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Adeus, gritos atrasados

Leandro Marçal 12 de junho de 2018

Minha vontade era ter dinheiro suficiente para presentear cada um dos vizinhos com uma TV moderna e fininha. Ou mesmo um conversor, para todos assistirem às últimas Copas do Mundo simultaneamente, com  sinal digital. Meus problemas acabaram.

A vingança dos que ainda tinham as pesadas TVs de tubo contra meu aparelho moderno e fininho era cruel. Quebravam o clima dos churrascos e encontros de amigos anunciando com antecedência o fim dos lances agudos. Ninguém entendia os gritos nas outras casas quando a bola ainda estava chegando à grande área. Víamos o gol e a ficha caía: o sinal analógico vem antes do digital.

No Mundial da África do Sul, lembro que ligava o rádio bem alto nas partidas da seleção brasileira. Era a vingança da vingança. Sentia uma irritação geral dos outros moradores quando saía de casa, mas precisava marcar posição: esperem o gol sair na minha TV e fica tudo resolvido, viram como é horrível o spoiler futebolístico?

Dessa vez, não. Todos têm o mesmo sinal digital. Não haverá atrasos ou privilégios. Poderemos até sair na calçada e nos abraçarmos para comemorar vitórias ao mesmo tempo. Ninguém vai se sentir desprestigiado pela televisão mostrar o gol uns míseros segundos depois do restante do quarteirão.

Vector cartoon illustration of a group of friends of football fans watching a football match on TV
Adeus, gritos atrasados. Ilustração: Vectorpocket/Freepik.com.

A vizinha fofoqueira, o morador que acelera a moto na janela só de pirraça, as crianças que chutam a bola no portão, o casal barraqueiro do outro lado da calçada. Nenhum deles será capaz de descontar as tretas diárias nesta Copa do Mundo. Era como se eles esperassem por quatro anos não só o evento maior do futebol, mas também a oportunidade de fazer pirraça e jogar água no meu chope.

Deve ter sido muito boa a época em que as pessoas se reuniam na casa do vizinho mais abastado, o único com TV na rua. Comemoravam os gols juntos, comiam guloseimas durante a partida e não havia rivalidade sobre aparelhos pendurados na sala. Sequer havia plasma ou LCD, apenas chiados. Talvez algumas discussões sobre qual emissora era a mais adequada para perder pouco mais de 90 minutos de bola rolando, nada muito relevante. Um belo passado que a tecnologia aposentou.

Ainda bem que nunca tive dinheiro para presentear cada um dos meus vizinhos com uma TV moderna e fininha. A da minha sala já está no suporte. E, na dúvida, vou deixá-la no volume máximo, para abafar os gritos de gols nas outras casas, ainda que na hora certa.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Adeus, gritos atrasados. Ludopédio, São Paulo, v. 108, n. 13, 2018.
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