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Abusos sexuais no mundo esportivo

Wagner Xavier de Camargo 7 de abril de 2019

Em fins de março de 2019 saiu a decisão final sobre a acusação de abuso sexual e assédio moral na ginástica artística, praticados por Fernando de Carvalho Lopes: ele foi considerado culpado das acusações e banido definitivamente da modalidade pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) da Confederação Brasileira de Ginástica (CBG). Fernando era coordenador técnico da equipe brasileira da ginástica artística masculina e acompanhava o atleta Diego Hypolito na época das acusações, em 2016. Devido às denúncias, foi afastado do clube no qual dava treinos (Mesc, em São Bernardo do Campo) e também dos Jogos Olímpicos do Rio, poucas semanas antes da competição ter seu início.

Tal decisão relacionada à ginástica é inusitada, porém participa do conjunto de denúncias contra abusos e assédios sexuais ou morais que têm aparecido nos esportes, inclusive no futebol. O principal esporte nacional também não tem tido dias fáceis: em abril de 2018 veio a público o caso de Ruan Pétrick Aguiar, que acusou Ricardo Marco Crivelli, coordenador das categorias de base do Santos Futebol Clube à época, de ter cometido abuso sexual quando ele ainda era menor de idade. Segundo reportagem do El País, quando ocorreu tal ato, Ruan tinha 11 anos e teria sido acariciado e convencido a praticar sexo oral no referido coordenador[1].

A tenra idade e a relação com um adulto em posição hierárquica, no qual o/a jovem deposita sua vida (esportista e profissional), parecem ser elementos que incitam o assédio e inclinam ao abuso. Em termos brasileiros, o caso de Joanna Maranhão, molestada sexualmente na infância por seu treinador, é paradigmático para entender essa configuração. Em meados de 2008, a atleta veio a público denunciar as práticas sexuais forçadas às quais teve de se submeter ao técnico no passado e, a partir disso, uma lei foi criada para regular crimes de origem sexual praticados contra crianças e adolescentes (conhecida, então, como Lei Joanna Maranhão).

Os fatos destacados, por sua vez, chamam atenção para algo que, à primeira vista, poderia se relacionar à pedofilia, mas que, aqui nesse espaço, quero dar outro encaminhamento. Os abusos sexuais e assédios do técnico da ginástica, do coordenador das categorias de base do futebol e mesmo do treinador de natação de Joanna trazem à tona que as vítimas dos atos são meninas/meninos atletas (ou atletas mirins), algo que, em geral, não se confere a devida importância. São crianças expostas a comportamentos sexuais adultos, que muitas vezes não estão fisicamente (e mesmo psiquicamente) preparadas para eles. Se, na sociedade em geral, há uma situação problemática quanto ao despertar de uma sexualidade precoce em jovens pré-adolescentes por meio dos imputs emitidos pelos meios de comunicação (incluindo a internet), imagine-se propostas concretas para intercurso sexuais, sexo oral/anal ou ainda contatos com indivíduos portadores de genitais desenvolvidos, em ambientes circunscritos do esporte.

Foto: Drew Hays / Unsplash.

Além disso, vejo claramente uma problemática de gênero (ou como diria Judith Butler, um gender trouble) aí imiscuída[2]: pelo histórico de denúncias nos últimos tempos, meninas-atletas estão ocupando o topo dos relatos de acusação e, em contrapartida, há pouquíssimos casos de meninos-atletas. Se, por um lado, isso é ótimo, pois estas aguerridas garotas conseguem vencer todo o limbo pegajoso do patriarcado, do silenciamento a que são submetidas e do lugar “secundário” a elas imposto pelo próprio esporte (vide nosso futebol praticado por mulheres), por outro, não ouvir as vozes de meninos-atletas é desolador, angustiante, desesperador.

O mundo esportivo está cheio de assédio moral em relação aos jovens do sexo masculino: ser o melhor do grupo, se destacar, ter mais habilidades, ser agressivo, viril e destemido… e a lista de adjetivos segue interminável! Isso imputa a tais indivíduos em formação um senso de responsabilidade que, atrelado a inúmeros outros (como, talvez, ser arrimo de família ou ter que sustentar pessoas idosas e/ou com deficiência de seu círculo íntimo), desencadeia uma permissibilidade em relação a abusos sexuais, que não encontram precedentes em outras situações. Garotos futebolistas são bulinados em vestiários, ginastas-mirins são convidados a praticar sexo oral em homens-barbados, técnicos usam de artimanhas para dormir ou entrar no banho com atletas jovens, mesmo quando estão em quartos individualizados.

E, em nome do peso nas costas, da responsabilidade de ser “homem em formação”, do “ter que dar certo”, da expectativa de pais, mães, parentes ou responsáveis, esses meninos-atletas passam por cima de seus desejos, de suas repulsas, de orientações sexuais e preferências e se submetem aos homens que os comandam. Suas vozes não são ouvidas, porque são abafadas; eles não se colocam contra os abusos, porque foram adestrados a “fazer de tudo” em troca de promessas de serem convocados ou, nas mais tristes das situações, fazem em trocas de cestas alimentares.

De acordo com Laura Robinson, uma pesquisadora canadense que tem se dedicado a estudar o abuso sexual no hóquei no gelo e as implicações de tal ato por parte de jogadores homens que atuam segundo uma “cultura do estupro” no esporte, algo que complexifica as forçosas relações estabelecidas entre agressor e vítima é a questão do consenso. Para os jogadores de hóquei que a pesquisadora estuda e mesmo na maioria dos casos jurídicos que analisou nas últimas duas décadas, o consenso foi a palavra mágica que denotava o “prazer” que a vítima sentia (e, por extensão, os livrava de qualquer culpa). Isso os tirou de uma potencial condenação e, no cenário instituído, tornou a “acusação de crime” perpetrada pelas mulheres violentadas quase impossível de ser pronunciada[3].

Diferentes esportes, distintas culturas ao redor do globo, um mesmo proceder: homens cisgênero acionam o poder de seus falos em prol do gozo narcísico e supõem o consenso de um corpo aprendiz, temerário, frágil, que apenas almeja atenção e cuidado no processo de aprendizagem esportiva que vivem. Tais homens não enxergam ninguém além de si mesmos. A coordenadores, treinadores, médicos esportivos e mesmo atletas adultos, um aviso: a temporada de caça a vocês e a seus comportamentos libidinosos já começou! 


Notas de rodapé:

[1] PIRES, Breiller. “Denúncia de abuso sexual estremece o mais famoso celeiro de jogadores do Brasil”. El País. 2018. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/21/deportes/1524332816_854452.html >, acesso em 02 abril 2019.

[2] BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[3] ROBINSON, Laura. Crossing the Line: violence and sexual assault in Canada’s National Sport. Toronto: M&S Inc., 1998.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Abusos sexuais no mundo esportivo. Ludopédio, São Paulo, v. 118, n. 8, 2019.
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