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Abraham Klein: o árbitro da tragédia

Fernando Cesarotti 20 de junho de 2020

Série Copa Puntero traz 11 perfis de personagens que passaram pela história dos Mundiais; no quarto episódio, o árbitro de Brasil x Itália em 1982 e sua vida entre a guerra e a política

Ilustração: Deborah Santiago Guimarães.

Sócrates lança Zico, que invade a área, escapa da marcação e chuta forte para rebatida de Zoff. O Galinho, com a camisa completamente rasgada, sai injuriado, reclamando para o árbitro. “Vai trocar de camisa”, rebate imediatamente o homem de preto. Por que Abraham Klein não marcou o pênalti que poderia ter mudado a história do futebol e evitado a Tragédia do Sarriá? “O auxiliar ergueu a bandeira e marcou impedimento”, é a resposta do juiz israelense, dada em várias entrevistas e publicada até em livro. De fato, o lance parou em seguida, apesar do desespero de Zico — que, logo depois, trocou de camisa e seguiu batalhando por cada palmo de campo com o lateral italiano Claudio Gentile.

O fim da história todos sabem: a Itália venceu o jogo por 3 a 2, com três gols de Paolo Rossi, que nada havia feito até então na Copa do Mundo da Espanha, e caminhou para o tricampeonato. O Brasil perdeu não só o jogo e a chance de ser tetra, mas viu seu paradigma de jogo se transformar, e poucas vezes, apenas em espasmos isolados, uma Seleção Brasileira voltou a exibir aquele futebol solto, alegre e às vezes até irresponsável. Vieram o tetra e o penta, enquanto o “jogo bonito” virou mais slogan de marketing do que estratégia esportiva.

Mas este texto não é sobre Brasil ou Itália, e sim sobre o homem de preto, já um veterano árbitro de 48 anos que só esteve a postos em Barcelona na quente tarde de 5 de julho de 1982 graças a um telefonema recebido direto de um front de batalha no Líbano. Abraham Klein já havia apitado duas Copas, em 1970 e 1978, feito jogos importantes em Eliminatórias e Olimpíadas, era conhecido por seu excelente preparo físico e pela convicta obediência à lei da vantagem. Havia se cuidado especialmente para estar em forma e encarar o calor da Espanha naquela que provavelmente seria sua despedida dos campos. Só não estava pronto para a guerra.

Não que isso fosse novidade para um judeu nascido em 1934 na cidade de Timisoara, importante polo econômico e cultural do Leste Europeu que desde 1920 fazia parte da Romênia. Durante a Segunda Guerra Mundial, a cidade foi alvo de bombardeios tanto do Eixo quanto dos Aliados, e Klein teve parentes que foram levados à morte em Auschwitz. Seu pai escapou por ter fugido do país rumo à Palestina antes da guerra; a mãe ficou, mas, dois anos depois que o conflito acabou, Klein embarcou sozinho num trem, num grupo de 500 crianças e adolescentes que foram levados até a Holanda. Anos depois, reencontraria a família para viver num kibutz em Haifa, uma das cidades principais do recém-criado Estado de Israel.

Como morador desse barril de pólvora, Klein havia visto outros conflitos. Serviu o Exército, mas não chegou a ir ao front. Só que em março de 1982, meses antes da Copa, um atentado ao embaixador israelense no Reino Unido, Shlomo Argov, levou o país a retaliar atacando o Líbano. E o primogênito de Klein, Amit, então um recruta recém-alistado, foi enviado para Damour, um dos centros da guerra. O árbitro soube disso somente na Espanha, semanas antes do início do Mundial, na reta final de preparação, por um telefonema da esposa.

As escalas de arbitragem ainda não haviam sido definidas, e então o juiz foi até o comitê de arbitragem e pediu para sair. “Não estava no controle”, contou, em seu livro O Mestre do Apito, sem versão nacional. O italiano Artemio Franchi, então chefe dos árbitros da Fifa e hoje nome de estádio em Florença e Siena, perguntou-lhe se tinha certeza. A presença de Klein na Espanha, afinal, já havia sido motivo de uma pequena guerra fria: Kuwait e Argélia fariam suas estreias no Mundial, e as TVs árabes ameaçaram boicotar a transmissão do torneio se houvesse um juiz israelense nos campos. A experiência falou mais alto e Klein foi chamado — mas a Fifa, já especialista na diplomacia do dinheiro, garantiu aos árabes que seu nome não apareceria nos caracteres da transmissão para a região.

Franchi optou por escalar Klein apenas como bandeirinha ou quarto árbitro. Na época, não havia árbitros específicos para a função de auxiliar, e o israelense aceitou ser só coadjuvante enquanto não botava a cabeça no lugar. No dia 18 de junho, atuou no empate por 1 a 1 entre Itália e Peru, em Vigo. “Trabalhei com a cabeça lá longe, parecia que estava numa bolha. Meus pensamentos estavam só com Amit”, contou o juiz em entrevista ao Guardian. Chegando ao hotel, o velho Abraham desmontou ao ver que havia uma carta do filho. Amit não só estava vivo como acompanhava o Mundial nas horas vagas, junto com seus colegas, todos ansiosos por ver o pai como árbitro de uma partida. “Estão juntando recortes de jornal e me entregando”, dizia a carta. Dias depois, Amit conseguiu telefonar e encontrar o pai no hotel. Klein, então, retomou a confiança e colocou-se à disposição. Ganhou de presente a chance de apitar Brasil x Itália, pelo Grupo 3, valendo uma vaga nas semifinais, o que nos leva de volta ao começo desta história.

Klein ainda era um dos favoritos para apitar a decisão entre Itália e Alemanha, mas acabou preterido em favor do brasileiro Arnaldo Cézar Coelho. Acabou escalado como o bandeirinha número 1, que fica perto dos bancos de reserva. Um presente de consolação que já lhe era familiar, como veremos adiante.

Presente inesperado

Klein não era exatamente um novato quando chegou ao México para apitar a Copa de 1970. Tinha 36 anos e alguma experiência em jogos internacionais. Embora apitasse numa liga pouco conhecida, era visto como competente, honesto e “pau pra toda obra”. Israel ainda não era formalmente parte da Uefa, decisão que só foi oficializada em 1990, mas o árbitro já havia apitado partidas pelas eliminatórias europeias e mostrou em 1968, ao apitar nas Olimpíadas da Cidade do México, que tinha fôlego para o quase insuportável clima local.

A surpreendente escala, contudo, o presenteou com a inesperada chance de apitar Brasil x Inglaterra, pelo Grupo 3, o chamado “grupo da morte”, se é que já se usava a expressão na época. O jogo opunha nada menos que o atual campeão mundial contra o vencedor das duas edições anteriores, os inventores do esporte e aqueles que o elevaram à arte. De preto, um desconhecido israelense, que ganhou 10 libras como “salário” para apitar a partida e, depois do jogo, pagou 100 libras a um fotografo pelo negativo da foto que o mostra no sorteio, entre Carlos Alberto Torres e Bobby Moore. Hoje, essa foto ocupa lugar de destaque em sua casa, em Haifa, ao lado de outras recordações da bola.

O jogo começou tenso, com o atacante Lee acertando o goleiro Félix caído e levando uma peitada de Carlos Alberto. No fim do primeiro tempo, Pelé caiu na área numa dividida com Mullery, e Klein nada marcou. Saiu convicto de ter feito boa atuação, e assim seguiu até o término da partida, vencida pelo Brasil por 1 a 0, gol de Jairzinho. A imprensa brasileira não gostou. “Árbitro israelense permitiu violência”, escreveu a Folha de S. Paulo como título de uma das matérias sobre o jogo. “Um jogo que teve equilíbrio de forças durante a maior parte do tempo, muita violência por parte dos ingleses e um juiz que prejudicou os brasileiros, o israelense Abraham Klein”, cravou O Estado de S. Paulo no encerramento do lide de sua chamada de capa.

A Fifa gostou e Klein foi escalado para apitar um dos jogos das quartas de final, entre Itália e México, mas o árbitro acabou vítima do famoso Mal de Montezuma, um mal-estar exagerado que provoca vômitos e diarreias, em geral fruto da apimentada comida local, e teve de voltar para Israel sem trabalhar em outros jogos.

A política, ora a política

Klein voltou a aparecer para os brasileiros em 1972, quando apitou seis jogos da Taça Independência, a chamada “Mini-Copa”, torneio organizado pela então CBD para bajular os militares com a desculpa de comemorar os 150 anos da Independência do Brasil. Entre eles, a final, em que o Brasil simbolicamente derrotou Portugal por 1 a 0. Chegou até a ser sondado para apitar jogos do Campeonato Paulista, a pedido do então vice-presidente do Santos, Clayton Bittencourt, irritado com as arbitragens do torneio até então, mas a ideia não se concretizou.

Abraham Klein só voltaria a uma Copa em 1978. A política, aquela que segundo alguns não deveria se misturar com o esporte, atravessou o caminho. Em 1974, o Mundial seria realizado na Alemanha Ocidental, e os cartolas acharam inseguro levar um árbitro de Israel para o mesmo país em que, dois anos antes, sete membros da delegação israelense na Olimpíada de Munique haviam sido assassinados.

Na Argentina, Klein bateu de frente com os locais. Sua primeira escala como árbitro principal foi no duelo entre a seleção da casa e a Itália, pela última rodada do Grupo 1. As duas seleções já estavam classificadas, mas a vitória era fundamental para os argentinos porque significaria permanecer em Buenos Aires, jogando no Monumental de Núñez, diante de 77 mil ensandecidos torcedores que pediam pênalti a cada encostada nos seus ídolos e também dos generais que comandavam o país, Jorge Rafael Videla à frente. As arbitragens haviam sido contestadas nas vitórias anteriores dos anfitriões, contra Hungria e França, e Klein foi uma espécie de “bola de segurança” da Fifa, ainda que se tratasse apenas de sua segunda partida numa Copa do Mundo.

Como se esperava, houve incontáveis cavadas de pênalti, todas negadas pelo juiz. A Itália venceu, 1 a 0, e a Argentina foi obrigada a se deslocar para jogar a segunda fase em Rosario, onde segurou o empate com o Brasil, venceu Polônia e Peru, na mais famosa e infame goleada da história das Copas, e se classificou para voltar à capital na decisão diante da Holanda. Klein foi cogitado para a final, mas nos bastidores teria sido vetado pelos dirigentes — e militares — argentinos. O italiano Sergio Gonella dirigiu a decisão, e Klein acabou apitando Brasil 2 x 1 Itália, valendo o terceiro lugar e uma prévia do duelo do Sarriá, quatro anos depois, o jogo que o imortalizou definitivamente na história do futebol brasileiro.

E pensar que Klein não esperava nada demais daquela partida. A Folha de 5 de julho de 1982 registra uma declaração protocolar entre as matérias de pré-jogo: “Os brasileiros sabem como ninguém jogar futebol. Preocupam-se apenas com o espetáculo e não em prejudicar a atuação do juiz. Como não tive problemas na vitória do Brasil em 78, penso que não os terei agora”. E uma expectativa otimista (como de grande parte do mundo) de que o Brasil passaria com facilidade. “À exceção do Brasil, não consigo vislumbrar no momento outra equipe em condições de ir à final”, disse, diplomático. Aos auxiliares Thomson Tam Sun Chan, de Hong Kong (o que anotou o impedimento de Zico no lance do pênalti), e Bogdan Dotchev, da Bulgária, foi mais direto, segundo contou ao Guardian, e cometeu aquele que talvez tenha sido seu grande erro: “Vai ser um jogo do qual ninguém vai se lembrar daqui a alguns meses”.


Puntero menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2018. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fernando Cesarotti

Pai do Davi, socialista, palmeirense. Jornalista formado pela Unesp, com pós em Jornalismo Literário. Professor no Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (CEUNSP). Criador do OlimpCast.

Como citar

CESAROTTI, Fernando. Abraham Klein: o árbitro da tragédia. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 47, 2020.
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