Em meados dos anos 1970 meus pais, meu irmão e eu viajamos de carro de Florianópolis a Fortaleza. Foi uma jornada muito educativa e uma parte dela, na ida, aconteceu pelo Sertão Nordestino, enquanto no regresso margeamos o Atlântico. Uma das paradas foi para visitar um dos marcos do delírio da ditadura civil-militar que desgovernava o país, o Centro de Lançamento da Barreira do Inferno, localizado a poucos quilômetros de Natal, Rio Grande do Norte. Primeira base da América do Sul de onde saíram foguetes, ela teve seu nome inspirado nas falésias que ali se avizinham. Ao nascer do dia, contam os pescadores, a cor avermelhada que as costas altas adquirem lembrariam a morada do Tinhoso.

Pois bem, o nome do centro militar acabou, por sua vez, inspirando o epíteto destinado à zaga que o time do Clube de Regatas Vasco da Gama formou em 1977, ano em que foi campeão da Taça Guanabara e do Campeonato Carioca, constituída por Orlando, Abel, Geraldo e Marco Antônio. Os quatro, que defendiam o gol de Mazzaropi e eram protegidos pelo médio-volante Zé Mário, ganharam a alcunha de Barreira do Inferno. Não, não eram vermelhos, não defendiam o comunismo ou coisa que o valha, tampouco eram inimigos da fé cristã. Apenas formavam uma defesa segura e que jogava duro, às vezes exagerando na rispidez com que tratavam atacantes rápidos, dribladores, desinibidos, como Nilson Dias e Paulo Cézar, do Botafogo, Doval e Rivelino, do Fluminense, Zico e Cláudio Adão, do Flamengo.

Vencedor dos dois turnos daquele Carioca, no segundo derrotou o Rubro-negro na disputa de pênaltis. Mazzaropi defendeu a cobrança do jovem Tita, cuja carreira de sucesso o levaria, já em seu final, ao próprio Vasco. No ataque despontava Roberto Dinamite, centroavante técnico e com potente arremate. Além da defesa e de Dinamite, há que se lembrar de Dirceu, meia-atacante pela esquerda que funcionava também como segundo volante, atuando de forma versátil já naqueles anos. Era ele quem permitia as constantes subidas do lateral vascaíno para o ataque.

Marco Antônio, no entanto, deixara para trás seus melhores momentos, já não frequentava a seleção brasileira, embora fosse ainda muito jovem. Fora campeão da Copa do Mundo em 1970, aos dezenove anos, e integrara novamente o elenco de quatro anos depois, no Mundial da Alemanha. Ademais, a marcação nunca foi seu forte. Orlando, que de lateral terminaria a carreira como zagueiro, estava em plena forma, assim como a dupla de centrais, Abel e Geraldo.

O treinador Abel Braga no Maracanã. Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

Não era comum à época que zagueiros fossem refinados na técnica, sendo pouca a responsabilidade com as saídas de bola e a armação das jogadas. A exceção era Luís Pereira, do Palmeiras, cujas subidas ao ataque podiam ser mortais para os adversários. Abel seguia a regra. Ouvi-o uma vez dizer que a primeira vez na vida em que participou de um treinamento tático fora na preparação para o Mundial de 1978, quando esteve no grupo que representou o futebol do país na Argentina. No mais das vezes, jogava-se como certa vez explicou Oberdan Vilain, defensor que atuou nos anos 1960 no grande Santos: era desfazer a jogada adversária e, em caso de desarme, tentar passar a bola para alguém do meio-campo. Zagueiro não brincava em serviço e eram os habilidosos meias, quando muito os laterais, os responsáveis pela construção das jogadas.

Não é mais assim.

Formado jogador no Fluminense, antes de se transferir para o Vasco e chegar ao Paris Saint-Germain, Abel somou o Braga a sua denominação ao tornar-se técnico. É caso incomum de êxito nas duas funções. Venceu Libertadores e Mundial de Clubes, com o Internacional, Brasileirão com o Fluminense, vários estaduais pelo Brasil afora, alcançou algum sucesso no exterior. No ano que termina ele não teve lá muito êxito com o Flamengo, apesar do título carioca, tampouco com o Cruzeiro, equipe da qual se demitiu sem que lograsse saca-la da zona de rebaixamento da Série A.

Abel Braga acaba de voltar ao Vasco da Gama para ser responsável pela equipe no ano de 2020. Campeão pelo clube da Taça Guanabara de 2000, é esta a sua terceira passagem pelo cruzmaltino. O inusitado de sua apresentação ficou por conta da confidência segundo a qual o presidente do clube lhe alertara para a impossibilidade do pagamento em dia dos seus salários. A declaração do ex-zagueiro aconteceu ao lado do mandatário vascaíno, Alexandre Campello, que não o desmentiu. Abel disse ainda que está contente com a possibilidade de se aposentar no Gigante da Colina, vivenciando, talvez, o novo Estádio de São Januário. A praça esportiva foi construída há muitos anos, com efetiva participação de imigrantes vindos de Portugal, inclusive mexendo areia e levantando paredes. Em sua primeira atividade pública na liderança do novo clube, o treinador, que durante cinco trabalhou em Portugal, lembrou que é neto de portugueses.

Há poucos anos, Abel viveu o que por certo é uma das piores experiências que se pode ter, a morte, por suicídio, de um de seus filhos. Em 1973, na primeira vez em que um clube catarinense disputou um Brasileiro, lá estava o jovem defensor no Figueirense Futebol Clube, emprestado pelo tricolor carioca. Campeão, derrotado, conhecedor da linguagem dos jogadores, apreciador de vinhos franceses, homem de fala direta, ex-zagueiro um tanto rude, mas não isento de técnica. Abel é personagem interessante do futebol brasileiro, o Vasco é clube que merece todo respeito pela sua história. É pena que o time esteja, em 2020, associado a um patrocinador que nada tem a ver com sua trajetória. Lamento não desejar sucesso esportivo, no ano que logo se inicia, ao vitorioso Abel Braga, menos ainda ao nobre Vasco da Gama.

Ilha de Santa Catarina, dezembro de 2019.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Abel Braga, Vasco da Gama, nossa história. Ludopédio, São Paulo, v. 126, n. 32, 2019.
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