começava e escorrer com o passar das horas, as luzes dos celulares que ainda tinham algo de bateria acendiam de vez em quando. Alguns dormiram com a ilusão de acordar repentinamente porque o check in havia começado, outros olhávamos para o teto em busca de respostas. Tudo na agonia de um relógio que em alguns momentos retrocedia, e que disparava quando a luz do amanhecer ganhava as primeiras sombras.

Ninguém para dar uma resposta. Um aeroporto sem luz, sem comida e sem água. E apenas a cinco minutos um hotel com luz, água, internet e comida se beneficiava com a incerteza dos passageiros varados. Todas as comodidades asseguradas graças a um gerador próprio. Por que o hotel tinha e o aeroporto não? Eu também gostaria de saber.

Passei os três dias no hotel com tudo que era necessário, exceto quando também caíram as linhas telefônicas do país e ninguém mais tinha internet. Nada parecia indicar que voltaria. Foram três dias em um hotel com as comodidades que faltavam a um povo.

A vitória mais cara

– Estou indo embora do país. Tinha uma empresa que faliu, fui expropriado pelo governo e fiquei sem nada.

– Estou indo para o Chile buscar um futuro. Aqui eu não posso fazer nada.

Histórias de vida que começariam em outros países e já pareciam travadas. Como se fosse uma maldição que caía sobre as pessoas que depois de muito tempo tinham decidido deixar sua terra, ou uma benção para poder desfrutá-la por algumas horas mais. Um consolo aos seus, que vão sofrer com este último abraço.

Com orgulho, com a força de querer lutar no lugar onde cresceram. Como os pais de Andrew, um garoto de 19 anos que deixou seu país e seus pais para morar em Montevidéu, na casa de um primo que o esperava com uma nova vida de trabalho e estudo. Centenas de histórias que se cruzavam e se misturavam nos corredores de um aeroporto cheio de malas que não avançavam.

A vitória mais cara

– Não pode tirar fotos, senhor.

O que seria uma situação tensa em qualquer parte do mundo, acabou em sorrisos quando mostrei que não era possível enxergar nada.

A companhia aérea, depois de três dias inativa, decidiu começar a voar em situação de emergência. Sem despachar bagagem e com trâmites manuais. Lápis e papel, com um bilhete de embarque escrito à mão e apenas com bagagens menores, dessas que vão na parte de cima no avião.

A notícia espalhou e muita gente começou a se livrar de suas coisas. Eram malas abertas que passavam o conteúdo para sacolas menores carregando o mínimo necessário de prendas para subsistir onde fosse. Andrew preferiu ser mais prático e vestiu todas suas camisas, uma por cima da outra, sem se importar o calor concentrado do aeroporto.

O medo começou a se transformar em alívio. Enquanto esperávamos passar pelos controles, os olhares passaram a contagiar alguns tímidos sorrisos e o “finalmente” que se repetia.

Antes de chegar o esperado carimbo de saída, a polícia militar revisava os passageiros um por um e vistoriava roupa por roupa de cada mala. Um sistema de controle obsoleto até mesmo para padrão dos estádios uruguaios.

Lágrimas de despedida, ansiedade que acelerava com as agulhas do relógio. Olhares perdidos que tentavam aproveitar os últimos minutos de sua terra sem chorar, sem emitir som algum, apenas contemplativos. E nós começávamos a contar os abraços que tínhamos de distribuir.

A vitória mais caraSem saber, eu estava fazendo a minha última viagem até o aeroporto de Caracas. No caminho vejo uma família caminhando com garrafões de água vazios. Talvez indo buscar um pouco, talvez voltando para casa sem ter encontrado. Não posso deixar de pensar nos cheiros. Fecho os olhos e ainda consigo sentir o aroma da comida que foi aberta depois de horas sem ter sido conservada no frio de uma geladeira, o suor concentrado das centenas de pessoas dormindo no chão, a umidade de um lugar imenso que esteve por três dias sem refrigeração.

Estou voando e sinto alívio. Olho pela janela e não deixo de pensar nos que ficam, nos que estão cada vez mais distantes a medida que o avião ganha altura. Esses que já não consigo ver porque a noite venceu e na cidade não há luz, esses que são invisíveis, esses que tampouco têm voz.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2019. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

CABRERA, Daniel. A vitória mais cara. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 5, 2021.
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